02h14m – Não raras vezes, na verdade muito frequentemente até, acontece acordar a meio da noite e ter urgência em escrever. Ideias e frases surgem indomáveis pela madrugada fora obrigando-me, às vezes, a não esperar. Foi a desoras que escrevi os primeiros versos publicados no jornal da vila e também as quadras populares dedicadas a cada um dos habitantes da minha aldeia, à altura mais de duzentos. Tomadas as notas e apagada a luz, é difícil voltar a conciliar o sono e voltar a adormecer. Repetiu-se esta noite. Desde o início da pandemia tem acontecido mais regularmente, embora nem sempre me meta a escrever. Imagino que seja a ansiedade a tomar conta do descanso, a incerteza a invadir o presente por coisas do futuro.
23h40 – Deito-me na esperança de não acordar com a enxaqueca que me atormenta há um par de horas. Hesito entre medicar-me ou antecipar o fim do dia. Tinha planos para trabalhar ao serão mas como estou não sou capaz. Dormir costuma ajudar se a dor for ainda mansa, e às vezes é mesmo o melhor analgésico. Durante as crises mais fortes assaltam-me imagens avulsas, desconexas, esmagadoras, compassadas, tão assustadoras que chego a duvidar da minha saúde mental.
22h49 – Chego a casa e petisco qualquer coisa sem grande apetite. Passei as últimas horas na Feira do Livro a acompanhar sessões de autógrafos e encontros com leitores. Comi apenas um gelado nas últimas 4 horas, mas em contrapartida consegui ler mais de 50 páginas do livro Coisas de Loucos da jornalista Catarina Gomes, a quem roubei o título para esta crónica. Há já alguns anos que acompanho o trabalho na Catarina, primeiro lendo-a no Público, mais tarde através dos livros. O último chegou às livrarias em julho e é um livro que resgata do esquecimento a vida dos doentes do antigo Hospital Miguel Bombarda. Partindo da descoberta acidental de uma caixa de papelão com dezenas de objetos pessoais deixados para trás por alguns dos doentes ali internados, a jornalista lançou-se numa laboriosa investigação para descobrir que vidas tiveram estas pessoas, onde viveram, por que razão foram internadas. Diz a autora logo nas primeiras páginas que há nesta espécie de voyeurismo uma vontade maior de compreender, como se fosse descortinável, algures no passado desta gente, o motivo por que ficaram loucos, partindo do pressuposto de que o eram. Aqui reside também a minha curiosidade. A saúde mental é um tema que me é caro, e tornou-se ainda mais durante a pandemia. É muito provável, pelo que tenho lido e pelos testemunhos de amigos a trabalhar na área, que a quarentena massiva de milhões de pessoas em simultâneo venha a ter consequências reais na nossa saúde mental. Enquanto receamos a doença física talvez a resiliência psicológica vá fraquejando, discretamente, até fazer disparar o gatilho da doença mental. No caso de Leopoldina de Almeida, a primeira pessoa a ganhar vida e rosto no livro da Catarina, esse gatilho parece ter sido a viuvez. No de Noé, jovem relojoeiro, a epilepsia.
21h32 – Olho para o relógio e apresso-me. Tenho exatamente 28 minutos para percorrer os quatro stands identificados no papel rabiscado há pouco. Às 22h00 termina a famosa Hora H, período durante o qual todos os livros publicados há mais de 18 meses têm 50% de desconto. É o horário mais concorrido da Feira do Livro, só funciona de segunda a quinta-feira, e para os amantes de livros é mesmo de perder a cabeça. Tenho uma lista mas demoro-me mais do que o suposto em cada barraquinha, (felizmente) é preciso aguardar alguns minutos para pagar, em certos espaços é difícil circular. Que alegria imensa ver a Feira cheia de gente. Que alegria imensa descobrir nos livros o escape perfeito para fugir da loucura do nosso dia a dia. Fernando Pessoa estava certo: a literatura é (mesmo) a maneira mais agradável de ignorar a vida.