Tendo o Tejo a seus pés, Vila Nova da Barquinha aproveita o que este rio lhe dá. E em fevereiro e março dá-lhe lampreias e sáveis. Num ano em que estas espécies não abundam, assim como a água que os conduz rio acima, nem por isso se deixa de realizar o “Mês do Sável e da Lampreia”, iniciativa do município barquinhense que vai já na sua 28ª edição e que leva estas iguarias às mesas dos restaurantes concelhios até 27 de março.
Em 2022 o festival voltou ao seu formato habitual, presencial, convidando todos os apreciadores de peixe do rio ou aventureiros em novos sabores a deslocarem-se aos restaurantes barquinhenses. Iniciado a 19 de fevereiro, o “Mês do Sável e da Lampreia” leva a descobrir os sabores e aromas destas iguarias gastronómicas em seis restaurantes do concelho, que transformam lampreias e sáveis em diferentes pratos.
A pesca… de pouco peixe
Antes de chegar ao prato, há toda uma lide na pesca destes animais tão apreciados. Conhecedor dessas lides é Rui Ferreira, pescador de 58 anos, que encontramos em Tancos, freguesia de onde é natural e onde pesca desde os 17 anos, que, antes de ir deitar as redes ao rio para ver se é desta que apanha uma lampreia, nos começa por explicar que a lampreia se pesca desde janeiro até fins de março, mas que os meses mais fortes da lampreia são realmente fevereiro e março.

Isto, quando há lampreias, pois este é “um ano para esquecer” uma vez que a lampreia é pouca ou nenhuma. “O que a gente fazia numa noite, estou a fazer em três meses praticamente”, queixa-se o pescador que prontamente quantifica: de dezembro até dois de março – dia em que falou com o nosso jornal – Rui Ferreira pescou 12 lampreias, quando antes esse era o número de exemplares que apanhava praticamente numa noite.
Mesmo para este conhecedor do rio, do peixe e dos segredos de ambos, a justificação parece algo difícil, não se devendo só à falta de água: “tem a ver com a falta de água, porque o peixe à entrada do mar precisa de águas novas e não entra, mas já tivemos anos com o Tejo mais baixo e apareceu aqui muito peixe. Com mais poluição [o rio], e apareceu cá muito peixe, e este ano ou vem mais tarde ou não vem. Mas se não apareceu até agora estou convencido que não aparece cá mais”.
“Este ano ainda se apanhou, para o ano que vem, se calhar… olhe comi ontem uma e se calhar para o ano não sei se como”, diz o pescador, apontando incerteza no futuro, o qual não depende – nem poderia depender – da atividade piscatória. A pesca é um hobby que Rui Ferreira concilia com o seu emprego, pelo que todas as noites faz do seu barco o amigo que partilha o rio Tejo como companhia.
Se o rio estiver generoso e a “dar lampreias”, a pesca pode durar toda a noite, empreitadas que não têm acontecido atualmente: “neste momento chegamos aqui fazemos um lance, há colegas que nem vêm cá, outros vêm cá fazem um ou dois lances e vão-se embora para casa, é só para matar o vício”.
E é o vício que ainda vai valendo, a par do convívio, conforme explica o pescador. É que na altura da pesca da lampreia, os pescadores têm por hábito juntar-se, colocar a conversa em dia e conviver ao longo de três meses. Mas sem a lampreia até isso – o convívio no Tejo – pode estar para acabar. Atualmente, segundo as contas de Rui Ferreira, são seis em Tancos e cinco em Vila Nova da Barquinha as embarcações que pescam lampreia, cujos pescadores são unânimes na queixa da falta de lampreia.
Por isso mesmo, Rui Ferreira não tem dúvidas em nos afirmar de que este é o pior ano de sempre desde que pesca lampreia, relembrando depois os tempos dos seus 17 anos, em que pescava no rio Tejo com os “velhotes”, e de estes devolverem às águas do rio duas das quatro lampreias que apanhavam.
É que na altura não havia muita venda de lampreia. Já agora, na atualidade, “a venda da lampreia é uma loucura, toda a gente faz pratos de lampreia”.

E a lampreia é um prato que entra muito bem nos restaurantes, afiança o pescador, pois são vários os amantes (a par dos que odeiam este peixe). Mas os apreciadores de lampreia não deixam passar a sua época sem lhe deitar o dente, pelo que os restaurantes têm sempre muita procura para a prova da lampreia.
Mas nem sempre foi assim, pois Rui Ferreira relata-nos que antes eram poucos os restaurantes a cozinhar lampreia, pelo que este prato foi divulgado pouco a pouco, como aconteceu com um restaurante que conseguiu começar a divulgar a lampreia ao oferecer um passeio de barco.
Segundo os conhecimentos que o pescador de Tancos diz ter pelo país, “desde o Minho até aqui, todos se queixam que não há lampreias, a lampreia está um balúrdio”, asseverando no entanto que, no seu caso, nunca aumentou as lampreias para mais de 40/45€.

“Mas há quem esteja a vender a 60€”, afirma, rindo, ao relembrar que, noutros tempos, chegou a vender lampreias a 5€.
“Mas isso era noites em que se apanhavam montes de lampreia, a gente até se vinha embora que não queria mais lampreias, eu e os meus colegas aqui no rio Tejo, hoje é todo um contrário”, diz o pescador, enquanto lhe esmorece o sorriso nos lábios, ligando depois o motor do barco para ir lançar as redes. Pode ser que seja desta venha qualquer coisa.
No restaurante se prepara o repasto
Talvez tenha sido a conversa com o nosso jornal a dar sorte, quem sabe. Mas facto é que nessa noite, Rui Ferreira conseguiu apanhar uma lampreia. É essa mesma lampreia, que Teresa Ribeiro, cozinheira do restaurante “Ribeirinho”, nos mostra e explica como cozinhar, para fazer um arroz de lampreia que atrai apreciadores de vários locais do país.
Despachada, dona Teresa lá nos vai explicando o processo. Preferencialmente recebendo-as vivas, coloca as lampreias em água quente (sem ser a escaldar) para retirar a sua viscosidade, pelo que o passo seguinte passa por abrir a lampreia, sempre com muito cuidado para não furar a tripa que o peixe tem de uma ponta a outra. É que caso isso aconteça, a lampreia fica estragada por inteiro.
O sangue, esse é aproveitado ao máximo, pois é o que vai dar o gosto à lampreia e engrossar o molho. Teresa Ribeiro mete sempre a lampreia em vinho tinto (verde) e em vinagre, para o sangue não coalhar, e tempera o peixe com sal e bastante salsa. Faz um refugado com alho francês, cebola, alho, deixa-o “bem puxadinho”, e depois acrescenta-lhe um pouco de calda de tomate.
A lampreia é depois posta a cozinhar, com vinho branco, “se não fica muito forte”, e quando já está a meia cozedura, é colocado o arroz, o qual vai sendo adicionado consoante as doses que vão sendo pedidas. Só praticamente quando já está o cozinhado pronto é que Teresa Ribeiro junta a calda que contém o sangue do animal.
Uma lampreia dá para quatro pessoas, ou seja, duas doses neste restaurante de Vila Nova da Barquinha. Mas para as mãos de Teresa Ribeiro, e consequentemente para os pratos dos clientes do Ribeirinho, não vão quaisquer lampreias. À falta de lampreias, é sabido que alguns restaurantes se socorrem da lampreia francesa, mas a experimentada cozinheira não envereda por alternativas – “a francesa é diferente. Prefiro não ter. Não há aqui do Tejo, não há” – pelo que só compra lampreia a Rui Ferreira, ou a outros pescadores do Tejo.
Consequência disso é que este ano ainda só teve 10 a 12 lampreias este ano para vender no restaurante, embora os apreciadores sejam muitos e estejam sedentos de provar as lampreias que o ano de 2022 tenha para oferecer, as quais no entanto parecem ser poucas. Resultado da conjugação destes fatores é a grande lista de espera que Teresa Ribeiro tem junto ao telefone para ligar às pessoas conforme for tendo lampreia para satisfazer os pedidos.

Mas não esqueçamos o sável. Este peixe acaba por ter ainda mais procura do que a lampreia, uma vez que, como se costuma dizer, a lampreia “ou se adora, ou se odeia”, pelo que são recorrentes e anuais as situações em que aparecem clientes para provar lampreia:
“As minhas colegas vêm-me sempre dizer que estão ali uns senhores que querem comer uma dose de lampreia mas nunca comeram, pelo que se ainda tiver um pouco de arroz mando sempre para as pessoas provarem primeiro, porque ou se adora ou se odeia, não há meio-termo. O sável toda a gente gosta”, diz Teresa Ribeiro.

Mas o sável este ano também ainda não deu sinais de si, pelo que aquele que Teresa Ribeiro tem estado a usar no restaurante é todo do Alqueva, também de pescadores. Na preparação, começa por escamar o peixe, o qual tem escamas em abundância. A cozinheira do Ribeirinho coloca-o depois um pouco no congelador, de modo a ficar mais fácil de parti-lo e de modo a não ficar amassado. Tira-lhe o sangue, retira as ovas para o lado, lava bem o peixe e tempera-o com sumo de limão e sal, para desfazer as espinhas.
Teresa Ribeiro coze também as cabeças e os rabos do peixe, de forma a aproveitar a água dessa cozedura para demolhar o pão para a açorda. Depois faz o refogado, “à bela maneira alentejana”, e mistura as ovas. O peixe, por este altura, já é só ser colocado a fritar.

São já 28 anos deste festival gastronómico barquinhense, e Teresa Ribeiro participa desde a primeira edição, “estou velhota, desde a primeira que já participo”, diz brincalhona.
“E sim, é muito bom estarem a telefonar de longe, para virem cá de propósito”, diz a cozinheira, exemplificando com o caso de um grupo que todos os anos vem da Marinha Grande até Vila Nova da Barquinha para provar as iguarias que o rio Tejo – em conjunto, claro, com pescadores e cozinheiros – coloca à mesa para que possam degustar.
A Importância do Festival
“Valorizar os produtos endógenos do nosso rio, o rio Tejo, e também o rio Zêzere” é logo um fator apontado por Fernando Freire, presidente da Câmara Municipal de Vila Nova da Barquinha para a importância da realização deste festival gastronómico.

Embora a falta de peixe no rio – e apontando para outras soluções a que os restaurantes podem recorrer, como a oferta de lampreia do estrangeiro, como já foi referenciado – o autarca refere que o município não quis deixar de comemorar e de realizar o festival “até pela situação pandémica que vivemos nos últimos dois anos, com grandes danos colaterais em termos comerciais para os estabelecimentos comercias e restauração, e queríamos também aqui no fundo tentar ajudar com este festival de promoção, no sentido de criar mais valias e mais riqueza para a restauração, que bem precisa nestes tempos que correm”, explicou Fernando Freire.
Mas ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o contributo deste festival para o concelho vai também para lá da restauração, uma vez que, da participação no evento, decorre também a oferta de bilhetes para visitar o Castelo de Almourol e para o Centro de Interpretação Templária (um bilhete por dose), valorizando assim o concelho e o que este tem para mostrar.

“E isso, com este parque, esta natureza, este bem-estar, convido todas as pessoas a virem visitar Vila Nova da Barquinha, a saborearem os peixes do rio – não só o sável e a lampreia, que também temos o barbo, temos a fataça, portanto outras variáveis de peixes autóctones, no sentido de também dinamizar e criar riqueza para o território, esse é o nosso grande objetivo”, terminou o autarca barquinhense.
Consulte os pratos disponíveis nos restaurantes aderentes ao Mês do Sável e da Lampreia:
- Restaurante Almourol (Tancos) – Tel. 249720100 – Pratos: Lampreia com arroz de cabidela; Lampreia com batatinhas em forno de lenha; Arroz de cogumelos com lampreia; Sável frito com açorda de ovas.
- Restaurante Loreto (V.N. Barquinha) – Tel. 913868147 – Pratos por encomenda: Arroz de lampreia; Sável frito com açorda de ovas.
- Restaurante Ribeirinho (V.N. Barquinha) – Tel. 249712292 – Pratos: Arroz de lampreia; Sável frito com açorda de ovas.
- Restaurante Sabores do Parque (V.N. Barquinha – aberto ao domingo) – Tel. 249726272 – Pratos: Arroz de lampreia; Sável frito com açorda de ovas.
- Restaurante STOP (Atalaia) – Tel. 249710691 – Pratos: Sável frito com açorda de ovas, Lampreia com arroz de lampreia.
- Restaurante O Trindade (V.N. Barquinha) – Tel. 916306351 – Pratos: Arroz de Lampreia; Lampreia à Bordalesa; Açorda de ovas com sável frito.
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