Não fosse o estado de coisas que todos conhecemos e esta família de quatro andaria por estes dias aviada de trinchas, rolos, caldeiros de tinta e diluentes, a terminar as pinturas do antigo moinho do Ti Manel da Cruz, que, Deus o tenha, se o visse agora, haveria de dizer que aquilo só poderia ser obra de mafarrico.
Diz-se lá na aldeia que lhe ganhou pertença por causa de um calote velho de gente de longe, de Cardigos ou coisa que o valha, isso agora pouco importa, já ninguém vivo se lembra dos negócios de tais mortos e não é bom importuná-los no seu descanso, a uns e a outros, claro, com detalhes que só a mim interessam.
Às perguntas sobre os ditos que ouvi contar respondem-me os vivos, que já não viram sequer as velas do moinho hasteadas, com nomes de terras e de moleiros, histórias de pobreza e fome e guerras, memórias incertas, tão esmagadoras como mós.
Acerca das iniciais rabiscadas há mais de cem anos na argamassa sobre a porta do moinho nada sei, portanto. Talvez tenham pertencido mesmo a gente de longe, gente a quem as voltas da vida podem até ter roubado alguma dignidade, mas não, um século depois, o passado. A inscrição lá continua, pronta a acertar contas com os mitos de uma curiosa negociata. Há dívidas difíceis de pagar, palavra de honra.
Mas dizia eu que se o Ti Manel da Cruz fosse vivo muito se haveria ele de espantar com o seu moinho, agora com paredes da cor da farinha, e do mar, que – arrisco eu – nunca ele viu, e sobretudo por não lhe descobrir outro préstimo além de enfeitar a aldeia. Que grande mangação.
Bom, não fosse o estado de coisas que todos conhecemos e teríamos nós terminado a pintura do moinho nestas férias da Páscoa, que prometido é devido e as obras não se querem como as de Santa Engrácia. Raio do vírus.
Mais: não fosse o estado de coisas que todos conhecemos e teríamos passado também alguns destes dias noutras paragens, entre o norte transmontado e a Galiza, a descobrir Puebla de Sanabria e outras vilas de origem medieval que há muito queremos conhecer.
Não fosse o estado de coisas que todos conhecemos e, já de regresso à Beira, participaríamos na mística procissão dos fogaréus, nas cerimónias pascais locais e nas bonitas tradições que queremos passar às miúdas.
Não fosse o estado de coisas que todos conhecemos e a esta hora já teríamos voltado ao Poço das Talhas, o pequeno paraíso escondido junto a Queixoperra que tantos já descobriram e continuam a descobrir através das novas rotas pedestres – e das redes sociais.
Não fosse o estado de coisas que todos conhecemos e já teríamos empanturrado meia dúzia de tigeladas, dois bolos da porta do forno e provavelmente também umas filhoses. Ao lanche haveria pão acabado a fazer, e ao almoço cabrito assado sobre a mesa e sericaia para os mais gulosos.
Acontece, raisparta, que continuamos em Lisboa, longe da aldeia e do nosso moinho, fartos deste isolamento voluntário-forçado, onde só nos resta fazer novos planos, contas, projetos e rascunhos, certos de que algum dia hão-de sair do papel. Certo, certo é que esta Páscoa vai ter um sabor diferente, sem o a quentura do forno a lenha, dos beijos e dos abraços. Raio do vírus, fica a dever-nos uma. Mas e a conta da saudade, quem é que a paga?