Este ano não há Feira dos Santos, foi anunciado há dias. Para quem nunca lá foi pode ser nota de pouca monta, mas para todos aqueles que cresceram com a tradição de ir à vila em Dia de Todos os Santos, mesmo quando o feriado lhes foi roubado, a notícia é triste. A Feira dos Santos é o Natal de Mação: a casa enche-se de gente, barulho e vida, cheira a broas de mel e nozes, fazem-se as primeiras filhoses e doce de abóbora, percorrem-se as adegas dos amigos, enchem-se os copos de jeropiga, espreitam-se as oliveiras, em calhando acende-se o fogo na lareira e improvisa-se um magusto.
Quem vive longe regressa sempre, encurtam-se todas as lonjuras, põe-se as vidas em dia e arrumam-se as saudades. As conversas não têm pressa, nem as histórias, certas de que todas terão a sua vez. Não se temem as filas nem os ajuntamentos, tão pouco os beijos e os abraços. A Feira dos Santos é o Natal dos maçanicos; só que este ano, raça da pandemia, está o mundo do avesso.

Um dia haverá, talvez, em que tudo possa voltar a ser como antes, menos nós, porque não seremos já as mesmas pessoas, seremos antes a soma dos dias passados e dos sonhos adiados, a conta feita à margem do tempo e da liberdade.
Um dia haverá, acredito eu, em que lamentaremos, mais do que esta suspensão do mundo, os afetos roubados, e irremediavelmente perdidos, os abraços protelados, a míngua de ternura. E é isso, afinal, que nos vai matando já aos poucos, sorrateiramente, espoliando-nos o amor.
Espoliar: tirar ilegitimamente.
Como aceitar a ausência dos avós, dos filhos, dos netos, a privação do encontro e da partilha, a falta do sorriso e do cafuné, tudo em nome do medo, se é o amor que nos salva? O amor é vida, deve ser vivido sem reservas, sem medos, não mata. Não que esta pandemia não nos mereça respeito, pelo contrário, vivemos tempos que exigem coragem e resiliência, mas, vá lá, é preciso não hipotecar a felicidade.
Hipotecar: confiscar.
É urgente a ternura. É urgente mimar o coração. Nem que seja apenas uma fração de segundo. É urgente o carinho, o cuidado. É urgente não abandonar. Entre mortos, feridos, infetados, deprimidos e resmungões (eu), alguém se há-de salvar. É urgente resistir.
O medo atiça e seduz o pânico. O medo intimida a esperança. O medo é um ladrão de abraços que cativa a felicidade, um sacana que transformou estes dias em algo diferente de tudo o que já vivemos, um filho da mãe miserável e infeliz a quem não se pode dar confiança. O medo paralisa-nos.
Pensava nisso ainda ontem, acabada de chegar do Norte, justamente da região mais afetada pela pandemia neste momento, onde passei vários dias a acompanhar o jornalista e escritor Mário Zambujal. Fui em trabalho, para uma justa e merecidíssima homenagem à vida e obra do eterno bom malandro.
Não pensem que perdi o fio à meada, não é o caso. Além do privilégio enorme que foi acompanhá-lo, o festival literário Escritaria demonstrou que é possível fazer acontecer, dar (e receber) em segurança. Para o autor, com 84 anos e mais um bocadinho, não ir nunca foi uma hipótese. Que lição de vida, e tanta razão: o melhor lugar do mundo é dentro de um abraço. É aí que vive a felicidade.
PS – Não perdes pela demora, Feira dos Santos de Mação 2021.