Desde que o núcleo designado Castelo de Ourém e Paço dos Condes foi reaberto ao público a 27 de julho, depois de uma obra de requalificação que durou dois anos e custou mais de 2 milhões de euros, as redes sociais andam agitadas. Embora muitos internautas estejam satisfeitos com o trabalho de restauro, há quem critique a forma como se introduziram elementos do “moderno”, assim como uma limpeza excessiva das pedras, destruindo em parte a ilusão de um castelo medieval bem preservado.
“Não é para ser assim mexido. Na história não se mexe.” O comentário é de uma jovem visitante à chegada ao Castelo de Ourém. A ideia subjacente – a de que a estrutura medieval perdeu alguma da sua mística histórica com a requalificação da Câmara de Ourém – vai surgindo aqui e ali nas observações que os turistas fazem aos edifícios, nomeadamente entre as pessoas mais jovens.
“Gostava mais do rústico de antigamente”, reflete ao mediotejo.net Maria de Lurdes, uma emigrante natural de Seiça. “Podiam ter feito passadiços noutro material.” Outra senhora comenta em francês que lamenta a perda de certos elementos do “antigo” que davam ao espaço um cunho mais romântico.
Já para os mais velhos, os passadiços metálicos, as escadas remodeladas, a retirada de calçada e a limpeza algo excessiva de paredes não fazem tanta confusão. “Tudo muito bonito. Valeu a pena o investimento que fizeram aqui”, reflete Manuel Reis, que não está incomodado com o cruzamento do moderno com o antigo. “Parece novo”, comenta Américo Marques, que vê na intervenção uma mudança inevitável face às exigências dos novos tempos.
Nas visitas apressadas ao Castelo, poucos são os turistas que aceitam falar com o nosso jornal. O Castelo continua a ser, para todos os efeitos, uma velha fortaleza em ruínas e ninguém parece ter muita vontade de dar uma opinião sobre as obras, que vieram trazer outros elementos de atração ao monumento.
Ao conversarem informalmente com o mediotejo.net, a queixa principal prende-se com a lotação das visitas guiadas, que inibiram muitas visitantes na tarde de quinta-feira, 7 de julho, de ver as partes interiores requalificadas e subir ao topo dos torreões para ver a paisagem oureense, uma das novidades desta reabilitação.
A discussão é mais acesa no Facebook. “Isto é restauro? Seria tão bom se déssemos valor aquilo que é nosso e cuidássemos das coisas com cuidado, calma e atenção afinal de conta é património!! Tornar acessível é uma coisa, descaracterizar é outra!!!!”, afirma um comentário publicado no post com fotografias da reabilitação da página da Câmara de Ourém.
Noutro comentário pode ler-se: “Na minha opinião, NUNCA Património Cultural deveria autorizar esta abordagem de ‘restauro’. Isto é inacreditável para um país europeu e membro das mais importantes instituições de defesa do património mundial. Querem fazer experiências com arquitetura ‘moderna’, dará vontade de dizer… comprem LEGO”.
Há ainda acusações mais objetivas: “Porquê?? Porque tapar escadarias com séculos de histórias com cimento? Porquê alagar um jardim com brasão dos mais bonitos e fazer outro do mais simplista que há? Porque encher as ‘paredes’ de cimento e não deixar as pedras originais intactas? Não faz sentido algum”.
Fotogaleria | Demasiado moderno?
Entre os comentários há também quem elogie o esforço de conservação do edificado, embora não concorde com a abordagem, e imensos comentários de parabéns e desejos de uma próxima visita.
Uma ilusão medieval deixada pelo Estado Novo
As origens do Castelo de Ourém são de difícil datação, mas terá nascido de uma fortificação medieval que foi aproveitada no século XV para albergar o paço de D.Afonso, IV Conde de Ourém, neto de D.Nuno Álvares Pereira. Este aristocrata marcou um dos momentos históricos mais dinâmicos da história do concelho e deixou a estrutura que hoje é conhecida por Castelo e Paço dos Condes.

Mas nos anos 30 o edificado estava em ruínas, com os torreões frontais parcialmente destruídos. Dessa época há registo no SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico, que possui todo um catálogo de fotografias do final da década, quando o Castelo, à semelhante de muitos outros a nível nacional, começou a sofrer fortes obras de intervenção, onde o objetivo era recuperar a mística de nação heróica tão defendida pelo Estado Novo.
Assim nos confirma Luís Miguel Correia, arquitecto e investigador com trabalho académico em torno das transformações sofridas pelos castelos, em particular no período da ditadura. “Entre 1929, data da criação da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Históricos, e 1949, mais de nove dezenas de castelos foram intervencionados em Portugal”, explica, um projeto que partiu do estado central e foi “consertado” por forma a atingir fins específicos.

O ponto alto destas intervenções, recorda, foram pois as “comemorações dos centenários”, entre 1938 e 1940, em que se festejaram várias datas relevantes em torno da criação da nação portuguesa. A ideia, continua o investigador, foi divulgar no exterior “um Portugal antigo, mas moderno”, agregando uma imagem de um “passado heróico a um presente que também se queria heróico” e em que os “castelos foram os protagonistas”.
O Castelo de Ourém, assim como o de Leiria e Pombal na mesma região, foram algumas das estruturas que receberam obras de maior envergadura no final dos anos 30, ao passo que outros castelos no país receberam obras mais pontuais. “Até ao início do século XX os castelos estavam em ruínas. Muitas eram pedreiras, onde as pessoas iam buscar pedras para construir as suas casas”, constata.

O Castelo que se encontrava antes da reabilitação levada a cabo pela Câmara de Ourém era pois o resultado de uma ilusão nacionalista medieval fabricada pelo Estado Novo, ao qual foram acrescentados outros elementos na mesma linha nos anos 80, segundo informação facultada ao mediotejo.net aquando a visita às obras. Muitos desses elementos, efetivamente, perderam-se com a presente intervenção.
Mas para Luís Miguel Correia, ao contrário de outras obras mais polémicas em castelos nos tempos que correm, há pouco que se possa apontar ao trabalho de reabilitação efetuado em Ourém, o qual conhece. “É uma obra extraordinária, de um arquiteto de qualidade, José Mendes Ribeiro”, sublinha, adiantando a sua convicção de que o projeto vai acabar por ser premiado. “Foi a pessoa certa para esta intervenção”, reitera.
“A polémica existe sempre”, comenta, na medida em que é “normal” existir alguma “perturbação inicial” depois de trabalhos de intervenção desta natureza. “O tempo ajudará a perceber a escala da obra realizada”, acredita.
Conforme destaca também Luís Miguel Correia ao mediotejo.net, “hoje há outro interesse de preservação” destas estruturas, que passa agora por “oferecer a quem vai visitar uma experiência que não seja apenas a da memória”.
Da parte da Câmara de Ourém, remetem-nos para a declaração sobre a obra lida pela vereadora do pelouro, Isabel Costa, na reunião camarária de 2 de agosto. Diz o texto que “a intervenção de reabilitação e valorização do castelo, paço dos condes e área envolvente resultou de um processo de vários anos de trabalho que envolveu a Câmara Municipal de Ourém (dono de obra), a Fundação da Casa de Bragança (proprietária), e a Direção-Geral do Património Cultural (entidade em Portugal competente e responsável pela gestão do património cultural em Portugal). Todas as soluções e decisões foram amplamente pensadas, discutidas e decididas em conjunto, de forma concertada e sustentada em legislação, cartas e convenções internacionais para o património cultural, legislação aplicada às acessibilidades e outras áreas intervenientes”.

Via Sacra de Ourém 2019 Foto: mediotejo.net
Acrescenta ainda que “independentemente das opções de autoria dos projetos de arquitetura e paisagismo, que remetem para questões de ordem estética/formal, a intervenção realizada, aprovada pela Direção-Geral do Património Cultural, entidade competente nesta área de atuação, deu cumprimento às seguintes premissas: a conservação do monumento, que constituiu o primeiro objetivo da intervenção, consubstanciado na principal área de investimento técnico de mão de obra; a melhoria das acessibilidades e segurança dos visitantes (numa gestão de compromisso entre a acessibilidade inclusiva e a salvaguarda dos bens patrimoniais, de acordo com a legislação em vigor); a eficiência energética e sustentabilidade; a musealização do conjunto monumental (processo em curso) e a sua fruição cultural”.
Pois é pah, parece que nos anos 30 sabiam mais de restauro do que agora!!!!
Lamentável, só faltou foi rebocar as pedras…..