Foto: mediotejo.net

A manhã de sexta-feira, dia 1 de setembro, estava soalheira. Havia fila no interior da extensão de saúde de Mouriscas e algumas pessoas sentadas na sala de espera, dirigindo-se à administrativa para solicitar receitas médicas e outros, e aguardando consulta médica.

A sensação dos utentes era de algum alívio por ter voltado a contar com uma cara conhecida, uma vez que António Proa, ali médico de medicina geral e familiar há cerca de 40 anos, voltara a garantir consultas à população três manhãs por semana, integrado no Projeto Bata Branca.

António Proa mostrou-se visivelmente bem-disposto, expectante e ciente da importância de voltar a disponibilizar-se para atender estas pessoas, há longos meses sem médico de família e a necessitarem de garantias de cuidados de saúde primários.

“Acho que vai correr bem, fiquei contente de me terem convidado e de o projeto ter ido para a frente. Vamos começar de novo, é um novo princípio”, disse, admitindo ter como vantagem o facto de conhecer bem a população e o staff, tanto administrativa como enfermeira.

O médico aposentado António Proa, que exerceu na extensão de saúde de Mouriscas durante cerca de 40 anos, regressa ao atendimento da população ao abrigo do Projeto Bata Branca. Foto: mediotejo.net

“As pessoas já me conhecem, eu já conheço as pessoas. Já são quase 40 anos que estive aqui, penso que vai correr bem”, sublinhou. As consultas da primeira manhã estavam em suspenso uma vez que havia um problema no sistema informático.

António Proa diz ter-se sentido bem acolhido de volta, com as pessoas a cumprimentarem e a mostrarem-se contentes com a sua presença de novo no polo de saúde da freguesia, sendo certo que não foi novidade uma vez que a comunidade já aguardava com expectativa e ansiedade o seu regresso, ainda que noutros moldes.

Quanto ao novo Projeto Bata Branca, o médico experiente diz que “é uma solução muito engraçada, porque o panorama está muito mau, e eu propus assumir funções quando me reformei, e a proposta que me foi feita inicialmente foi muito má. Entretanto com o contacto com o presidente da Câmara e do ACES Médio Tejo penso que foi uma solução para se ultrapassar o problema”.

António Proa referiu ainda o facto de existir o pagamento pelo serviço prestado, relevando o esforço que representa por voltar a exercer depois de estar aposentado.

O médico foi recebido no local por uma comitiva constituída por membros das diversas entidades parceiras neste projeto, que está a arrancar pela primeira vez na região, tanto em Abrantes como em Ourém, dois dos concelhos mais carenciados no que toca a médicos de medicina geral e familiar.

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Na sala de espera estava Maria Manuela, de 75 anos, que diz que teve de recorrer a médica particular para poder garantir o seu acompanhamento médico enquanto a extensão de saúde de Mouriscas esteve sem clínico.

“Foi onde consegui desenrascar-me. Ouvia queixarem-se que estava tudo cheio e passavam horas à espera. Uma chatice”, lamentou.

“Estou praticamente cega, e faz falta este acompanhamento. Além de que tenho problemas de coluna, de ossos. Hoje venho para mostrar uma radiografia nova. Uma pessoa praticamente sem ver, sozinha, onde é que a gente vai?”, questiona, indicando a “dificuldade de transporte”.

“São as camionetas de Abrantes que vêm buscar os estudantes, quando há escola. Quando não há, não há muito transporte. Aqui estamos longe de tudo, e a falta de médico é muito mau. Faz muita falta”, assume.

Com o atendimento três manhãs por semana considera que “já é bom”, além de já conhece o médico “há muitos e muitos anos”. “Esperemos que corra tudo bem”, diz, em entrevista ao nosso jornal.

Nesta manhã também Manuel Jorge Valamatos, presidente da Câmara Municipal de Abrantes, veio apresentar cumprimentos ao médico de família e referiu-se a “um dia simpático”, mas que “não é completamente feliz porque ainda há muito trabalho para fazer, e ainda há muitos utentes e cidadãos que estão sem médico de família, portanto não estamos totalmente satisfeitos. Mas hoje é um sinal de grande motivação para continuarmos a trabalhar com o ACES Médio Tejo e Ministério da Saúde, a quem compete a colocação dos médicos no SNS”.

ÁUDIO | Manuel Jorge Valamatos, presidente da CM Abrantes
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A autarquia entende que lhe compete “ajudar e ser parte integrante da resolução destes problemas” em articulação com as entidades competentes. “É isso que vamos continuar a fazer: ajudar e colaborar”, sublinhou.

Em causa está a implementação do Projeto Bata Branca, agora em primeiro lugar, a título experimental, implementado em Mouriscas e que irá ser avaliado durante a sua vigência e reajustado se necessário for.

“Há uma parte do ordenado do médico que é pago pelo Ministério da Saúde e há uma parte suportada pelo Município para reforçar e ter capacidade de competir e captar médicos para esta função”, explicou Manuel Jorge Valamatos. No caso de Mouriscas, o vencimento do clínico é comparticipado pelo Município é feito através de um protocolo realizado com a ACATIM – Associação Comunitária de Apoio à Terceira Idade de Mouriscas.

Para Manuel Jorge Valamatos este novo passo em Mouriscas representa “uma dupla satisfação porque recuperámos o médico que fez aqui serviço durante quase 40 anos, o Dr. António Proa, um excelente profissional, que empresta a sua competência outra vez à comunidade, o que facilita imenso toda a orgânica e relacionamento com os utentes”.

O presidente de Câmara referiu que para já, com três manhãs por semana, o problema está mitigado, mas a capacidade de resposta e trabalho será acompanhado “para procurar outras estratégias e ir acompanhando em função das necessidades”.

“Este é um bom exemplo para o que precisamos replicar noutros pontos do concelho”, afirmou Manuel Jorge Valamatos. A autarquia está disposta a atuar para colmatar a ausência de médicos de família em diferentes freguesias do concelho, seja através do Projeto Bata Branca ou outros projetos.

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“Vamos continuar a conversar e diligenciar no sentido de recuperarmos médicos para o nosso território”, notou, dando conta que já decorrem conversações com outros médicos e como ACES Médio Tejo neste ponto.

O autarca fez ainda menção ao facto de a CM Abrantes estar a trabalhar com o Ministério da Educação no projeto de requalificação e ampliação da Escola das Hortas, em Alferrarede, para a transformar numa Unidade de Saúde Familiar (USF) e dessa forma ter capacidade de atrair médicos para um novo modelo de médico de saúde familiar e que terá obviamente uma resposta mais capaz e robusta, a exemplo do que acontece com a USF D. Francisco de Almeida e a USF Beira Tejo, em Rossio ao Sul do Tejo”.

Esta nova USF, segundo o edil abrantino, irá responder à zona de Alferrarede mas também aos polos de saúde de Mouriscas, Carvalhal e Rio de Moinhos. “Queremos uma USF Norte com uma nova linguagem de gestão dos médicos em equipa, mas queremos manter os polos nas diferentes localidades, garantindo cuidados de saúde mais próximos da comunidade, a exemplo do que fazemos na USF Beira Tejo, com polos no Tramagal e Bemposta”.

É intenção do Município de Abrantes alargar o projeto “Bata Branca” a outros locais do concelho, estando a trabalhar em conjunto com o ACES do Médio Tejo neste âmbito, ainda que a diretora executiva do ACES reconheça tratar-se de “uma solução de recurso”.

Diana Leiria, coordenadora do ACES Médio Tejo, integrou a comitiva que esteve esta manhã em Mouriscas a marcar o primeiro dia de implementação do projeto e o regresso de António Proa à extensão de saúde, e mencionou que esta solução “permite atenuar a dificuldade que temos em conseguir atrair novos médicos de família para ir substituindo todos os que se vão aposentando”.

ÁUDIO | Diana Leiria, diretora executiva do ACES Médio Tejo

Fazendo menção ao “drama” que se vive em vários concelhos do Médio Tejo e no geral em todo o país “abaixo do Mondego” no que toca à falta de médicos de família, Diana Leiria disse que existiu uma avalanche de saídas de clínicos cujas idades eram muito próximas e similares, sendo que se foram aposentado nos últimos anos com o ritmo de entradas a não compensar o número de saídas.

“Todos os anos vamos acumulando um défice de médicos que nos impossibilita de dar resposta a todos os nossos utentes. Por outro lado verificamos, como noutras instituições do SNS, muita dificuldade em atrair pessoas mais jovens, que têm outras opções neste momento, e temos muita concorrência no mercado, designadamente com os privados. Nem sempre conseguimos cativar”, assumiu a diretora do ACES.

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Quanto ao Projeto Bata Branca, disse ser “um bom exemplo de uma parceria entre várias entidades, entre o setor público e o setor social”, no sentido de tornar “mais atrativo o regresso de alguns médicos aposentados ao SNS, que são ainda uma mais-valia muito grande; são pessoas que para além de serem especialistas, têm uma experiência longuíssima, no caso concreto, o Dr. Proa foi aqui médico de família a vida toda, portanto também conhece muito bem os doentes e famílias e é o conceito base de saúde familiar. Acho que vai correr muito bem”.

No que concerne ao alargamento do projeto a outras localidades com esta carência, Diana Leiria mostrou disponibilidade do ACES para apoiar “sempre que possível e onde não haja outras opções”, uma vez que “o que gostaríamos mesmo era conseguir renovar os quadros”.

“Penso que a nossa tutela [Ministério da Saúde] está completamente disponível para encontrar soluções que permitam aos utentes ter uma resposta e uma boa resposta. No ACES Médio Tejo, com o Projeto Bata Branca, temos tido a preocupação, quer da nossa parte, quer das instituições, quer das Câmaras, a ir buscar médicos de medicina geral e familiar, porque isso dá-nos uma garantia de qualidade”, sublinhou.

Diana Leiria diz perceber que “a pressão é muito grande e as pessoas querem um médico, mas nós também temos de manter os nossos padrões de qualidade, porque se não os mantivermos ainda vai ser mais difícil captar jovens profissionais para trabalharem connosco”.

Sobre a disponibilidade de verbas pela administração central, a responsável lembrou que muitas das vagas que abriram no concurso para médicos para o ACES Médio Tejo eram vagas carenciadas, e mesmo assim não foram preenchidas.

“É mesmo uma questão de incapacidade de atrair jovens médicos que, aliás, a grande maioria é do Norte e concorrem para lá. Um dos problemas também – enquanto as aposentações seria algo que se pode prever, basta olhar para a idade das pessoas – são as exonerações que vão acontecendo. Não eram previsíveis”, notou.

“Em cada ano os médicos que cá estão connosco e que são do Norte, sempre que está a aproximar-se um concurso e veem que têm possibilidades de entrar, exoneram-se para poder concorrer. Todos os anos, no final do ano em que há concurso, e na primavera, tenho várias exonerações”, deu conta Diana Leiria.

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Questionada pela nova Unidade Local de Saúde (ULS) do Médio Tejo, Diana Leiria explicitou que já foi entregue um plano de negócios, que não tem para já qualquer tipo de estratégia que venha ajudar a atrair médicos para o território.

“Eventualmente, a vantagem que eu vejo é termos a gestão mais próxima do local com, espero eu, maior autonomia do que temos agora. Com uma capacidade de contratação mais rápida”, indicou, exemplificando.

“Tenho neste momento oito propostas de contratação de médicos aposentados paradas no meio da burocracia em Lisboa. Não é célere. Tenho um desde maio. Sei que, do ponto de vista burocrático e dos processos, não é muito tempo. Mas do ponto de vista de quem está no terreno, sejam os utentes, sejam os outros profissionais que são também muito pressionados pela falta de médicos, como devem calcular, e eu própria… para nós é uma eternidade. E este tipo de processos, que muitas vezes tem que ver com contratação pública e questões legais que são inultrapassáveis, mas que acabam por prejudicar. Muitas vezes quando vamos buscar a pessoa, quando vem a autorização, a pessoa já não está interessada”, assumiu.

Sobre que mudanças acontecerão a partir de janeiro de 2024, com a prevista entrada em vigor da ULS Médio Tejo, Diana Leiria disse que terá de se aguardar pela publicação do diploma legal que atualmente desconhece.

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Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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