Por Cláudia Gameiro, enviada especial a França
Há 100 anos, pelas 04h15 da madrugada de 9 de abril de 1918, numa ofensiva desesperada alemã para conquistar a frente da Flandres, cerca de 16 mil soldados do Corpo Expedicionário Português foram surpreendidos com uma tempestade de artilharia e posterior avanço de tropas – a operação Georgette – que terá feito entre quatro centenas a um milhar de mortos e cerca de 6 mil prisioneiros de guerra. A Batalha de La Lys foi o maior desastre militar português depois de Alcácer-Quibir. Os militares que acabaram capturados ou se renderam aos alemães foram desprezados e recebidos depois em Portugal com embaraço. Dos que morreram a combater, narra-se com orgulho uma vida que não chegou a ser vivida. Sobre os que lutaram e regressaram, reivindica-se uma honra que não chegou a ser louvada. Hoje recordamos as histórias dos torrejanos que combateram pela pátria, sem saberem bem porquê, caminhando ao lado dos seus familiares pelos frias terras francesas onde tombaram e foram sepultados.
“Saímos hoje de manhã. Às 4 da madrugada rompe um dilúvio de metralha tão formidável, como nunca vi nem sonhei. A tempestade de ferro durou horas (…) Depois, ao vir da manhã atacaram. Atacaram em massa, às ondas, sempre em ondas, uma catadupa de homens. Só muito perto os vimos surgir do nevoeiro espesso da manhã. De nós, os que ficámos, raros intactos, resistimos até à última. Houve cargas de baioneta. Uma fúria! (…). A seguir abateram ou manietaram tudo à força de número. Vi junto de mim, ali ao pé, oficiais alemães, pistola em punho, atirando sobre os poucos que tentavam salvar-se. (…) É o Alcácer-Quibir do CEP!(…)”
in Memórias da Grande Guerra, Jaime Cortesão
VÍDEO
Às 04h15 de segunda-feira, 9 de abril de 2018, a comitiva torrejana sai de Rambouillet, cidade geminada com Torres Novas. As cerimónias do centenário da Batalha de La Lys, no Cemitério Militar Português de Richebourg, estão agendadas para as 10h30, com a presença dos Presidentes da República de França e de Portugal, assim como do Primeiro Ministro António Costa, e é necessário chegar com relativa antecedência para ocupar o lugar reservado.
A viagem até à Flandres francesa, a partir da região de Paris, dura cerca de cinco horas, a que acrescerá todo o processo de identificação e controlo. Em alerta contra o terrorismo, o rigor do dispositivo de segurança gaulês surpreende os portugueses.
Parte-se para Richebourg no momento exato do centenário e depressa começa a cair uma chuva miúda e um nevoeiro denso esbate a paisagem, já obscurecida pela madrugada. Assim terá sido há 100 anos, como referem os registos existentes. O nevoeiro escondeu a chegada das centenas de soldados alemães nos campos lamacentos do vale do rio Lys.
Nas cerimónias em La Lys, Marcelo Rebelo de Sousa assegurou aos descendentes ali presentes que a morte dos seus familiares não foi em vão. Desse sacrifício “também se fez a glória de Portugal, a vitória da França e o futuro da Europa”.
Por muito que se leia sobre o tema, só se tem noção do que terá sido a vida dos soldados portugueses na Flandres ao chegar-se à região das trincheiras. O terreno pantanoso e uma humidade latente que enregela as extremidades é mais que percetível numa manhã em que o nevoeiro cobriu a paisagem de um branco translúcido. Só perto do meio-dia o sol descobre.
Sente-se o cheiro da terra molhada e imagina-se o som das bombas e os gritos dos homens. À nossa volta, terra ampla, verde, e um silêncio de primavera a receber os torrejanos. A comitiva tem que andar ainda um quilómetro a pé até ao cemitério. Algo perdido no meio do campo, é um registo isolado da passagem da guerra. É um entre muitos. Um pouco por toda a vila e região circundante sucedem-se cemitérios militares.
Sente-se o cheiro da terra molhada e imagina-se o som das bombas e os gritos dos homens. À nossa volta, terra ampla, verde, e um silêncio de primavera a receber os torrejanos. A comitiva tem que andar ainda um quilómetro a pé até ao cemitério. Algo perdido no meio do campo, é um registo isolado da passagem da guerra.
Entra-se e o grupo torrejano dispersa entre a multidão, procurando o melhor local entre as mais de 1800 campas enfileiradas para assistir às cerimónias. João Pereira, 89 anos, ocupa a última fila dianteira antes da secção dos jornalistas. Boina na cabeça, casaco negro comprido, cachecol ao pescoço, um cravo tricotado na lapela que lhe ofereceram em Rambouillet. Está sem palavras, confessa, nada pode dizer neste momento.
João Pereira é a figura central da comitiva torrejana. O seu pai, João Francisco Rosa, nasceu em Carvalhal do Pombo, freguesia de Assentis, e aos 23 anos foi colocado na frente de Flandres como telegrafista. Na madrugada da batalha de La Lys deu por si rodeado de alemães, depois do estrondo da artilharia. Tendo contactado a central, ter-lhe-ão dito para aguardar a contra-ofensiva. Ele aguardou dois dias, passou fome, o colega desapareceu e ia morrendo debaixo de uma granada quando os britânicos começaram a contra-atacar.
Ficou sem nada. Em cartas que escreveu à família, pedia fotografias dos pais e da namorada, futura mãe de João Pereira, para lhes poder recordar o rosto.
A caminho de La Lys, narrando a história, João Pereira emociona-se muitas vezes. O pai ficou sozinho em território alemão, sobreviveu como pôde e o seu ato de bravura nunca foi reconhecido. Só voltaria a Portugal em 1919, tendo ficado a aguardar a chegada de novas tropas.
À família e ao filho narraria as muitas injustiças da guerra, onde o soldado raso se arriscava e morria e a alta patente recebia a glória. “O mérito era para os que não faziam nada”, comenta João Pereira.
João Francisco Rosa era telegrafista na frente de batalha de La Lys e ficou sozinho em território alemão. Teve ordens para permanecer no local dois dias, debaixo de fogo de artilharia, mas ninguém o foi buscar. Sobreviveu como pôde e só conseguiu regressar a Torres Novas quase um ano depois. O seu ato de bravura nunca foi reconhecido.
Mas também houve histórias de convívio, até com o inimigo. João Pereira lembra que o pai contava que se estava sempre a meter com os alemães. Um dia, saltaram ambos as respetivas trincheiras e encontraram-se na Terra de Ninguém. “Trocaram cigarros”, um dos momentos de confraternização que fizeram a história da Grande Guerra.
A viagem da comitiva de Torres Novas para celebrar o centenário do La Lys foi assim “muito especial” para o torrejano, hoje a viver em Lisboa. “Significa ir ao sítio e ao lugar onde o meu pai quase perdeu a vida”, afirma. Há anos que procura nos arquivos militares o registo telegráfico do pai a informar que estava só e que os alemães haviam saltado a trincheira. Dizem-lhe que não há nada sobre tal episódio. João Pereira tem dúvidas que seja verdade. O pai “foi um homem corajoso que cumpriu o seu dever” e deveria ser recordado pelo seu ato de bravura.
Maria de Lourdes Monteiro tem uma fotografia do tio, António Francisco Monteiro, com cerca de 19 anos, antes de partir para a Guerra. Rapaz bem-apessoado no seu traje militar, de bigode, aparenta ter o dobro da sua idade. A descoberta de cartas antigas enviadas por este de França para a família terá marcado um sobrinho-bisneto que as encontrou. Quando morreu, o tio-bisavô era mais novo que ele.
Há um mistério na família Monteiro. A namorada que António deixou em Portugal logo o trocou por outro, facto que deixou muito zangada e preocupada a mãe. O soldado mandou então um postal com uma fotografia de uma jovem francesa, dando a entender à progenitora que já arranjara outra namorada. Se a tal jovem existiu mesmo ou foi apenas uma forma de um filho tentar descansar o coração preocupado da mãe é um debate que mobiliza a família.

António morreu em junho de 1918, de doença, não se saberá se de alguma consequência da batalha de La Lys. Está sepultado em Richebourg. Maria de Lourdes levou a fotografia do tio emoldurada para deixar no Museu local. No cemitério, recordou emocionada o desgosto da avó com a morte do filho em terras francesas. “Eu vim 100 anos depois concretizar uma missão. E aqui estou a prestar essa homenagem.”

Vítor Castelo Lopes tem família em Riachos e descobriu há alguns anos que um tio, Manoel Castelo Lopes, estava sepultado em Richebourg e já se dirigiu por várias vezes ao cemitério para o homenagear, havendo ali uma foto do soldado.
Maria Isabel Pereira teve o pai, José Lopes Pereira, a combater em África, uma guerra mais sangrenta que a de Flandres, entre 1914 e 1918, tendo querido também prestar a sua homenagem.
Estas foram algumas das histórias que acompanharam a comitiva torrejana na sua viagem a França e que tiveram o seu culminar emocional nas cerimónias no Cemitério Militar de Richebourg de segunda-feira, 9 de abril, onde o núcleo de Torres Novas da Liga dos Combatentes também deixou uma coroa de flores.

No seu discurso, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, asseguraria aos descendentes que a morte dos seus familiares não foi em vão. Desse sacrifício “também se fez a glória de Portugal, a vitória da França e o futuro da Europa”.
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Mas os milhares que ficaram nas matas de África nem as suas campas tem limpas.Não poderão regressar porque para o regime fascista de Salazar tudo tinha preço e o “regresso” numa caixa de pinho chegava aos 11.000$00 (55 euros) mas que na época era uma fortuna para a esmagadora maioria das famílias que viviam quase de agricultura de subintendência nas aldeias. E hoje? Hoje somos visto como alvo a abater, incomodamos porque somos a lembrança de uma época negra, mas retirando as palavras douradas de TODOS os políticos desde o 25 de Abril NADA se fez para reparar o que nos roubaram.