É sentada debaixo da enorme pinheira à entrada da vila que vos escrevo. Tenho as memórias de infância no regaço e na boca o sabor dos cachos com as uvas mais pequeninas, doces e douradas que já provei. Estamos no fim do verão, tempo de vindimas. Enquanto pais e avós se ocupam dos afazeres habituais, entretém-se a gente pequena catando pinhões por entre as carumas, mascarrando as faces como os índios dos desenhos animados com a fuligem acastanhada das cascas, abrindo-as com pequenas pedras, fazendo pequenos montinhos das caprichosas sementes, assim haja perícia e paciência para ver o monte crescer; e despejando-as, a seu tempo, goela abaixo.
É nas tardes de setembro passadas a descascar pinhões na antiga vinha do avô que começam as minhas lembranças do lugar onde é sempre verão: Sardoal, a linda vila jardim. Nas minhas melhores memórias de infância, vá lá eu perceber porquê, é sempre verão: há cigarras escondidas nas hortas e cabeços, burritos à roda de uma nora, alcatruzes que transportam água e alfaiates, regos desenhados na terra num labirinto de cortadouros até ao canteiro dos feijões, pés descalços, cheiro a resina, cachos de uvas e tesouros cor de marfim escondidos dentro de pinhas.
É assim o ‘meu’ Sardoal, um lugar com as portas escancaradas ao sol, onde vivem flores de todas as cores, ruas feitas de luz e alegria, travessas e recantos encantados, fontes mágicas, casas felizes e gente boa.
É possível que a minha amiga Marta, recém-chegada a Lisboa depois de percorrer a estrada mais famosa do país em reportagem para a revista onde trabalha, não tenha tido tempo para descobrir tudo isto, mas é verdade que me disse que o Sardoal foi a vila que mais a surpreendeu. Falou-me com entusiasmo das pitorescas ruas da zona histórica, dos vasos floridos e sobretudo do casario bem cuidado.

É lindo, o Sardoal, confirmo. Tens de lá voltar, digo eu, e ela promete que sim. Tens de subir à Igreja e Convento de Santa Maria da Caridade, passar pelo Centro Cultural Gil Vicente e conhecer o trabalho dos artesãos locais no espaço ‘Cá da Terra’, espreitar as capelas, tantas e tão ricas, caminhar até ao Pelourinho, demorar-te na zona da Cadeia Velha, descer ao Chafariz das Três Bicas, subir ao adro da Igreja Matriz, trilhar as ruas até à Praça Nova, provar as tigeladas.
É preciso que se olhe para dentro ao invés de cobiçarmos o que vemos lá longe. Bendita Nacional 2 que deu a conhecer o Sardoal à minha amiga e ela, através da revista, partilhou a sua experiência e passou a palavra. Oxalá o Sardoal tenha a atenção que merece. Se há 3 anos a revista Evasões publicava um artigo sobre este pedaço de Ribatejo improvável e quase esquecido afirmando que se tratava de um recanto semi-esquecido a norte de Abrantes, hoje, parece-me, já não é bem assim. É diferente, pra melhor.

É incrível perceber como tanta coisa mudou desde o tempo em que me sentava junto ao muro caiado da quinta, delicada e minuciosamente a abrir pinhões durante os dias da vindima, ainda mais desde o ano em que Penhascoso, e por conseguinte a minha aldeia também, deixou de pertencer a Sardoal para integrar o concelho de Mação (foi em janeiro de 1898), desde que nobres e reis por ali se passearam – e, recuando ainda mais, se construíram ruas e ergueram solares (em 1531 foi o lugar elevado a Vila por D. João III) ou, nos primórdios, recebeu o Sardoal o primeiro foral. Na sua essência, a vila continua igual.
É terra de bom viver, de uma humanidade sincera e genuína, que não abdica da simplicidade, não se envaidece das suas maravilhas, não se deixa deslumbrar. Sardoal não quer ser mais do que é; e isso, parecendo que não, é já tanto. É mesmo.
