Somos o que comemos!

Pois somos. Por essa razão andámos milhões de anos a comer podre, fermentado e cru, tal qual animais repugnantes, caso do chacal e da hiena entre outros, e de outros nossos amigos. De quando em vez, aqueles antepassados apreciavam bocados de carne assada e tutanos de irmãos no viver resultado de esporádicos incêndios provenientes de causas naturais.

Os nossos longínquos avós gostavam daquela carne assada, no entanto, não conseguiam deslindar o mistério das chamas que a assavam e iluminavam a negrura nocturna.

Conformados, voltavam a procurar retirar sustento noutras paragens; numa primeira instância porque mais fáceis trincar escolhiam larvas, lesmas, caracóis, insectos, piolhos, minhocas e, quando tais petiscos faltavam recorriam aos peixes e animais, sem esquecer raízes, cogumelos, tubérculos, bagas, sementes, além de toda a casta de frutas. Uma vida lixada murmuravam antes de endireitarem a almofada de pedra ou madeira e dormirem nas tocas e grutas onde se acoitavam de modo a ficarem a salvo de outros pedradores.

Eles conheciam o fogo, temiam-no, veneravam-no, nas noites tempestuosas os relâmpagos provocavam temores e tremores, nos dias quentes o fogo brotava espontaneamente dos montes de folhas secas alastrando a ponto de queimar os seres vivos desprevenidos. Pois, sim, a tal carne sápida, de comer e chorar por mais. Mas o fogo escapulia-se, desaparecia.

Nalgumas partes do Mundo o fogo borbulhava no interior dos montes e dos mares, misterioso, explodia numa fúria terrível, jorrava das grandes crateras dos vulcões. O culto ao fogo que ainda persiste em determinadas regiões terá tido origem em fenómenos do género, o Homem conhecia o fogo, guardava-o enquanto podia, só que, não o dominava.

Um dia, após muitas tentativas nesse sentido, não se sabe quando, presumivelmente de forma acidental, em mais de um lugar ao mesmo tempo, os homens aprenderam a conceber, a guardar e conservar o fogo. Não importa como, interessa o efeito da dominação do fogo.

Pura e simplesmente a maior e mais importante descoberta de toda a História da Humanidade.

Aprisionado o fogo, de imediato melhoraram as condições de vida. Os alimentos passaram a ser cozinhados, os maxilares inferiores encolheram, as dentições ganharam firmeza e durabilidade.

De experimentação em experimentação, inúmeras à luz do fogo, em noites escuras, sentindo as feras a farejar uma oportunidade de ataque, mas temerosas de receberem nas ventas uma tocha incendiada, as mulheres, especialmente, as mulheres e os homens principiaram a confeccionarem toda a casta de matérias-primas.

A aprendizagem não isenta de vítimas, ainda não terminou, nunca terminará, o engenho humano cria, inventa, inova, no que tange a comeres uma coisa é certa: temos o cru e o cozido.

Sim, continuam a existir alimentos podres e fermentados, se os consumimos é por opção gustativa (em matéria de gostos não há dogmas), ou porque as circunstâncias o impõem, tal como antes da domesticação do fogo.

Armando Fernandes é um gastrónomo dedicado, estudioso das raízes culturais do que chega à nossa mesa. Já publicou vários livros sobre o tema e o seu "À Mesa em Mação", editado em 2014, ganhou o Prémio Internacional de Literatura Gastronómica ("Prix de la Littérature Gastronomique"), atribuído em Paris.
Escreve no mediotejo.net aos domingos

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