Foi sobre a Festa dos Tabuleiros, uma das maiores manifestações culturais do concelho, que nos sentámos à conversa. Do passado até aos dias de hoje, o professor tomarense, de 65 anos, guiou-nos por uma viagem que se iniciou no século XIII. Das primeiras versões da festa às transformações que decorreram até à atualidade, Carlos Trincão falou do significado daquela que considera ser uma “manifestação coletiva de centenas de vontades individuais”, e que acaba de ser inscrita no Inventário Nacional de Património Cultural Imaterial, com o anúncio publicado a 8 de maio em Diário da República.
Apaixonado pelo ensino e pela história de Tomar, o professor aliou as duas vertentes e é autor de diversas obras para os mais novos sobre a história da cidade e sobre os templários. O mais recente projeto foi lançado em 2019 – ‘O sempre incompleto dicionário básico de Tomar‘. A obra funciona como um complemento à disciplina de História e Tradições de Tomar, criada em 2020, e que conta, desde este ano letivo (2022/2023), com um manual próprio da autoria de Carlos Trincão.
Do vasto currículo destacam-se ainda inúmeros feitos no setor da educação, mas também na atividade política e cultural. Foi membro do Comité Científico do Projecto “Les Fêtes du Soleil”, com a participação da UNESCO e cidades de Itália, Israel, França, Tunísia, Sicília e Malta, num projeto financiado pela União Europeia que teve por fim criar uma nova classificação no Património Mundial da UNESCO em torno dos bens imateriais, como é a Festa dos Tabuleiros.

O que desencadeou este gosto pelo ensino e o levou a prosseguir estudos na Escola do Magistério Primário de Coimbra?
Esta ideia do ser professor foi sempre algo que eu tive desde pequenino. Eu lembro-me disso. Recordo-me que uma vez no antigo quarto ano, atual oitavo, um professor de inglês, nos perguntou o que gostaríamos de vir a ser e eu respondi: I’d like to be a teacher e ele disse-me: ai chefe chefe, assim não governas a vida. Digamos que o que eu gostava mesmo era de ter o curso de história e ser professor de história, mas as vicissitudes da vida fizeram com que eu terminasse o antigo sétimo ano precisamente em 1975, numa altura bastante conturbada da vida nacional e não havia, naquele momento, condições na minha família que dessem a segurança ao meu pai para me colocar no curso que eu queria, até porque havia que contornar o Serviço Cívico, que me atrasaria um ano. Mas dado que ele sabia aquilo que eu gostava, propôs-me ir para Coimbra na mesma, mas para o Magistério Primário. (…) Nunca cheguei a ser aquilo que inicialmente tinha pensado, mas ando lá perto.
O gosto pela história vem de sempre, mas quando é que desperta para o estudo da história e das tradições do concelho de Tomar?
Eu tenho um texto que diz algo do género: “ter saudades daquilo que os meus colegas mais velhos viveram e eu não”, designadamente as aventuras no rio. A geração anterior minha, mais velha 3, 4 ou 5 anos, viveu coisas no rio, coisas em Tomar e conheceu personagens que eu já não conheci, mas que são muito fortes, sejam os lugares ou as personagens. E então eu tenho saudade desse tempo que não vivi.
O facto de gostar naturalmente de história, o facto de na profissão podermos resvalar para a história local, isso ia fazendo com que eu próprio fosse tendo a curiosidade para ir apanhando algumas coisas. Entretanto, aconteceu que na minha quarta classe foi oferecido a todos os finalistas, um livro do Amorim Rosa, o De Tomar. Na altura era demasiado compacto e para os pequenitos, mas o livro ficou lá em casa e peguei nele mais tarde.
Há alguma situação da sua infância que o tenha marcado particularmente e que hoje interprete como sendo essencial para explicar esta paixão pelas tradições?
Eu lembro-me de alguns episódios em criança. Eu morava na Avenida Cândido Madureira, que é por onde a festa [dos Tabuleiros] desce quando sai da Mata (…). Recordo-me de uma noite em que a família estava cá fora numa altura de festa e de calor. Havia aquele movimento todo na rua e eu andava cá fora a brincar com os balões (…). Há coisas que nos ficam… e essa imagem de vez em quando vem-me à memória. O que é que aconteceu que fez esse clique que perguntava? Não me lembro exatamente, penso que 1981/82, eu estava a folhear em casa um livro sobre curiosidades de Portugal e li uma coisa que eu não conhecia e que era a antiga tradição, entretanto perdida, de as pessoas de Tomar, no dia da Santa Iria, deitarem as pétalas ao rio. Eu nunca tinha ouvido falar naquilo, nem nunca tinha visto. Perguntei à minha avó e ela disse-me: é verdade, ainda me lembro.
Na altura dava aulas no Colégio Nuno Álvares e falei com as minhas colegas. Viemos por aí abaixo no dia de Santa Iria deitar pétalas. (…) Resultado, isso ficou e para mim é um caso de algum orgulho ter sido o impulsionador do reviver de uma tradição. (…) Esse foi talvez o primeiro clique relativamente à história e às tradições. E depois, durante alguns anos eu desempenhei funções na Câmara, onde fui tendo acesso a muita informação acerca de Tomar e ia registando. A certa altura, eu tinha um manancial de informação bastante grande e comecei a alfabetá-lo (…). E isso depois resultou no meu dicionário, que, entretanto, saiu há coisa de um ano.
Além das informações de que já dispunha, quando se inicia o trabalho de pesquisa sobre a Festa dos Tabuleiros?
Foi um processo gradual. (…) Quisesse ou não, eu tinha de ver a Festa sempre porque ela passava à minha porta. Eu tinha uma varanda pequenina e olhávamos para cima, para a saída da Mata e o que começávamos a ver era um rio de cor. Aquilo era uma coisa fabulosa para os miúdos e para mim em particular. Portanto, a festa começou a entrar em mim por uma via muito natural, que era a janela da minha casa. Também por aquilo que a minha avó e a minha mãe me contavam. Depois, já no ensino oficial, no ano de Festa, a necessidade de fazer um trabalho com os pais das crianças, em que lhes pedimos testemunhos do que se recordavam da Festa e foi publicado num desdobrável no jornal Cidade de Tomar. Isso foi muito importante para mim, porque comecei a aperceber-me da forma como outras pessoas viam a Festa e encontrei ali um denominador comum, que era a emoção. Portanto, as pessoas viam a Festa de todas as maneiras e feitios, mas havia uma que era igual em todas, que era a emoção.
A minha vida profissional, a minha vida cívica, a intervenção na Câmara Municipal, o facto de eu saber umas coisas e de algumas pessoas me virem perguntar mais algumas, foi fazendo com que eu fosse procurar outras. A certa altura, a Festa estava mesmo embrenhada. Estava e está.
Tendo por base esta manifestação cultural decide escrever um livro, A festa é um romance. Como descreveria esta obra?
As páginas escondem o romance da festa. O livro foi-me solicitado pelo Provedor da Santa Casa da Misericórdia, que me perguntou se poderia fazer uma coisa sobre a Festa para os mais novos. Eu disse que isso não tinha piada porque já existia e propus a ideia de tentar fazer uma coisa, não para os mais novos pequenos, mas para os jovens e para os pré-adultos. Essa ideia agradou-lhes e isso permitiu-me escrever o livro em discurso direto, isto é, eu a falar com o leitor e a tratá-lo por tu (…) Tomar, templários, tabuleiros, tudo à volta do “T” e das cores. O primeiro capítulo é isto, tem a ver com os 3 “T’s” de Tomar e com as 3 cores. E saiu-me de rajada um texto poético, digamos assim, em que eu acho que consegui conjugar os templários ligados ao Espírito Santo, Tomar, os tabuleiros e as cores – o preto, o branco e o vermelho – que são as cores da Festa, de Tomar e dos Templários. E por aí se começou.
O livro pode ser dividido em três partes, a que é que corresponde cada uma delas?
A primeira é o contexto, isto é, quais é que são os antecedentes próximos e remotos, de onde é que a Festa dos Tabuleiros vem, quem é que fortaleceu as Festas do Espírito Santo que já eram feitas pelos franciscanos no século XIII. A segunda parte é a descrição da Festa, como é que se faz o tabuleiro e como é que as pessoas vão vestidas. A terceira e última parte é dedicada a curiosidades. E tudo isto sempre num ritmo de conversa com a pessoa que está a ler e sempre tratando por “tu”, porque o livro está dirigido aos pré-adultos e jovens adultos.

A Festa dos Tabuleiros é uma das mais antigas celebrações nacionais. Com origem pagã, simbolizando a época das colheitas, a Festa adquiriu caráter religioso no tempo das Festas do Imperador, no quadro do culto do Espírito Santo (séc. XIII-XIV), por vontade de D. Dinis e da Rainha Santa Isabel. Os tabuleiros da festa de Tomar, únicos com esta forma nas tradicionais festas do Espírito Santo que se realizam um pouco por todo o país, são tradicionalmente transportados por uma rapariga vestida de branco e têm a altura da mesma. É decorado com flores de papel, espigas de trigo e 30 pães de 400gr enfiados nas canas de um cesto de vime, envolvido num pano branco bordado. O tabuleiro é encimado por uma coroa com a Cruz de Cristo ou a Pomba do Espírito Santo. Além do Desfile principal, realizam-se várias celebrações em dias diferentes, como o Cortejo das Coroas, o Cortejo dos Rapazes, o Cortejo do Mordomo, os Cortejos Parciais, a chegada dos Bois do Espírito Santo e os Jogos Populares.
A Festa dos Tabuleiros, que este ano regressa de 1 a 10 de julho, é organizada de quatro em quatro anos e a decisão de a realizar é sempre tomada pela população, numa sessão convocada pela Câmara Municipal para o efeito, no ano anterior à sua realização, que escolhe também o Mordomo, sendo este ano Mário Formiga.
O anúncio da festa aconteceu no domingo de Páscoa, a 09 de abril, com a primeira procissão das Coroas e Pendões do Espírito Santo. No dia 02 de julho realizar-se-á o Cortejo dos Rapazes, no dia 05 serão abertas as ruas ornamentadas, a 07 acontecerá o Cortejo do Mordomo, a 08 os cortejos parciais dos tabuleiros, a exposição de tabuleiros na Mata dos Sete Montes e a final dos jogos populares, decorrendo dia 09 a Procissão das Coroas e Pendões do Espírito Santo e o Grande Cortejo dos Tabuleiros, com a festa a culminar no dia 10 com a distribuição da Pêza ou Bodo.
Quais são as origens da Festa dos Tabuleiros?
A Festa dos Tabuleiros vem das Festas do Espírito Santo. Quem fortaleceu as Festas do Espírito Santo, que já eram feitas pelos franciscanos no século XIII, foi a Rainha Santa Isabel. Às vezes dizemos erradamente que foi ela que instituiu, mas não é verdade. Ela o que fez foi dinamizar e encorajar as festas e a sua dispersão pelo país. Costumamos dizer que a Festa dos Tabuleiros tem origem nas antigas festas pagãs de culto à deusa Ceres e outras coisas. Toda a gente diz isso e assume como uma verdade e não é. As Festas do Espírito Santo não são a cristianização de festas pagãs. Têm é pontos de contacto e ao longo do livro nunca falo como origens, mas sim como pontos de contacto, porque depois nós encontramos pontos de contacto com os egípcios, ou os judeus por exemplo (…). Por exemplo, bois e pão, presentes em todas as civilizações e religiões, são alimento e trabalho, portanto quando se quer ver origem só porque é semelhante em alguns pontos, isso é errado.
As festas do Espírito Santo são festas de rituais de inversão de valores, isto é, o fraco passa a forte e o oprimido a livre. É por isso que o inocente passa a consciente, ou seja, explica o facto de uma criança ser coroada imperador e lhe ser dado o poder de perdoar ofensas e crimes. Os presos são libertados por um imperador criança.










Para além da inversão de valores, que outras características descrevem a Festa?
O facto de a Festa ser de solidariedades. Não tanto daquilo que possa ser solidária por ajudar os pobres, não é nada disso. Às vezes até nos fica essa ideia porque hoje em dia, na Festa dos Tabuleiros, o último ato festivo é a distribuição do bodo e aí é uma distribuição do bodo aos pobres, digamos assim. Ora, os bodos nunca foram a distribuição aos pobres. Os bodos, que eram a refeição de encerramento de qualquer festa do Espírito Santo, eram uma refeição fornecida pelos ricos e poderosos e depois, quanto mais rica fosse a refeição, mais ganhos políticos, a nobreza ou o nobre que dava a refeição assim se sentia.
É por essa razão que, como os bodos nas festas eram sempre momentos de disparates, o D.Manuel I proibiu os bodos das festas todas, menos as do Espírito Santo. Nós em Tomar temos a mania e às vezes dizemos que o D. Manuel I proibiu os bodos todos menos o bodo da Festa dos Tabuleiros. Não. Proibiu os bodos todos menos os das Festas do Espírito Santo, porque não teve força política nem interesse político em acabar com um bodo que na prática era permitir que os poderosos, perante a oferta de uma grande refeição, pudessem ser bem vistos. O que é que essa refeição tinha de especial? Não era a comida, era o facto de toda a comunidade se sentar à mesma mesa e comer o mesmo. Era servida por quem dava a comida, portanto pelo rico e pelo poderoso, mas toda a gente, rica ou pobre, doente ou são, se sentava à mesa em pé de igualdade com o senhor.
Há algum apontamento que diga quando terá surgido?
Nós temos só registo escrito da festa num documento que é uma ata da Sociedade Nabantina, em que se diz que se gastou não sei quanto, em pautas de papel para serem utilizadas na festa. Daí para trás, tudo são suposições. Quais é que são as certezas? Que as Festas do Espírito Santo, das quais a festa dos Tabuleiros é uma, e a festa dos Tabuleiros é a manifestação muito tomarense da festa do Espírito Santo, já existiam desde o século XII e que eram promovidas pelos franciscanos, os frades da pobreza. A rainha D. Mafalda, mulher do rei D. Afonso Henriques, já tinha dado um edifício para uma confraria do Espírito Santo.
(…) Desde o século XII/XIV que há festas do Espírito Santo, a partir do século XIV mais intensamente com a promoção que a rainha Santa Isabel lhes dá e depois espalham-se pelo país todo. Em cada sítio há sempre um denominador comum, que é a coroação do menino imperador, a transposição dos valores sociais. Daí para cá sempre houve festas do Espírito Santo. Resumindo, as festas começaram em Tomar de certeza no século XIII ou XIV e subsistiram até agora. Não sabemos exatamente quando é que a primeira festa do Espírito Santo terá começado em Tomar, ninguém faz a mínima ideia, o que as pessoas assumem é que a festa em Tomar já passou por três períodos.
E quais são esses três períodos?
O período desde as origens até ao século XVI. Do século XVI até 1950 e de 1950 para cá, que é o ciclo em que estamos. A partir do século XVI, as fogaças, as oferendas que passam a ter aquela forma, passam a chamar-se os altos cargos, porque são carregamentos altos, mas também não são só altos em altura, são altos de importância. O que é curioso é que a primeira referência que nós temos à Festa é no livro de atas em 1844, o ano da elevação de Tomar à categoria de cidade. Não passa de coincidência, mas é uma coincidência com muita piada. E depois, as outras referências passam a ser a partir do momento em que passa a haver imprensa em Tomar, designadamente no jornal “A Emancipação” em 1879.
A segunda fase acontece por causa da forma do tabuleiro. Nós sabemos que chegou a haver tabuleiros, ainda no século XIX e princípios do século XX, com forma cónica. Há imagens disso em revistas antigas de referência nacional. São uns autênticos cones. Há uns que são cilíndricos, mas em vez de serem cones são troncos de cone, isto é, mais largos na base e mais apertados no círculo do topo. Mas há outros que são mesmo cónicos. A terceira fase decorre de um interregno com a segunda guerra mundial e depois, a partir de 1950, foi quando o João dos Santos Simões, que tinha dinheiro e pessoas para fazer e a festa já não se fazia há muito tempo, retomou a Festa dos Tabuleiros em Tomar. Até essa altura, a festa dos Tabuleiros em Tomar era só de Tomar mesmo, havia outra nos Casais por exemplo. Havia outra em Carregueiros, que existe há centenas de anos, porque estas festas eram anuais e eram paroquiais. De 1950 para cá há um ciclo diferente porque é quando todas as freguesias se reúnem e fazem uma grande festa em Tomar.
Como foi definida a periodicidade da Festa dos Tabuleiros?
As festas eram anuais porque eram paroquiais e sem problemas de logística. Quando o João dos Santos Simões decide retomar as festas e em 1950 é uma ação que é promovida pelo poder. (…) Curiosamente em 1950, o presidente da Câmara convida a população a juntar-se para decidir se quer festa, no tempo da ditadura. E fez-se um convite às freguesias. Na altura, solicitou-se às pessoas que decorassem as fachadas, as janelas e as pessoas fizeram isso. Mas fizeram-no de tal forma que invadiram o espaço público, de forma que na festa seguinte, que aconteceu em 1953, o convite da comissão de organização das festas vem propor que haja concursos de ruas populares ornamentadas. Porque 3 anos antes tinha havido uma tal iniciativa popular em torno da decoração que o que importava era acarinhar essa coisa. (…) Hoje em dia, está a acontecer um fenómeno semelhante. Há o concurso das ruas populares ornamentadas, mas há montanhas de ruas que não estão a concurso e que têm as fachadas todas decoradas e a comissão também dá o papel para isso, porque as pessoas têm gosto em ter as ruas decoradas. Voltando ao início, a festa entrou pela minha janela, então eu tenho de estender a passadeira para a festa entrar, que são as colchas nas varandas e as decorações florais
A Festa só teve periodicidade certa quando era anual, daí para cá nunca mais teve periodicidade certa. Tentou-se nos anos 60, que ela tivesse uma periodicidade bienal, mas foi sol de pouca dura, porque como a logística de ano para ano ia complicando, e os custos começavam a ser consideráveis. Não havia confraria do Espírito Santo, quem fazia esse papel era a Santa Casa da Misericórdia, mas tinham que ser os poderes e os dinheiros públicos a sustentar a festa. Até 1987 nunca houve periodicidade certa. Aconteceu que, por uma série de acasos, a festa seguinte à de 1987 foi em 1991, e em 1995. A malta começou a achar piada àquilo. O falecido Dr. Bento Batista iniciou uma campanha, no sentido de manter os quatro anos, mas fazer coincidir com os anos bissextos. O que foi curioso foi que ninguém deixou que isso acontecesse e até hoje a festa continua a ser de 4 em 4 anos, tendo começado por uma casualidade.
Para além da periodicidade, que outas mudanças identifica na evolução da festa?
Isto é uma festa do século XIV. Vamos a ver hoje em dia, são tudo coisas diferentes. Os jogos populares apareceram em 1964, as ruas populares ornamentadas em 1953, o cortejo do mordomo foi em 1965. A tourada é desde 1884, as coroas à guarda da misericórdia são desde 1889, porque até aí, as coroas ficavam em casa de um juiz e passavam pada casa do outro que ia fazer a festa no ano seguinte, mas depois houve uns problemas.
Que problemas foram esses?
Tomar sempre teve muitas rivalidades e o que foi sempre tradição era que, há vez, organizavam a festa em Tomar os do lado de cá do rio e, no ano seguinte, os do lado de lá. Mas fossem os de cá a organizar ou os de lá, a festa percorria sempre as duas partes da cidade. Houve um ano em que os que estavam a organizar fizeram com que a festa não fosse ao outro lado, porque a bênção do pão e da carne era feita sempre no adro da igreja de Santa Maria. E aquilo deu uma bronca e o padre não gostou nada. De tal forma que não gostou que a certa altura agarrou na coroa e fugiu com ela para uma mercearia e só largou a coroa quando teve a confirmação dos organizadores que iam fazer o percurso e iam aos dois sítios. Portanto em finais do século XIX, o Padre fugiu com a coroa, isto está nos jornais, para salvaguardar a integridade da festa e a partir daí, ficou decidido que os pendões do Espírito Santo e as coroas do Espírito Santo ficavam sempre à guarda da misericórdia, para não haver mais conflitos do género. Portanto, a guarda das coroas na misericórdia é desde 1889.
Que outras datas considera importantes destacar na cronologia desta tradição?
A eleição do mordomo em reunião popular, é desde 1950, até aí tinham que ser pessoas das famílias dominantes. Porque para alguém poder organizar a festa, tinha que pedir à Junta da Paróquia permissão para fazer a festa, para ter acesso ao pendão e coroa. O padre é que dava permissão, se a pessoa fosse de confiança. O concurso das ruas populares é de 1953, assim como os cortejos parciais. Em 1964 criaram-se os jogos populares.












Em que é que consiste o atual cortejo do mordomo?
Aquilo que é hoje o Cortejo do Mordomo, que acontece desde 1966, antigamente era o Cortejo dos Bois do Espírito Santo. Era o mordomo que continuava a ser a pessoa encarregue do bodo, embora na altura o bodo já passasse a ser mais simbólico. E como é que esse bodo era simbólico? Ele ia à feira de Santa Cita, comprava as reses que iam ser abatidas no final da festa e a carne distribuída a toda a gente. Então, quando o mordomo ou juiz comprava os bois, iniciava-se um cortejo à entrada sul de Tomar e percorria o máximo de ruas possível, porque ao mostrar-se os bois do Espírito Santo, estava a dizer-se à cidade que ia haver festa. Enquanto os bois não passassem não havia festa, porque a festa era a oferta, mas era também depois o bodo, ou seja, a distribuição da carne. Portanto, como isso tudo desapareceu, as reses hoje não são compradas, são emprestadas, não matamos os bois. Compra-se a carne nos talhos para depois distribuir. O que é que se fez? Aliou-se o simbolismo da procissão dos bois às boas vaidades: Tomar sempre foi uma terra de cavalos também, portanto, quem tinha cavalos e charretes, que são coisas que dão nas vistas, e vestidos com os trajes ribatejanos, foram integrados no cortejo dos bois do Espírito Santo. Como já não era só o cortejo dos bois porque estes não iam ser abatidos, passou a ser também o cortejo da apresentação pública do Mordomo. As pessoas estão fartas de saber quem é o mordomo, porque até foram elas que o elegeram, mas digamos que apesar de o mordomo já ter saído em primeira instância na Procissão das Coroas no domingo de Páscoa e depois em todas as outras, passou a ser o Cortejo do Mordomo porque é na prática uma espécie de apresentação formal do mordomo à população, porque até aí ele nunca é apresentado.
Completam este ano 20 anos da publicação do primeiro trabalho sobre a Festa dos Tabuleiros, destinado aos mais pequenos. Em 2003 era lançada a obra Pelos Caminhos dos Tabuleiros, da autoria de Lisete Conceição, que procurava explicar às crianças algumas das tradições associadas à festa tomarense. O pequeno “manual” era acompanhado por um livro de atividades, todas alusivas à Festa dos Tabuleiros e que foi distribuído, à data, pelos alunos do concelho tomarense.
Como é que acontece esta “troca de poderes” entre os mordomos da festa anterior e da seguinte?
No domingo de Páscoa, sai-se das instalações da Misericórdia com a coroa principal ao centro, levada pelo Provedor da Misericórdia. À direita vem o Mordomo da festa anterior, à esquerda, o Mordomo da festa atual, fazendo o percurso até à igreja de Santa Maria. Contou-me há uns anos o João Vital, não há cerimónia nenhuma de transmissão de poderes. Ela existe, mas ninguém dá por ela. Quando o Provedor e os dois mordomos entram, sobem ao altar e depositam as coroas, de uma forma muito discreta, o mordomo antigo diz para o novo “agora já é contigo”, coisas assim deste género. E fica a transmissão feita. Quando se sai vem a coroa do centro com o padre, mas com o padre não paramentado, porque o Cortejo dos Tabuleiros não é uma procissão e das duas uma, ou vem já o mordomo da Festa do ano e o Provedor da Misericórdia.
Apesar de diversas transformações, o espírito da Festa dos Tabuleiros mantém-se o mesmo?
Se nós formos a ver, já não há coroação de imperador, não há império… Do que era original no século XIV já não há nada. É tudo de 1800 para cá. O que é que é desde o século XIV? É a festa ao Espírito Santo, que ganhou formas diferentes, mas em que o espírito é quase o mesmo. Eu digo que é quase o mesmo, porque na minha perspetiva, muito pessoal, hoje o grande objetivo da generalidade das pessoas, não é fazer a oferenda ao Espírito Santo e isto sociologicamente tem um significado. Hoje em dia, o significado é outro, é participar na Festa. Tirando algumas pessoas que fazem o tabuleiro por devoção e propositadamente como oferta, e isso é do íntimo de cada um, hoje as pessoas quando carregam aquele peso à cabeça, a oferta que elas estão a fazer, não é dos bens comestíveis que estão no cesto, mas é o seu esforço e é a sua dedicação. Sociologicamente passou a ter outro significado. A Festa dos Tabuleiros é uma manifestação coletiva de centenas de vontades individuais.
“A Festa dos Tabuleiros é uma manifestação coletiva de centenas de vontades individuais”
Carlos Trincão
A candidatura da Festa dos Tabuleiros a Património Imaterial já se encontra na fase de consulta pública. É uma certificação devida e há muito desejada?
É mais do que justo: é acertado. Tentando ver as coisas de uma forma desprendida, o que devia ser património eram as festas do Espírito Santo no seu todo. Elas existem em força nos Açores, na diáspora nos EUA e no Canadá, por exemplo, no Brasil; no continente estão muito dispersas, mas Tomar tem uma coisinha especial, que é o que vemos, este empolgamento todo das pessoas. É algo mesmo de imaterial, só se sente. As flores que fazemos desaparecem depois, mas foram feitas com o nosso suor e carinho, sejam quais forem as decorações, a montagem do tabuleiro. Portanto, é mais do que justo que seja considerada património português. Há um envolvimento fabuloso de toda a comunidade. É verdadeiramente uma Festa do Povo, pelo Povo e para o Povo. Há uma sensação de pertença a algo que nos ultrapassa e transcende. Há economia e desenvolvimento em torno da Festa. Há património e artes tradicionais. Há identificação comunitária. Mais cedo ou mais tarde vai acontecer. Isso eu não tenho dúvidas. Já está em consulta pública é sinal que vai ser. Depois temos que dar o passo seguinte que é o mundial, mas primeiro precisamos de ter esta certificação. Portanto, a classificação de Património Imaterial é mais do que devida.
O que leva uma festa a tornar-se património mundial?
A resolução da UNESCO diz que uma festa para ser considerada património mundial tem de cumprir vários itens. Um deles é a igualdade entre homens e mulheres, designadamente na promoção do emprego. Nós fazemos isso com as flores. Também a promoção das artes tradicionais, sempre fizemos isto, mas agora até com a Fábrica da Moagem e com a Fábrica das Artes. Temos lá as flores, os barros, portanto, até no plano municipal estão a ser dados passos que não foram feitos objetivamente com esse fim, mas que servem esse fim. E a outra é a garantia de perenidade, e nós temos a garantia de perenidade com a festa dos pequenitos, com o cortejo dos rapazes. São razões mais do que justificativas para isso. Uma outra (…) que diz que os promotores das festas não devem deixar que a tradição se intoxique por questões de ordem turística. Portanto, quando atualmente dizem que nós temos de mudar a festa para poder acolher os turistas melhor, porque vem muita gente… Uma coisa é acolher; outra é alterar por causa dos turistas. Se fizerem alterações substanciais que vão ao encontro de um objetivo turístico e que desvirtue a Festa, se ela porventura for de Património Mundial já, deixa de o ser. Porque a festa não pode ser abastardada por interesses que não são os populares. Se é uma festa do povo, pelo povo e para o povo, as alterações têm de ser feitas pelo povo, como e quando ele entender, que é o que tem vindo a acontecer. Nem pensar em criar um “tabuleiródromo”. O local de devoção na Festa é a rua e o caminho que se percorre.
No plano individual, quais os planos para o futuro?
Se tudo correr bem, a breve trecho hei de estar aposentado. Portanto, sobre a Festa, enquanto eu puder dar o meu contributo à festa, eu dá-lo-ei, se para isso me quiserem. Agora tenho dado o contributo à festa na organização do cortejo dos pequeninos, no que diz respeito ao meu Agrupamento de Escolas e às vezes em colaboração com a comissão central. Na festa anterior pediram-me e eu escrevi a revista oficial. Portanto, enquanto as pessoas me quiserem ou acharem que eu sou útil, sê-lo-ei.
Uma coisa que eu nunca serei é mordomo, isso já o disse várias vezes. Nunca poderei ser mordomo porque eu não tenho características para poder ser mordomo. Para se ser mordomo tem de se ser muito especial no trato com as pessoas e na gestão das ansiedades, das aspirações, dos conflitos e eu não tenho essa maneira de ser. Eu, em consciência, nunca posso ser mordomo, porque não tenho perfil para isso. Essa é uma das poucas certezas que eu tenho na vida.
Quanto à escrita, há projetos prestes a sair da gaveta?
No plano da escrita é que são os meus planos. As últimas duas coisas mais fortes que foram feitas foi a pedido do Agrupamento, a criação de uma disciplina para o terceiro e quarto ano, que é a História e Tradições de Tomar. É uma disciplina que passou a ser curricular (…). Fiz o programa e fiz o manual, que foi publicado pela Câmara Municipal e está distribuído por todos os alunos e vai continuar a sê-lo nos anos vindouros. Depois, ainda na sequência da disciplina foi a criação do dicionário. O Sempre Incompleto Dicionário de Tomar, porque o que eu via era que apesar das pessoas terem o manual, um professor tem de saber sempre mais daquilo que está a dar e havia dúvidas que se manifestavam. (…) Em princípio, pelo menos nos próximos dois ou três anos, há de sair sempre uma versão anual atualizada.
Presentemente estou a escrever, comecei em novembro e já vou no quarto capítulo, vamos ver se eu tenho arcaboiço para aquilo. A coisa chama-se Nesta minha mui querida vila de Tomar, que é o título geral da obra e cujo primeiro tomo é “O gafo, a judia e o almocreve”. Passa-se entre 1418 e 1420, depois o segundo tomo há de ser a partir de 1420. Qual é que é o objetivo disto? Não é fazer um livro de história, mas é um romance histórico que conte a história da evolução urbana de Tomar no tempo do Infante. (…) Neste momento, os meus dois projetos são a versão deste ano do dicionário e ver se ainda conseguiria terminar o primeiro tomo este ano.
Porém, o grande projeto que virá com a aposentação é viver a minha vida e a da minha família, não a dos outros.

