Longe vai o tempo em que o Natal constituía, essencialmente, uma festa familiar e comunitária, sacro-liturgicamente enquadrada.

Feitas de tradições locais, pela sua ancestralidade, prestigiadas.

Tempo em que as aldeias, ainda, não eram globais.

Em que os sapatos cabiam nas chaminés e, as prendas, cabiam nos sapatos.

Em que era suposto o Menino Jesus descer pelas chaminés: desiderato, convenhamos, bem mais fácil de concretizar que o interpretado, hoje, pelo anafado Pai Natal.

Em que a terminologia “prenda” mal conhecia o plural.

E as mesmas constituíam um meio pontual e não um fim sistemático.

Em que o “madeiro de natal” era, para a rapaziada, ocasião de grandes diversões, comes e bebes excessivos, valentes “carraspanas”, subversões várias.

Em que a “consoada” incluía toda a família abrangendo, até, os respetivos defuntos. Para isso se colocava mais um lugar na mesa ou se deixava a mesma “posta”, durante a noite, com a luz acesa: “Para alumiar as almas”, se dizia em confidência.

Em que o presépio (se não as próprias figuras) resultava de uma construção artesanal e familiar; cujo esforço e criatividade eram motivo de apreço de familiares e vizinhos.

Em que se cantavam, “janeiras” e “janeiradas”, “cânticos natalícios” ou “reisadas”; feitos de casa em casa (especialmente pelos rapazes casadoiros) pedindo expressamente “pró Menino” ou “prós Reis” e fazendo transitar as dádivas em géneros ou dinheiro para a igreja ou, mais frequentemente no Ribatejo, para consumo próprio em animadas patuscadas.

Em que, um pouco por toda a Região, se “chocalhavam os reis” ou “corriam os reis”.

Em que se enviavam os mais novos ou mais simplórios, numa autêntica caça aos gambozinos que as, assim chamadas, “esperas dos reis” (fazendo-os pernoitar, sozinhos, altas horas da noite, em remotos e tenebrosos pinhais ou baldios), naturalmente constituíam.

Em que a “missa do galo” constituía pretexto para noitadas e “espertinas” e era alvo, quantas vezes (à semelhança das práticas anteriormente referidas), de ações de subversão próprias dos tempos solsticiais de rotura.

E se a “missa do galo” tinha resultado da cristianização da hora de inflexão solar, os cânticos ao Deus Menino substituído antigos cânticos de louvor ao astro rei, o “madeiro de Natal” (dito agora para “aquecer, o mesmo, Menino”) herdado configurações e temporalidades das fogueiras celebratórias do renascimento do Sol, as subversões se tinham transformado em “roubos rituais” e nos desacatos que personagens (“velhas”, “carochos” ou “chocalheiros”) do nordeste trasmontano ainda hoje manifestam, as ofertas ao Menino Jesus em prendas às crianças (em cada uma das quais, o mesmo está, afinal, presente) e as diversas adivinhações (“sortes”) e propiciações várias (passas, amêndoas ou bagos de romã) continuado a expressar os prodígios divinatórios que, o “tempo entre os tempos”, proporcionava,…

Se todas estas reconversões se tinham já tinha verificado, outras reinterpretações e aculturações, mais ou menos sincréticas se virão, com o tempo, naturalmente a impor.

E tal como o presépio (nos séculos XII/XIII, influenciará marcadamente o nosso cenário mítico natalício e a árvore de natal (de importação nórdica) o fez já no terceiro quarto de século XX, o Pai Natal, estereótipo publicitário (logo dotado de eficácia mediática e comercial) há-de, com o tempo, irradiar o natal tradicional (Menino Jesus incluído) para as calendas do esquecimento.

Estereótipo que, à semelhança de outras figuras mercantis como a “Barbie” ou o “GI John” (ou, entre nós, a “Popota”) incrementa todos os anos a parafernália mítica, acrescentando novos artefactos e personagens que vão, gradualmente, elaborando cenários míticos cada vez mais complexos, e alimentam utopias diversas; fomentadoras, naturalmente, de fluxos comerciais.

Transformando então, esta quadra, numa época marcada intensamente pelo consumo, em que os supostos valores morais associados ancestralmente à mesma, mal se conseguem perceber por entre uma mitologia mercantilista, prolífera e em crescimento: “pais-natais”, “mães-natais”, “trenós”, “renas”, “duendes”, “palácios de gelo”, “polos nortes” e “fábricas mágicas de brinquedos”.

Exemplo de um simbólico infanticídio contra o qual a Igreja luta, hoje, estoica e ingloriamente.

Em que o dinheiro ocupa o lugar de nova divindade e os intocáveis pressupostos de consumo, o de, paradigmática, doutrina de salvação.

Aurelio.rosa.lopes@sapo.pt

aesfingedebronze.blogspot.com

Investigador universitário na área da cultura tradicional, especialmente no que respeita à Antropologia do Simbólico e à problemática do Sagrado e suas representações festivas, tem-se debruçado especialmente sobre práticas tradicionais comunitárias culturais e cultuais, nomeadamente no que concerne à religiosidade popular e suas relações sincréticas com raízes ancestrais e influências mutacionais modernas. É Licenciado em Antropologia Social, Mestre em Sociologia da Educação e Doutorado em Antropologia Cultural pelo ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *