Coroação da Virgem Maria/ Crédito: Pintura de Raúl Berzosa

De personagem irrelevante para os evangelistas canónicos dos primeiros séculos, Maria, com a sua transformação em “Mãe de Deus” e, posteriormente, em “Virgem Mãe de Deus”, impulsionou um processo milenar de virginização que transitou de pontual a perpétuo e abrangeu todas as pessoas que com ela se relacionam: José, João, Jesus e, até os próprios pais.

Fazendo-a participar de uma dupla valência que assume simultaneamente, como Mãe e Virgem, é significativamente eficaz nos dois contextos cultuais onde participa, mais precisamente Virgem para a Igreja (servindo, assim, de modelo de pureza e imaculismo) e Mãe para os mais diversos crentes, onde assenta, afinal, a razão dimensional da sua intensa devoção popular, criando um peculiar paradoxo pastoral.

Uma religião especialmente misógina, que afastou coercivamente a mulher do sagrado institucional, vê-se hoje plasmada de uma realidade de género algo chocante: uma hegemonia cultual feminina que não passaria pela cabeça a um partidário da menorização das mulheres como Paulo de Tarso ou, em tempos posteriores, a muitos (quase todos) dos assim chamados “padres da igreja”, à semelhança de Tertuliano, Orígenes, Justino “O Mártir”, Clemente de Alexandria, Cipriano de Cartago ou Agostinho de Hipona. Entre muitos outros.

E cuja subversão doutrinária por parte do teólogo Prisciliano bem contribuiu, afinal, para a execução por decapitação do mesmo, nos fins do século IV, por ordem do Imperador e a pedido dos bispos reunidos no Concílio de Bordéus!

Não admira, assim que, hoje como ontem, tais ideias continuem a gerar diversas reações de incómodo e desconforto.

Ora, encontra-se  neste momento no prelo um estudo de  minha autoria que se debruça sobre esta matéria. A personagem Maria, o respetivo culto e o percurso histórico mítico que a envolve e que, da algo insignificante Mãe de Jesus, há de evoluir até se ver consagrada como “Rainha do Céu”.

Debruçado sobre o mítico evangélico, o estudo aborda temáticas bíblicas que, com Maria, possuem relações diretas ou indiretas. Incongruências temporais e territoriais  do Natal, a questão candente dos “irmãos do Senhor”, a situação matrimonial de Jesus, as relações difíceis com a família, o equívoco virginal, o parentesco com Barrabás, etc…

E, igualmente, o seu percurso cultual e respetivas devoções nas sociedades mediterrâneas em que a habitualidade cultual de género foi, afinal, determinante.

Denominada “Maria: O Retorno da Virgem Mãe”, tem a chancela da Editora Ego e prevê-se, a respetiva saída, lá para inícios do mês de Abril.

Aurélio Lopes

Investigador universitário na área da cultura tradicional, especialmente no que respeita à Antropologia do Simbólico e à problemática do Sagrado e suas representações festivas, tem-se debruçado especialmente sobre práticas tradicionais comunitárias culturais e cultuais, nomeadamente no que concerne à religiosidade popular e suas relações sincréticas com raízes ancestrais e influências mutacionais modernas. É Licenciado em Antropologia Social, Mestre em Sociologia da Educação e Doutorado em Antropologia Cultural pelo ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa.

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