Jorge Rosa está há 42 anos na fábrica do Tramagal, sendo o mais antigo trabalhador da empresa. A Junta de Freguesia aprovou um voto de louvor na hora de saída da presidência da MFTE. Foto: mediotejo.net

Onde antes se construíam Berliets, produzem-se hoje camiões Canter e camiões eléctricos. E no lugar antes ocupado pelos Duarte Ferreira sentou-se nos últimos 16 anos Jorge Rosa –um líder com uma visão privilegiada sobre o passado da empresa e um papel determinante na construção do seu futuro. No dia 1 de janeiro de 2022, Jorge Rosa vai ceder a presidência executiva da Mitsubishi Fuso Truck Europe (MFTE) ao alemão Arne Barden, atual responsável da cadeia logística da FUSO, pretexto para uma entrevista de fundo ao gestor e mais antigo trabalhador da unidade fabril do Tramagal, onde entrou há 42 anos.

Com um percurso de 55 anos na produção de camiões, a empresa teve de se reinventar várias vezes ao longo da sua história. Jorge Rosa destaca nesta entrevista alguns momentos-chave, como quando se conseguiu convencer o Japão e os seus acionistas a adquirir a instalação e o momento em que conseguiu trazer para o portefólio de produção o veículo elétrico. Sobre a promessa que a empresa teve de uma nova ponte sobre o Tejo, diz olhar para trás “com muita tristeza” e lamenta ir embora com o problema por resolver, embora mantenha o espírito positivo: “Estou em crer que será mais tarde ou mais cedo, e estou convencido que vou ser convidado para vir à inauguração da ponte”, afirma. Para o futuro, antecipa uma agenda mobilizadora que visa tratar um projeto na área do hidrogénio. Para o desenvolvimento da tecnologia, depois a passagem para a prática e para a produção. O ano novo está aí  e os desafios dos novos tempos obrigam a uma adaptação constante para a fábrica poder continuar a brindar a uma linha contínua de sucessos.

Esta é uma despedida? Sente alguma nostalgia ou ainda não quis pensar no assunto?

Obviamente que já fui pensando, foi uma decisão que teve algum tempo de maturação. A nostalgia começou obviamente a aparecer, 42 anos é muito tempo, é uma parte significativa na minha vida, tem de ter naturalmente um impacto na forma de olhar o futuro. Vejo esta passagem como uma mudança de ciclo que tinha de acontecer em qualquer momento. Eu acho que acontece no momento certo porque as empresas têm de se regenerar, é fundamental que nesta altura a empresa se prepare para as próximas duas décadas. E, portanto, acho que está chegada a altura de termos alguém com uma visão nova, com um olhar novo sobre a empresa e competências para a preparar de facto para os grandes desafios da próxima década.

Como prevê que vai decorrer o processo de transição do cargo de CEO?

Vai ser um processo muito tranquilo, é uma transição muito planeada, nos primeiros quatro meses ficarei em sobreposição com o novo presidente, darei todo o apoio que ele necessitar e depois manter-me-ei ligado à empresa, mais numa ótica de representação externa, das associações, estando disponível para apoiar a empresa. Não é verdadeiramente uma saída em definitivo, é uma passagem de testemunho.

A fábrica do Tramagal tem revelado uma grande capacidade de mudança e de adaptação ao longo dos tempos. Como vê esta capacidade de adaptação contínua e a importância da mesma para manter a fábrica na linha da frente?

A empresa de facto tem uma história de 55 anos. Teve de se reinventar várias vezes ao longo da sua história. Há um período inicial de produção de veículos militares, a partir de 80 inicia-se uma relação com a Mitsubishi em Portugal e começamos uma relação de prestação e venda de serviços para o importador da Mitsubishi em Portugal e a partir de 96 é a própria Mitsubishi Motors Japão que adquire as instalações e há aqui um projeto de cariz internacional, que depois mais tarde, com a entrada da Daimler no grupo Mitsubishi mantém praticamente o mesmo modelo de negócio e a empresa mantém os mesmos contornos de produção do modelo para todo o espaço europeu, adicionando-se depois outros mercados muito importantes para nós nessa altura como Marrocos, por exemplo. Portanto a empresa foi capaz ao longo dos anos – foi forçada, eu diria – a adaptar-se às várias circunstâncias de alteração dos acionistas, do mercado, portanto foi a forma que a empresa foi encontrando ao longo deste percurso para se manter viva até hoje e o resultado é o que temos aqui, e a nossa capacidade de adaptação tem sido uma ferramenta fundamental.

Dos camiões Berliet às Canter elétricas, Jorge Rosa deixa legado e novas sementes na fábrica do Tramagal. Foto: mediotejo.net

Momentos chave que guarda?

Anteriormente houve momentos-chave, em que conseguimos convencer o Japão e os seus acionistas de que deviam adquirir esta instalação. A dado momento, concluímos que era óbvio que não podíamos ser um produtor de veículos independente, tínhamos de fazer parte de uma qualquer estrutura internacional. Não foi fácil vender esta ideia ao Japão, conseguimos, antes de eu ser presidente, isto é, há 30 anos atrás. Nos momentos da minha presidência, aí já estamos na esfera do momento em que a Daimler já estava na empresa, eu diria que o momento em que conseguimos trazer para o nosso portefólio de produção o veículo elétrico foi determinante e desenhou de alguma forma aquilo que vai ser o nosso futuro. Portanto, se tivesse que eleger um momento-chave destes últimos 16 anos, eventualmente seria esse, mas muitos outros.

Nos últimos 30 anos, o momento-chave foi convencer os japoneses… como se convenceu uma multinacional a investir numa fábrica no centro de um país periférico como Portugal?

Com dificuldade, porque de facto o Tramagal não é o melhor sítio. Ainda hoje colegas alemães vêm cá e interrogam-se do porquê de uma fábrica neste sítio. Eu lembro-me que há 30 e tal anos fui ao Japão, (…) disse que de facto a fábrica estava localizada numa região no interior do país, mas que iríamos ter uma autoestrada e levei o desenho da IP6 na altura, ainda não era a A23, e levei-lhe um desenho de uma ponte que o engenheiro Bioucas me cedeu, de uma ponte que fazia a passagem da IP6 para Tramagal. E portanto, do ponto de vista logístico, essa deixaria de ser uma barreira e foi essa a única razão que levou os japoneses a investir aqui, em parte da sua estratégia assentar em algures na Europa. Na altura na Europa produzia-se em três países, nesta fábrica, na Holanda e na Irlanda, e os japoneses na sua estratégia queriam vender a Canter a nível europeu e de entre estas três unidades conseguimos levá-los a decidir por aqui. Nessa altura fui basicamente eu. Há aqui parte da negociação que é feita com o senhor Dias Amaro.

Essa questão da ponte…

Olho para trás com muita tristeza, achei que um dia em que abandonasse a empresa ia ter esse problema resolvido e vou-me embora com o problema por resolver. Fizemos pressão em vários momentos, mas não foi possível até hoje, eu estou em crer que será mais tarde ou mais cedo, e estou convencido que vou ser convidado para vir à inauguração da ponte.

É uma pasta que vai deixar ao sucessor… como foi resolvendo o problema e como pode ser o futuro a este nível?

Eu diria que há dois passos. Eu falo de acessibilidades de uma forma geral, não falo só da ponte, falo por exemplo da nacional 118, que é para mim o primeiro grande obstáculo, chegar a Abrantes e chegar à Chamusca, que eu acho que tem de ser tratado, e depois a questão da ponte. Este é um tema que necessariamente o meu sucessor vai ter de algum modo de lidar e que eu vou ajudar.

A trabalhar na empresa desde 1980, pelas mãos de Jorge Rosa passaram nove modelos da Canter. Foto: mediotejo.net

Vemos aqui ao lado da fábrica uma linha de caminho de ferro… não serve?

Eu diria que não é impossível, tivemos no passado negociações com a CP mas não foi possível levar a bom porto as negociações pois são necessários investimentos aqui na linha… admito que isso possa vir a ser reequacionado, sobretudo à luz dos desafios ambientais que hoje temos, portanto admito que é um tema que pode vir para cima da mesa novamente.

O certo é que a história da fábrica mantém-se na vanguarda da produção de camiões, também elétricos, pode atingir a neutralidade carbónica em 2022. É um legado que deixa?

Nós fazemos parte de um grupo que tem compromissos ambientais globais e, portanto, esta fábrica não podia ser diferente das outras e há um conjunto de obrigações, mas o grupo quer estar à frente das obrigações. Há um conjunto de ações que estamos a tomar com o fim de atingir, mesmo antes, essas metas que estão impostas por lei, atingir a neutralidade carbónica. 2022 é uma meta, 2023 eventualmente, admito, a pandemia também parou alguns dos nossos projetos. Mas admito que em 2023 possamos ser neutros.

E em termos de projetos de futuro? Vai a empresa avançar com novidades?

Temos em estudo projetos na área do hidrogénio, não estamos necessariamente a falar do fundo de neutralidade carbónica, não estou a dizer que vamos recorrer a ele, mas também não o excluímos de todo. Não há decisões tomadas nesse sentido, temos projetos em curso, não queria estar a falar muito sobre eles, pois é um assunto que o meu sucessor terá que conduzir. Não estabelecemos essa ligação com fundo de transição justa. Não excluímos nenhuma oportunidade de apoio, se essa for uma oportunidade, eventualmente… Mas nesta altura candidatámo-nos a uma agenda mobilizadora que visa exatamente tratar um projeto na área do hidrogénio. Para o desenvolvimento da tecnologia, depois a passagem para a prática, para o terreno, para a produção, seria o passo seguinte, é uma mera hipótese, mas não é muito relevante estarmos a discutir isto.

“Estou em crer que será mais tarde ou mais cedo, e estou convencido que vou ser convidado para vir à inauguração da ponte” – Jorge Rosa. Foto: mediotejo.net

Perto de 500 trabalhadores, como têm sido estes dois últimos anos, como está em termos de “saúde”?

O momento da pandemia foi difícil para todos, obviamente, nós implementámos aqui as medidas que entendemos necessárias para proteger a nossa população, para salvaguardar também a fábrica e acho que fizemos um bom trabalho, porque em todo este processo para além da fase inicial em que fomos todos obrigado a ir todos para casa, a fábrica não foi obrigada a fazer nenhuma paragem e temos sido capazes de controlar a situação.

A pandemia teve aspetos positivos e negativos. A economia esteve parada durante grande parte do tempo de 2020 e hoje aquilo que sentimos é uma retoma dos mercados, temos muitas encomendas, estamos de facto a crescer na produção, portanto desse ponto de vista a empresa está bem. Tem um problema, tem uma limitação grande, comum a todos os fabricantes nesta altura, que é a dificuldade de abastecimento de componentes. É por um lado uma demanda muito forte dos mercados, por outro uma limitação muito forte do lado do fornecimento dos componentes. Para além disso uma instabilidade muito forte ao nível dos transportes marítimos. Nós dependemos muito do transporte marítimo, 30/40% do valor em veículo que vem do Japão, portanto nós recebemos muitos componentes vindos da Ásia que estão com problemas muito graves no transporte marítimo. O transporte marítimo, para além de ser imprevisível, está a demorar o dobro do tempo que tinha, o que acarreta dificuldades tremendas, admitimos que 2022 deve ser um ano ainda com problemas, mas que tenderá para a estabilização até ao final de 2022, é pelo menos a indicação que temos, mas em termos de saúde da empresa eu diria que nesta altura está bem, está a crescer, limitada por estes fatores. Embora com muitos riscos, pelo facto de não sabermos se vamos ter componentes.

As encomendas são basicamente para o veículo diesel, nesta altura. O Canter elétrico, o ano 2022 vai ser o ano de transição para o novo modelo. O primeiro modelo que foi desenhado de raiz para ser um veículo elétrico e esse vamos tê-lo no início de 2023, portanto 2022 não é um ano de muita produção deste modelo, que é um modelo que vai fazer a transição para a geração definitiva do veículo elétrico que vai ser em 2023.

Quantas linhas de montagem tem atualmente esta fábrica?

Estamos neste momento a terminar – os veículos vão tendo alterações ao longo dos anos – e nós estamos neste mês de dezembro a fazer a transição do modelo que tivemos em produção nos últimos anos para uma nova geração, com um conjunto de alterações ao nível de edições que nos transportará nos próximos 4/5 anos. Esse é o veículo que está em produção, e basicamente relativamente a este veículo e às inúmeras variantes que temos dele que estamos a falar.

Como é o mercado de trabalho para suprir a necessidade de encomendas?

Começa a ser difícil. É a resposta mais direta, começa a ser cada vez mais difícil. Como vamos resolver? Bom, vamos ter de alargar o raio de contratação, hoje contratamos basicamente no concelho de Abrantes, teremos de alargar o nosso raio de contratação para mais longe. Há outras formas, mas acho que não vale a pena.

É uma vida dedicada a esta fábrica… tem noção que transporta consigo todo este historial?

Sim, podemos dizer que sou um elo de ligação entre a Duarte Ferreira e o Grupo Daimler. Serei das últimas pessoas que está aqui na empresa que iniciou a sua carreira e vida na Metalúrgica Duarte Ferreira e vem até aos dias de hoje. Portante, de alguma forma sim, sinto-me um elo de ligação entre todos estes portos onde este navio foi passando, eu estava lá.

Jorge Rosa vai ser substituído no cargo de presidente da MFTE pelo gesto alemão Arne Barden . Foto: mediotejo.net

 Ao longo destes 42 anos de carreira profissional, fez inúmeras amizades com a generalidade dos trabalhadores que vêm em si um igual? Como é esta ligação?

Mantenho uma ligação muito forte com as pessoas que já saíram, aliás tenho jantares regulares com alguns, com quem tive o privilégio de aprender muita coisa. A minha relação com as pessoas é o que é – cada um tem a sua forma de trabalhar e atuar – o meu relacionamento tem a ver comigo, é a minha forma de ser, e fico muito satisfeito que as pessoas gostem da forma como trabalhei com elas, é a história, foi assim que se construiu.

Agora vai ser um alemão, vai ser um choque?

Não acredito, esta empresa já está há muitos anos integrada num grupo internacional, há já muitas regras que são hoje emanadas centralmente, e havendo estilos diferentes, nenhum de nós é igual – tenho dito a brincar que nem tudo são rosas, sendo que Rosas é o meu apelido – mas acredito que vai ser uma passagem muito suave, naturalmente com estilos diferentes, as pessoas são diferentes, as culturas são diferentes. Admito que a empresa possa e deva – como tenho defendido – abanar um bocadinho porque se calhar está no momento. As zonas de conforto são também prejudiciais.

A fábrica da MFTE emprega cerca de 500 trabalhadores diretos. Foto: mediotejo.net

Mensagem para as gentes do Tramagal e que têm uma ligação à história desta empresa?

A mensagem é muito simples e muito direta, é de gratidão. O Tramagal acolheu-me há 42 anos, era um jovem de 23 anos, cheio de medos e receios do que vinha encontrar, aprendi muito aqui, tive um filho aqui, viveu aqui com parte da sua vida pessoas, nada teria sido possível sem a ajuda das pessoas, portanto a minha palavra é de agradecimento para esta terra que me acolheu e me mimou. Faço questão de vir cá, enquanto não me empurrarem, faço questão de vir cá.

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Mário Rui Fonseca

A experiência de trabalho nas rádios locais despertaram-no para a importância do exercício de um jornalismo de proximidade, qual espírito irrequieto que se apazigua ao dar voz às histórias das gentes, a dar conta dos seus receios e derrotas, mas também das suas alegrias e vitórias. A vida tem outro sentido a ver e a perguntar, a querer saber, ouvir e informar, levando o microfone até ao último habitante da aldeia que resiste.

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