O historiador Paulo Falcão Tavares. Créditos: mediotejo.net

A 8 de dezembro assinala-se um ano sobre a inauguração do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte (MIAA), em Abrantes, que decorre da requalificação do Convento de S. Domingos, com um projeto do arquiteto João Luís Carrilho da Graça. Um equipamento tido como “central” no processo de regeneração urbana da cidade e que representou um investimento de 6,3 milhões de euros. O MIAA apresenta os acervos municipais de Arqueologia e Arte do Município de Abrantes e da Coleção Estrada, bem como a obra da pintora Maria Lucília Moita, e ocupa parte significativa do antigo Convento, que já albergava a Biblioteca Municipal António Botto, numa ala requalificada em 1993, com projeto do arquiteto Duarte Castel-Branco.

Mas qual a importância do Convento de S. Domingos para a cidade de Abrantes e para a história nacional? E qual a razão de ser designado como “Real Convento”? O historiador Paulo Falcão Tavares escreveu o único livro sobre a história do edifício desde a sua fundação até à atualidade. A obra decorre da sua tese de mestrado, escrita na época em que surgiu a polémica sobre a possível construção de uma torre de betão com 30 metros naquele local, e que não chegou a ver a concretizar-se após uma forte contestação pública, liderada pela Academia Tubuciana de Abrantes. Com o título “O Real Convento de S. Domingos de Abrantes”, o trabalho teve como objetivo “a apresentação de uma proposta de valorização e salvaguarda para o Convento e para o espaço-cerca”.

Paulo Falcão Tavares nasceu em 1963, em Abrantes. Licenciado em História pela Universidade Autónoma de Lisboa, Mestre em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural, ramo Património Artístico e História da Arte, pela Universidade de Évora. Historiador, heraldista e gestor de património, é autor de dezenas de artigos e livros sobre História, Património Cultural e Heráldica. Presidente executivo e fundador de diversas instituições de cariz histórico e patrimonial, é membro de várias instituições científicas nacionais e estrangeiras e secretário-perpétuo da Academia Tubuciana de Abrantes. A Liga dos Combatentes concedeu-lhe a Medalha de Honra ao Mérito (grau ouro) e foi agraciado com inúmeras ordens honoríficas nacionais e estrangeiras. Delegado e presidente em Portugal das Ordens Dinásticas da Casa Real de Sabóia (Itália), é Cavaleiro Comendador da Ordem dos Santos Maurício e Lázaro (Casa Real de Sabóia), Presidente do Instituto Imperial São Pedro de Alcântara, e Lugar-tenente do Chefe da Casa Imperial do Brasil, S.A.I.R. Príncipe Dom Pedro Bourbon de Orleans e Bragança (Palácio do Grão-Pará, Petrópolis).

Escreveu um livro sobre o Convento de S. Domingos, pergunto qual a sua importância patrimonial, quer arquitetónica quer religiosa? Sendo um imóvel classificado, de propriedade pública municipal, o que representa para a cidade de Abrantes, para o concelho e para a História de Portugal?

Representa muito, por várias razões. Uma delas não é só patrimonial – com o tempo é que surgiu esta consciência de património, que não havia dantes. É o único marco que temos em Abrantes da presença do rei D. Manuel I. Foi quem pagou e quem comprou os terrenos, e as casas que aqui estavam, para poder ser construído este Convento. Temos documentação probatória da construção ter sido regularizada pelo soberano. E com este Mosteiro Real [ao lado do Convento de S. Domingos, hoje Escola Superior de Tecnologia de Abrantes] também aconteceu o mesmo. O padroado era real. Aliás, a Rainha de Portugal tinha diversos lugares disponíveis para a disputada admissão de noviças de clausura.

Razão de escrever no título da obra a circunstância de ser “Real”?

Sim. É Real porque o rei foi o padroeiro, quem o pagou. Aliás, chegou a ser Panteão Real, onde o infante Dom Fernando esteve durante muitos anos, até os Filipes o terem levado para Lisboa, contrariando a vontade escrita do próprio infante. Cada mosteiro ou convento tinha um padroeiro, que era quem pagava as obras e era, digamos, o patrono da própria instituição. Por isso é um marco para a cidade. Aqui há uma identidade muito forte.

No livro “Real Convento de S. Domingos de Abrantes” refere que foram sepultados no Convento D. Fernando, Infante de Portugal, tal como a sua mulher D. Guiomar Coutinho, dois filhos do Infante também ali foram sepultados, e o primeiro Bispo da China, D. João da Piedade. Mas quem foram estes religiosos da Ordem de S. Domingos, os frades dominicanos que se instalaram em Abrantes?

O Convento de S. Domingos (masculino, de frades e não monges) é importante porque representa a mais reputada instituição religiosa que esteve em Abrantes, durante séculos. Esta cidade tem uma dívida de gratidão para com a Ordem Dominicana. Não existe uma única referência a esta Ordem na cidade! É uma lembrança que deixo aos responsáveis culturais da cidade… Todas as cidades por onde existiam casas religiosas dominicanas, têm ruas ou memoriais. Veja-se o caso de Santarém, com uma rotunda com um S. Domingos, fundador da Ordem. Foi uma ordem medieval constituída para catequizar as populações mais pobres, do interior. Nas grandes cidades, geralmente, estavam as ordens mais antigas, mais ricas, com regras mais austeras, para as pequenas vilas do interior iam os franciscanos e os dominicanos. Há quem diga que eram a tropa avançada contra as grandes dissidências da Igreja e, de facto, em parte sim. Coincidiu também que muitos dos dominicanos eram inquisidores, mas eram da classe mais erudita que havia na Igreja. Tratam hoje a Inquisição muito mal… Quantas milhares de obras não foram escritas por dominicanos em todo o mundo! Os religiosos que vinham para Abrantes, muitos não sendo ricos, eram homens muito dotados de erudição, de cultura clássica. Por isso foi tão importante virem para Abrantes, particularmente porque, no século XVI, quando D. Manuel constrói este convento, vem uma plêiade de gente fabulosa, de grande envergadura intelectual, que aqui escreveu livros. Por falar em livros, em Abrantes, guarda-se um exemplar único no mundo, que cito na minha obra, um livro de cantochão quinhentista, que deveria estar exposto no MIAA por ser um exemplar de enorme raridade e ligado diretamente com este Real Convento, pois o seu autor foi um dos frades que aqui viveu. Essa obra está por recuperar no abandonado arquivo histórico abrantino.

Refere-se a que “gente fabulosa”?

A todos os provinciais de Espanha, na famosa era dourada de Espanha, citados no livro “O Real Convento de S. Domingos de Abrantes”. Cito-os como religiosos que viveram aqui. Todos aqueles consegui confirmar através da investigação para a tese de mestrado, que por acaso obteve a mais alta classificação. A envolvência era enorme. No Convento viveram centenas de religiosos mas no Mosteiro de Nossa Senhora da Graça, que hoje é a Escola Superior de Tecnologia de Abrantes, viveram milhares de religiosas. Tinha clausura papal e por isso é Mosteiro e não Convento. É uma das características que os distingue. Há uns meses fui convidado para reunir na Universidade Católica, com os maiores especialistas de Portugal sobre ordens religiosas, onde estava o diretor do Convento da Batalha. Eu perguntei-lhe: Como era possível um Convento daquela proporção –porque é monumento mundial, da UNESCO – chamarem-lhe Mosteiro da Batalha? É um erro crasso! Um historiador não pode cometer tal erro e continuam a chamar-lhe Mosteiro da Batalha quando é um Convento. Ou seja, as características fundacionais e da “ regra” são exatamente iguais às de S. Domingos e aqui nunca ninguém lhe chamou Mosteiro. Quando falamos de e sobre História temos de saber do que estamos a falar, por isso é que as pessoas são especializadas em determinadas áreas. Temos de ter cuidado com a nomenclatura. Existem muitos treinadores de bancada quando falamos de História…

Paulo Falcão Tavares durante uma conferência sobre a presença da Ordem Dominicana em Abrantes. Foto: DR

Dizia que pelo Mosteiro de Nossa Senhora da Graça passaram milhares de religiosas…

Milhares! O primeiro livro sobre ginecologia foram os frades do Convento de S. Domingos que trouxeram para cuidarem das religiosas, que com clausura papal, não podiam sair do Mosteiro, e os homens podiam sair do Convento, sempre dois a dois. Como as religiosas vinham professar muito jovens, com 14 e 15 anos, muitas delas tinham problemas vários e quem cuidava delas era o padre mestre… e tinha de saber algo de medicina. As mulheres não tinham livros, a não ser os de coro. Só os homens frades podiam curar as monjas. Ou seja, no fundo foi uma comunidade absolutamente completa. Em Abrantes houve uma coincidência rara em Portugal, porque conseguiu-se construir um convento de homens e um mosteiro de senhoras da mesma ordem, dos dominicanos. Por exemplo, na Batalha só havia homens. Por isso, e não só, se designa por Convento da Batalha.

Essa situação é inédita no país?

Era muito rara. Em Évora também houve. E Abrantes conseguiu isso. Um dia estava na Torre do Tombo e veio um senhor doutor ter comigo, que sabia que eu era o autor do livro, e disse-me que procurava uma religiosa de Abrantes que tem devoção na Índia, e eu sabia a quem ele se referia (a famosa Sóror Maria da Visitação, viveu aqui em quinhentos). Ou seja, damos muito pouca importância ao nosso património e os estrangeiros dão muito mais valor, pois diversos indianos tinham vindo precisamente aqui ver se existia algo dessa religiosa… Hoje não existe uma única placa neste local do Mosteiro por onde passaram milhares de senhoras monjas, que foram as fundadoras de uma longa tradição musical abrantina polifônica erudita, aliás documentada na capa desse meu modesto livrinho… um outro estudo a fazer de relevante interesse cultural. Não existe uma linha escrita em Abrantes sobre a tradição da música popular ou erudita… Como aqui neste Mosteiro Real, existiu a mais famosa Casa da doçaria abrantina e não existe um único estudo sério sobre o tema. Por acaso até já me pediram alguns dados históricos sobre a origem da tigelada… mas um dia publicarei o estudo que tenho.

“Um dia estava na Torre do Tombo e veio um senhor ter comigo (…), procurava uma religiosa de Abrantes que tem devoção na Índia, e eu sabia a quem ele se referia (a famosa Sóror Maria da Visitação, viveu aqui em quinhentos). Ou seja, damos muito pouca importância ao nosso património e os estrangeiros dão muito mais valor, pois diversos indianos tinham vindo precisamente aqui ver se existia algo dessa religiosa… Hoje não existe uma única placa neste local.”

Paulo Falcão Tavares

Imóvel do século XVI que, além da ocupação religiosa, teve funções militares, como quartel e hospital militar (por altura das invasões francesas), e também no século XX. Qual a importância dos militares na história deste edifício?

É muito importante. O facto deste Convento ainda estar em pé deve-se a três instituições, uma delas foi a militar. Quando a ordem foi extinta, este Convento esteve à venda mas ninguém o adquiriu, por razões que desconheço. No fundo os liberais roubaram o edifício aos seus legítimos proprietários. O Estado como não conseguiu vender deslocou para aqui o Exército. Inicialmente o Convento era património da Igreja e passou a ser da Ordem de S. Domingos até 1834, quando houve a extinção das ordens, e a partir daí passou para a alçada do Estado. O Convento é uma peça arqueológica da nossa própria identidade. Foi liceu, eu próprio tive aulas no Convento, onde estudei um ano. O meu avô foi militar no Convento, em 1911. Durante o Estado Novo foi aqui que estava sediada a Comissão de Censura abrantina. Tanta história que por aqui passou. Até hóquei em patins chegaram a jogar dentro do claustro quinhentista, existem fotos com atletas.
O que lamento imenso, e é uma vergonha para todos, é que permitiram que o arquiteto Carrilho da Graça retirasse partes do nosso passado artístico (silhares de azulejos do século XVIII e XIX) da zona da entrada da Hospederia conventual, que chegou a ser Paço Episcopal. Outro vandalismo contemporâneo, e até de muito mau gosto, foi a retirada infame da placa de mármore branco que continha os nomes dos bravos militares que caíram em França na Grande Guerra a defender a democracia! Eu até sei o nome de alguns desses bravos heróis. É urgente que reponham dentro da entrada essa placa, para que a memória militar do edificado não se perca, já que certos arquitetos são ignorantes e arrogantes.

O Convento é uma peça arqueológica da nossa própria identidade. Foi liceu, eu próprio tive aulas no Convento, onde estudei um ano. O meu avô foi militar no Convento, em 1911. Durante o Estado Novo foi aqui que estava sediada a Comissão de Censura abrantina. Tanta história que por aqui passou. Até hóquei em patins chegaram a jogar dentro do claustro quinhentista.”

Paulo Falcão Tavares

No entanto, parece difícil definir a data exata do início da sua construção…

Conhecem-se algumas datas que são circunstanciais, mas falamos do início de 1500 até 1520. Ou seja, a construção demorou entre 18 a 20 anos. Fazer uma obra desta envergadura tinha de ser, obviamente, com dinheiro do rei, não havia outra forma. Ou então um homem muito rico, e aconteceu. Por exemplo, o Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança de Abrantes (ainda de pé) foi padroado de um particular, como explico no meu livro sobre a Heráldica do Médio Tejo.

Obras para a criação do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, no antigo Convento de São Domingos, em Abrantes, duraram 15 anos. Foto arquivo: mediotejo.net

Já o Mosteiro de Nossa Senhora da Graça…

Tinha padroado real de D. Catarina de Bragança e inclusivamente tinha direito a colocar aqui dez mulheres da “confiança” de Sua Majestade. Uma circunstância também muito curiosa.

Portanto, a fase militar do Convento foi relevante.

Após a extinção das ordens religiosas, o Convento terá estado desocupado durante uma década. Entretanto foi ocupado por militares. O edifício passou a ser Quartel de Infantaria mas teve muitas companhias a passar por aqui. E no tempo do Estado Novo funcionou no Convento a Comissão de Censura de Abrantes. Curiosamente, e por destino da História, vem justamente no seguimento da própria Inquisição, porque os dominicanos eram os inquisidores de Portugal.

Paulo Falcão Tavares numa apresentação do seu livro ‘Ordem dos Santos Maurício e Lázaro em Portugal e no Brasil’. Foto: DR

E após 1974 surgiu a ideia de construir no local do Convento o Palácio da Justiça de Abrantes.

Exato. Estava para ser demolido para construir no local um Palácio da Justiça. Duarte Castel-Branco, que era professor catedrático em Lisboa, não sendo abrantino, tinha casa em Abrantes, insurgiu-se contra este ato e considerando tal ideia “uma loucura” e sugeriu a construção de um centro cultural na cidade. Contou-me o sucedido na primeira pessoa: na altura levou uma série de documentos do Convento, pagou ao conservador do Palácio da Ajuda, Victor Pavão dos Santos, levou uma pequena história do Convento na tentativa de ver nascer, sem comprometer o edifício, o tal centro cultural. Há documentação nesse sentido no arquivo histórico de Abrantes, um sítio onde vou quase todos os dias e onde não há mais ninguém a investigar, que é outra coisa sintomática do nosso abandono pela História e pela Cultura. Portanto, a ideia inicial era salvar o edificado.

Refere que o arquivo histórico não desperta o interesse da população…

Um dia estava no arquivo histórico de Abrantes com a reitora da Universidade de Évora, 40 graus lá dentro, e ela diz-me: “O que estamos a fazer aqui em pleno verão? Chamam-nos malucos porque o que as pessoas querem é estar na praia ou ver futebol e não querem saber do que nós investigamos”. As pessoas não querem saber da sua memória, querem saber é se estão ou não bronzeadas, o resto não conta. Não querem saber da sua identidade. Ninguém quer saber o fundamento, querem é o futebolista X no Sporting a marcar golos. O arquivo histórico do município tem um belíssimo acervo e com edifício feito de raiz, mas o que podia ser um potenciador de saber e conhecimento está votado ao abandono total: faltam lâmpadas na porta principal, as cadeiras na sala de leitura são ergonomicamente erradas para as mesas, os leitores não tem um dispensador de água ou café, ou uma sombra na rua… com árvores inadequadas ao espaço. O que nos vale é a completa disponibilidade dos funcionários e bom ambiente reinante.

Nos anos 90, um projeto do arquiteto Duarte Castel-Branco levou à restauração de parte do Convento e à instalação da Biblioteca António Botto. Contudo, este livro é a primeira monografia do Convento de S. Domingos?

Sim. No fundo é o bilhete de identidade do Convento e a Câmara tem alguns exemplares do livro, já esgotado, que bem podia pôr à venda na bilheteira do MIAA.

E quanto tempo demorou a escrever?

A investigação para a tese de mestrado demorou dois anos. Gosto de escrever, mas saber o que estou a fazer, para articular o pensamento e a forma da escrita. Para fazer a listagem dos religiosos, um a um, tive de ler os documentos todos, de abrir caixas na Torre do Tombo, com pergaminhos que estavam colados, e para isso tive de pedir várias vezes autorização, várias vezes vieram recusadas com a nota de estarem em mau estado. Mas li-os todos, documentos, impressos, manuscritos, vi fotografias, tudo! É algo que nem passa pela cabeça de muitas pessoas. O livro é parte daquilo que escrevi, para a tese de mestrado tive um limite de 90 páginas. Depois fui convidado para uma obra monumental chamada ‘Clavis Bibliothecarum’, onde vem esta biblioteca abrantina referenciada e descrita parcialmente. Mas já tenho um trabalho preparado para fazer sobre todos os livros que existiram na biblioteca do Convento de S. Domingos. É uma coisa fabulosa porque a maior parte dos livros eram escritos em latim e vieram de várias partes do mundo, como Alemanha, França, Espanha. Tivemos aqui obras muito relevantes e edições preciosas, que estiveram ao abandono e à chuva sob a autoridade do governo dos liberais em 1834…

“Tenho um trabalho preparado para fazer sobre todos os livros que existiram na biblioteca do Convento de S. Domingos. É uma coisa fabulosa porque a maior parte dos livros eram escritos em latim e vieram de várias partes do mundo, como Alemanha, França, Espanha. Tivemos aqui obras muito relevantes e edições preciosas, que estiveram ao abandono e à chuva sob a autoridade do governo dos liberais em 1834…”

Paulo Falcão Tavares

Todos os livros que estavam na biblioteca do Convento estão agora no arquivo histórico?

Não. Em 1834 fizeram um arrolamento dos livros, mas foram empilhados à chuva e muitos degradaram-se, grande parte deles perderam-se. Um exemplar único no mundo foi impresso em Évora, é um livro de cantochão, de quinhentos. Como era bonito e como tinha músicas foi guardado. Esta livraria conventual foi mandada para Lisboa, segundo as missivas da época.

E a razão da escolha da capa do seu livro?

Este livro, com esta portada a cores, foi mandado pintar pela Ordem Dominicana onde se vê a coroa do rei D. Manuel e com o escudo da Ordem. Uma monja muito rica, que sabemos o nome e tudo, pagou a pintura extraordinária e este exemplar também está no arquivo histórico, um livro de cantochão. O Mosteiro, das monjas, durou praticamente até 1900, teve uma escola de canto, durante séculos. Este livro deveria estar exposto no MIAA porque faz parte da nossa tradição pictórica portuguesa mais relevante. Como outras peças que estão no arquivo histórico. Não há livros no museu… Consideram que os documentos têm de estar nos arquivos. É uma perversão da cultura, é olhar o mundo não de uma forma absoluta mas de uma forma à lupa, e isso não é cultura. Todas as peças são importantes, sejam elas em pedra, ouro, tecido ou papel. Abrantes contrata gurus e depois deixam fazer o que eles entendem sem nenhum sentido crítico…

Qual o motivo que o levou a estudar e investigar a história do Convento de S. Domingos?

Porque havia o perigo de destruição do monumento, com a torre projetada pelo arquiteto Carrilho da Graça, de 30 metros de altura, em cima da cerca conventual! E tentei explicar às pessoas a importância que tinha o espaço. Porque se a torre fosse uma realidade, iria acabar com o edificado que está classificado. Foi apenas para salvaguardar o edifício. Há uma coisa que aprendemos nas universidades; não podemos explicar algo a uma pessoa se ela não a entende, não vale a pena! Primeiro tem de estar dentro da matéria e depois é que vamos explicar.
Corri praticamente todos os arquivos que tinham documentos relacionados com o Convento, e há muitos. Portanto, o Convento faz parte da nossa identidade abrantina, centenas de anos do nosso passado passaram por ali…. Mandar o edifício abaixo seria uma atitude sem paralelo. Foi uma guerra contra o poder político e os arquitetos. Ganhámos toda a guerra. Só um não percebeu, o próprio arquiteto que, quando se inaugurou o MIAA em Abrantes, afirmou para espanto de todos: “Que pena não se ter construído a torre!” Este arquiteto já tinha destruído a única cozinha existente em Portugal de uma ordem militar no mosteiro de Flor da Rosa, entre outras façanhas. Agora está nessa pousada, no lugar da cozinha, um balcão a servir de receção. Se fosse possível, eu proibiria esse técnico de fazer projetos para edificados classificados, porque ele só conta com o seu ego, tudo o resto não existe!

Fotografia que consta do livro “O Real Convento de S. Domingos de Abrantes”, da autoria de Paulo Falcão Tavares

E conseguiu-se evitar a construção da tal torre paralelepipedal de grandes dimensões, que ocuparia grande parte da cerca do Convento, e que suscitou polémica e movimentação popular.

Conseguiu-se evitar. A grande conquista da Tubucci [Associação de Defesa Património Região de Abrantes] foi evitar a questão da construção da torre. Relembrando: encomendaram um projeto ao arquiteto Carrilho da Graça, que ganhou o Prémio Camões, para fazer um museu dentro de uma torre, toda em betão, sem janelas com 30 metros de altura. Ou seja, uma coisa completamente descabida do ponto de vista arquitetónico, neste espaço. Mas o problema é que a implantação de uma massa de betão naquele sítio – frágil, que estruturalmente nunca foi mexido – faria o edificado vergar com o peso. Tal foi testado pelo LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil).
Foi uma guerra que dividiu a cidade. Lançámos uma petição, com arquitetos norte-americanos, franceses, italianos a assinarem porque viram que era uma aberração. Grandes personalidades do mundo assinaram a nossa petição. Conseguimos [Tubucci] que o projeto não fosse avante porque inclusivamente fizemos queixa à Comissão Europeia. Não só a câmara municipal poupou dinheiro como o país poupou dinheiro, e poupámos o edificado. O que agora gastaram é menos de metade do que gastariam. Esta posição trouxe-nos grandes transtornos pessoais e outros. Mas fomos salvaguarda de várias coisas, uma delas do Convento de S. Domingos e isso fica na nossa história. Custou-nos muito? Sim, mas foi o preço a pagar.

Figura que consta do livro ‘O Real Convento de S. Domingos de Abrantes’ da autoria de Paulo Falcão Tavares

Por que razão acha que tal sucede inclusivamente em património classificado?

Há um problema em Portugal – e também no mundo. Existem arquitetos que pensam que são uns grandes artistas e que superam tudo quanto há, inclusivamente o património e a nossa memória. Este edifício é a nossa memória. E com a sua intervenção danosa destruiu várias coisas importantes, por exemplo a única memória que havia de ter sido um quartel militar, a placa dos mortos da Grande Guerra, daqueles que perderam a vida para defenderem a democracia. Este é um ato danoso do património. No livro tenho uma fotografia de azulejos que mandou fora, bem como outros do século XVIII feitos numa fábrica em Alcobaça, que também foram vandalizados, os lambris de acesso ao piso superior. O MIAA é fruto desse projeto. As amoreiras centenárias que estavam colocadas na parte sul, desapareceram, elas que fazem parte da nossa maior indústria de sempre do século XVIII: a seda. Este edifício é como se fosse hoje um edifício desconhecido.

O que o leva a fazer essa afirmação?

Percebe-se claramente que o arquiteto não leu o meu livro no qual explico as peças todas, desenho, identifico em planta todos os espaços. Na entrada, à nossa direita, receberam-se dezenas de dignitários importantíssimos. Hoje estão lá dois senhores a vender bilhetes mas não há uma placa que indique que era a hospedaria do Convento, onde se hospedavam os familiares quando vinham ver os religiosos, em negócios. Os próprios bispos da diocese era ali que se instalavam, após Abrantes ficar sem o paço medieval para os bispos. Era um espaço muito marcante porque estava ainda dividido segundo os quartos, as suas divisões originais. Hoje, o visitante não sabe que aquilo era uma hospedaria. Estes registos patrimoniais têm de ser identificados. No estrangeiro quando um arquiteto faz um projeto desta envergadura, convoca-se o arquiteto mas também é convocado um historiador, um engenheiro, um técnico de património, um museólogo, para que cada um pense o deve ser feito. Trabalhei no estrangeiro em projetos de grande complexidade, a milhares de quilómetros de distância. Se por cá não tiverem técnicos à altura, terão de os arranjar em algum lado. É o problema dos lobbies políticos.

Existem arquitetos que pensam que são uns grandes artistas e que superam tudo quanto há, inclusivamente o património e a nossa memória. Este edifício é a nossa memória. E com a sua intervenção danosa destruiu várias coisas importantes, por exemplo a única memória que havia de ter sido um quartel militar, a placa dos mortos da Grande Guerra, daqueles que perderam a vida para defenderem a democracia.

Paulo Falcão Tavares

No seu livro defende a requalificação total do Convento abrangendo a cerca, celeiros conventuais, horto botânico, baluarte, muralha do suporte militar, claustro de serviço e todo o espaço pertencente aos religiosos, por considerar ser impossível compreender o que foi o Convento sem os seus espaços físicos. Hoje quando olha para o resultado final, para o que é hoje o MIAA, continua a defender o mesmo?

Sim, continuo. Tudo o que está referenciado no livro nunca ninguém deu importância, porque se tivessem dado importância teriam aproveitado a cerca para fazerem justamente a horta fradesca, que era do Convento, e fazia muito sentido, em vez de construírem um parque de estacionamento. Todo o mundo civilizado, pelo menos o que eu conheço, tem aproveitado as cercas, até porque trabalhei em vários projetos onde se valorizou a cerca conventual. Isto retirou o que lá estava: a cerca original. Os carros deveriam estar apenas no patamar de baixo, e em cima deveria ser um espaço de lazer para os abrantinos, por exemplo, com um pequeno jardim. Era mais simbólico, era mais patrimonial do que ter automóveis estacionados num parque com granito.
Cada ordem religiosa tem uma arquitetura diferenciadora e o arquiteto não sabe, porque não é especialista na área. Por exemplo, entre a entrada para a Biblioteca e a entrada para o Museu existia uma janela de guilhotina, era a janela da cela do prior. Todos os priores dominicanos tinham acesso visual à entrada. Uma espécie de guarda. Ou seja, este assunto do património é mais sério do que à primeira vista pode parecer. A porta da cerca também já lá não está porque a acharam muito ordinária…. depois há estas “soluções” para o que se considera ordinário e decente, para poder mexer no património. Há uma estética do novo riquismo que é algo que não podemos admitir. Vejo aqui uma ligeireza inter pares para um património que é a nossa identidade.

O historiador Paulo Falcão Tavares. Créditos: mediotejo.net

Mas como historiador considera que existe em Portugal uma preocupação com o património, ou não?

Nenhuma! Há poucas semanas, em Elvas, uma igreja maneirista, toda pintada, foi demolida. Falamos de Elvas, um sítio que tem um património fabuloso e sei que estão a recuperar agora uma sinagoga que foi descoberta. Ou seja, todos os dias em Portugal há um camartelo contra o património. Em Portugal somos pequeninos, temos poucas coisas e temos de as conservar. Também na gastronomia não há preocupação em procurar aquilo que de facto é o nosso património gastronómico.

Também estuda a gastronomia?

Tenho um livro preparado sobre a gastronomia abrantina, de dois livros de receitas que encontrei do século XIX e estudei as receitas. Muitos pratos que hoje se comem em Abrantes não são daqui nem nunca foram. Não há tradição. Por exemplo, o bucho é originário de Vila de Rei, não faz parte da gastronomia abrantina, nem da conventual, nem da monástica, nem da civil, nem da militar, porque também há manuscritos, que já encontrei, sobre gastronomia militar. Em Abrantes, os franceses cozinhavam arroz doce como o nosso atual. O Mosteiro de Nossa Senhora da Graça tem um historial de peso, toda a doçaria conventual de Abrantes foi concebida ali. A origem das tigeladas é do Mosteiro, mas o que ninguém sabe é o local exato. Eram feitas nas Mouriscas, transportadas com mula e vendidas em Abrantes. Encontrei documentação que relata tudo isso. Já a palha de Abrantes, a origem não é do Convento dominicano, é uma notícia absolutamente falsa. Estudei a cozinha do Convento e quem fazia a palha de Abrantes eram as monjas que passavam o doce para o Convento. Ali, ao longo da história, só existiram dois ou três cozinheiros, enquanto no Mosteiro todas as monjas cozinhavam. Vinham de casas de famílias nobres e traziam receitas. Não esquecer que a rainha Catarina de Bragança tinha 10 lugares à sua disposição, mas as outras tinham inclusivamente criadas à sua disposição. Aqui estavam as senhoras mais ilustres de Portugal. No outro Mosteiro abrantino, de São Francisco, o da Esperança já não era assim, não tinham criadas e viviam com dificuldades, com privações, com fome, eram franciscanas, outro mundo…

“O Mosteiro de Nossa Senhora da Graça tem um historial de peso, toda a doçaria conventual de Abrantes foi concebida ali. A origem das tigeladas é do Mosteiro, mas o que ninguém sabe é o local exato. Eram feitas nas Mouriscas, transportadas com mula e vendidas em Abrantes. Encontrei documentação que relata tudo isso. Já a palha de Abrantes, a origem não é do Convento dominicano, é uma notícia absolutamente falsa. Estudei a cozinha do Convento e quem fazia a palha de Abrantes eram as monjas que passavam o doce para o Convento.”

Paulo Falcão Tavares

Quanto ao estudo da gastronomia regional portuguesa, o que tem a dizer?

O Estado português promove a gastronomia regional mas na verdade não há um acervo de erudição da gastronomia porque não é estudada, ninguém paga isso. Évora tem um grande estudo, lá sabem e promovem, mas os outros vendem gato por lebre. Em Abrantes perdeu-se o pêssego mira-olho, que é nosso, uma das peças que o município devia mandar estudar. Introduziram outros no mercado e nós perdemos o que é nosso. Desde o período manuelino que Abrantes exportava fruta, mas quem quer saber disso…
Numa aula que lecionei na Universidade de Coimbra, a alunos de mestrado de património, recomendei um rigor absoluto no estudo e levantamento da nossa gastronomia, porque é miserável o atraso em que Portugal se encontra. Andam a enganar o povo… ninguém cruza informação histórica com o saber contemporâneo e até se dão prémios a livros desses!
Os chefes de hoje andam a introduzir novos alimentos que nada têm que ver com o nosso passado. A maior parte do Portugal vende como cozinha tradicional portuguesa gastronomia sem suporte histórico algum, são uns aldrabões. Já ouvi um chef abrantino a dizer na televisão que confeciona um prato de perdiz à moda de Alferrarede cuja receita tem cerca de 400 anos?!… Nem vou comentar. Precisamos de estudos sério, honestos e científicos sobre a gastronomia portuguesa. Com provas documentais.

MIAA – Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes. Foto: CMA

Mas que sentimento lhe desperta o MIAA, que tem merecido, diga-se, bastantes elogios neste seu primeiro ano de existência?

O edificado tem várias lacunas e até erros grosseiros, da responsabilidade do arquiteto, como já expliquei; como a questão da janela, o retirar da placa ou os azulejos, enfim… E na História, tal como na vida, somos obrigados a escrever a verdade, não é ler uma coisa e dizer outra porque deduzir é diferente. Por exemplo, no MIAA está escrito que D. Francisco de Almeida seria natural de Abrantes, mas nasceu em Lisboa! Só era filho de um titular de Abrantes, nada mais. É tentar galvanizar a cidade, mas não é com mentiras que galvanizamos nada, é com verdades. Escondem sempre o epíteto de “Real” ao convento, mas até dá grandeza à cidade, é um motivo de orgulho porque neste “Real” está implícita a presença de D. Manuel como padroeiro do edificado. O rei D. Manuel teve o sentimento de fazer parte da vila – uma parte alta, bonita e virada para o rio – uma espécie de Jerusalém religiosa. Estava implícito, tanto que [o atual] Jardim da República era o terreiro dos conventos. Aqui esteve o tesouro real, aquando das guerras liberais, de D. Miguel. Ou seja, teve uma importância capital para a cidade.
Do ponto de vista da intervenção do interior do Museu e das peças, há um reparo que tenho de fazer: o MIAA não é um museu identitário, abrantino. É um museu híbrido, como hoje se diz. Com peças do mundo que podiam estar em Nova Iorque ou em qualquer outro lugar. Faltam mais objetos abrantinos no MIAA. Mas está bem apresentado, acho que é positivo para a cidade, foi um bom investimento, a Câmara Municipal está de parabéns.

O rei D. Manuel teve o sentimento de fazer parte de Abrantes – uma parte alta, bonita e virada para o rio – uma espécie de Jerusalém religiosa. Estava implícito, tanto que [o atual] Jardim da República era o terreiro dos conventos.”

Paulo Falcão Tavares

E um museu identitário, faz falta na cidade?

Faz! Porque há muitas peças que estão ainda nas reservas, não estão expostas, nomeadamente da heráldica. Têm uma coleção de peças heráldicas nas reservas do museu que podiam estar em exposição porque têm categoria para estar, e são abrantinas. E também a questão da serralharia, há 4 ou 5 grades que também estão nas reservas, escondidas… escultura, que estão nas igrejas, e não foram trazidas para o Museu. Livros e manuscritos abrantinos, onde estão? Ou seja, muito trabalho que deveria ter sido feito e não foi. Estamos a mostrar um museu em que mais de metade das peças não são da nossa cidade.

O historiador Paulo Falcão Tavares junto à cisterna no antigo espaço onde foi o horto botânico que servia a botica e a enfermaria do Convento. Créditos: mediotejo.net

Ao que foi tornado público, a ideia do executivo municipal passou por construir um museu de interesse nacional, embora localizado em Abrantes.

Aceito essa visão global mas é uma admissão da concepção e da estrutura própria da envolvente museológica que tem riscos. É muito difícil conseguirmos equilibrar um museu híbrido. Fiz formação superior em museologia e um museu híbrido tem um equilíbrio muito ténue, tem de haver uma grande sabedoria para fazer isso. O que vemos é mais um museu de fora do que de dentro. Lamento que muitas peças que a cidade tem não estejam expostas – e não estão expostas por desconhecimento do valor das mesmas. Esse é outro problema, os tais gurus e amigos do peito…

E em que projeto trabalha atualmente?

Na investigação e redação da novíssima monografia de Mação. O presidente da Câmara, Dr. Vasco Estrela, que considero um homem com visão, quis fazer a monografia do concelho. Quem tiver material de interesse histórico sobre o concelho de Mação, pode entrar em contacto comigo, usando o e-mail paulofalcaotavares@gmail.com.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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