Agosto em Lisboa, três pessoas e meia no metro, mais os casacos, os guarda-chuvas, as queixas e as saudades do verão. Num instante ficou a carruagem cheia. Já no banco dos velhos, lugar de encontro raramente vazio no centro da minha aldeia, cabem todos quantos aparecem. É por ali que passa o mundo inteiro, todos os dias.
O verão anda destrambelhado, diz o Narciso. Afirma que nunca viu nada assim, relembra que já passou dos oitenta e que não acredita nas notícias que falam de incêndios lá fora com milhões de hectares.
Eu também ouvi isso, é na Sibéria, confirma o Américo, situando a tragédia, deixando cair a lonjura, trazendo o lá fora ali para dentro, trocando a desconfiança pela certeza. Ninguém dúvida que o Américo sabe onde fica a Sibéria, e que também sabe do que fala quando fala das coisas que todos ouvem na televisão: tempestades, furacões, tsunamis, incêndios, cheias, degelos, secas, ondas de calor, aquecimento global.
Na minha aldeia desconfia-se muito do que chega de fora, notícias incluídas, e não é por mal, mas é diferente o que se vê à distância de um ecrã daquilo que se vive todos os dias. Ver um incêndio na televisão não é o mesmo que combatê-lo no terreno, enfrentá-lo, sentir-lhe a fúria.
Viver um incêndio é assustador, mas ajuda-nos a olhar para o que se passa no nosso mundo de outra forma, a compreender e a respeitar a natureza como ela merece, e devia impelir-nos, a todos, a dizer basta.
Não é apenas a chuva em agosto, a fruta cheia de bicho, o milho a apodrecer nas espigas ou a azeitona a estragar-se nas oliveiras que sobreviveram aos incêndios, sãos as ilhas de plástico no meio dos oceanos, é a agonia dos animais, a poluição dos ares, as novas doenças. Basta.
No banco dos velhos da minha aldeia, numa das poucas noites quentes deste verão, sentei-me também eu a ouvir queixas e histórias de saudade e, sem saber, a alinhavar esta crónica. Estive até há pouco a tentar perceber como podia encaixar aquele serão com os parágrafos que já tinha escritos, e que diziam assim:
Quase chegados ao destino, já no último declive antes de chegar às hortas, na bifurcação que levava uns até aos campos de cima e outros, virando à direita, até carvalhal de baixo, já se começava a adivinhar quem chegara antes de nós.
O Mário a chamar o rebanho, o Heitor a assobiar no meio das melancias, a Maria Zé a dar pressa ao Lino, um cão inquieto a ladrar à chegada de mais gente, tanta gente todos os dias, o verão inteiro a caminhar para ali, e hoje não sei ir da Batecova à Portela da Pena.
E por isso desisti, a crónica sobre as férias nas hortas do Carvalhal haveria de ficar para outra oportunidade, até porque, tirando os bolsos cheios de amoras e as cantigas das cigarras, abandonadas que estão as hortas, já pouco (me) resta de então.
A gente já só sabe que é verão por causa das cigarras, responde o João ao Narciso.
A frase ficou-me na cabeça e decidi que seria a primeira. Afinal não, calhou ser a última, e ainda bem, porque talvez seja a maior verdade destas linhas. A gente já só sabe que é verão por causa das cigarras.
Gostei muito! Abraço a todos.