Abrantes quis mostrar a sua solidariedade com o povo ucraniano desde a primeira hora, tendo organizado uma recolha de bens que foi entregue na Polónia, aos primeiros refugiados que atravessam a fronteira, fugindo da guerra. Créditos: CMA

É na sacristia da Igreja de São Vicente, em Abrantes, local de culto e de paz, que encontramos duas das refugiadas de nacionalidade ucraniana que continuam a viver em Abrantes. A cidade acolhe atualmente 46 pessoas que se viram forçadas a procurar auxílio noutros países da Europa após o rebentar da guerra no seu país, a 24 de fevereiro de 2022. São maioritariamente mulheres com os seus filhos: 19 destes refugiados são crianças.

Não anteveem quando poderão regressar ao seu país. Mas querem voltar, assim que possível. Até lá, vivem um dia de cada vez, com o pensamento a ser assaltado de hora a hora com a escalada da guerra, e o coração sempre apertado, pensando nos seus entes queridos que permaneceram na Ucrânia.

Refugiados acolhidos em todos os concelhos do Médio Tejo

Começaram a chegar em março de 2022, depois de milhares de quilómetros de viagem, num quadro de emergência. Era preciso dar abrigo aos milhares de ucranianos que cruzavam as fronteiras fugindo da guerra iniciada com a Rússia, e a Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo disponibilizou de imediato habitações nos vários concelhos da região, financiando também autocarros que partiram de Tomar, Torres Novas e Mação para ir resgatar refugiados à Polónia. Um ano depois, muitos seguiram para outras paragens, para junto de familiares ou conhecidos que já estavam em Portugal. Mas cerca de 600 refugiados permaneceram no Médio Tejo e, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, estão hoje distribuídos por todos os concelhos, com as comunidades maiores centradas em Ourém e no Entroncamento. A maioria são mulheres e crianças – os homens ficaram na Ucrânia, na frente de guerra. P.F.

Encontramos duas mulheres de meia idade, uma loira e outra morena, olhos azulados, pele bonita, clara e imaculada. Vestidas casualmente, com sapatilhas. Recebem-nos com sorrisos e afáveis cumprimentos. Mostravam-se disponíveis e pareciam estar descontraídas e interessadas em falar da sua experiência, até que nos demonstram que não é bem assim.

Estabeleceram limites logo à partida. Não querem as suas identidades reais reveladas, nem ser fotografadas. Não querem que nada do que for publicado permita chegar à sua localização real e possa de algum modo comprometer a sua segurança, ou a das suas famílias.

Mas ao longo da conversa, que decorreu num misto de inglês, ucraniano e tradução imediata em português, o semblante tímido e algo apreensivo foi dando lugar a rostos atentos, focados em comunicar da melhor forma possível uma situação traumática e que as transtorna e que marcará profundamente as suas vidas para sempre. Apesar de tudo, foi com alguma serenidade que deram esta entrevista, como se se revertesse num voto de confiança a quem bem as tem acolhido.

“Não consigo explicar tudo o que aconteceu no dia em que tive de abandonar a minha casa… foi uma experiência horrenda”

Um ano passou desde que rebentou a guerra no país, e ambas recordam o dia 24 de fevereiro com pesar. “Infelizmente toda a Ucrânia acordou abalada pela notícia da entrada das tropas russas no país. Depois de se saber dessa notícia, todos desatámos a procurar os contactos de familiares e de amigos que estavam no estrangeiro e que pudessem ajudar”, começam por lembrar.

Deixaram familiares e amigos para trás, “que não quiseram sair apesar do grande perigo que estavam a correr”. Mal tiveram tempo para pensar. No caso de Anna, que chegou logo em março, veio com a mãe e saíram apressadas de casa, levando poucas coisas. Algumas peças de roupa, documentos… não sabiam quanto tempo teriam de estar fora, mas nunca se atreveram a fazer prognósticos sobre o fim da guerra.

Anna deixou o seu emprego para trás, na área da Medicina e Educação. “Não consigo explicar tudo o que aconteceu no dia em que tive de abandonar a minha casa… foi uma experiência horrenda”, começa por relatar.

“Como seria se agora te dissessem que tens uma hora para reunir o máximo de tudo o que precisas e abandonar a tua casa? Dizerem que tens de sair dali e fugir para algum sítio? Agarrei os meus documentos pessoais, o meu diploma, o meu passaporte, e levei comigo a minha mãe, que tem problemas de saúde, e saí.”

Explicam que vieram do oeste da Ucrânia, mas preferem não especificar mais dados concretos. Nem quantos anos têm. Falamos com duas mulheres “de meia idade”. Uma trouxe consigo a mãe, septuagenária e debilitada, e a outra atravessou a Europa de carro, com o filho adolescente ao lado.

Nunca vão esquecer o dia em que a guerra estalou. E sabem que não começou apenas numa região. “Ao mesmo tempo, em minutos, a guerra começou por todo o país. Existiram bombardeamentos e ataques por toda a Ucrânia, nos aeroportos. Os ataques militares, nomeadamente nas regiões de Kharkiv e Kiev, foram horríveis. Quando se vive numa cidade enorme, com cerca de 3 milhões de pessoas, e começam a atacar por todos os lados… sentimo-nos encurralados, impotentes, sem saber o que fazer.”

Num instante, o país estava debaixo de bombardeamentos consecutivos, nos aeroportos, no centro das cidades. “Aí soubemos que a guerra tinha começado. No dia 24 de fevereiro. De repente ficámos sem saber o que fazer e o que esperar, a pensar nas crianças e idosos. Muitos ficaram sem nada naqueles primeiros momentos. Na altura, os governantes transmitiam que o conflito iria cessar rapidamente, mas… já passou um ano e nada mudou”, lamentam.

Com os ataques a intensificarem-se e o receio a crescer, as pessoas começaram a procurar locais mais calmos e aparentemente mais seguros. Começaram a deslocar-se para as fronteiras da Ucrânia, começaram a acumular-se filas de automóveis, a quererem sair ao mesmo tempo e procurar abrigo.

Temendo bombardeamentos em larga escala, milhares de ucranianos começaram a sair de Kiev a 24 de fevereiro, rumo às fronteiras, para fugir do país. Fotografia: Pierre Crom/Getty Images

“Foi um grande caos. E na fronteira as pessoas tinham de esperar e ficar cinco, seis, sete dias sem comida, sem nada. Com criancinhas… foi muito difícil. Especialmente porque o sistema bancário da Ucrânia, apesar de não ter sido destruído, começou a ter problemas. Por causa disso, não tínhamos nada para nos desenrascarmos. Algumas pessoas nem foram a tempo de conseguir levantar algum do seu dinheiro para poderem orientar-se. O nosso sistema bancário suspendeu as operações a certa altura, e a maioria das pessoas teve de enfrentar dificuldades também por isso. Vivemos tempos muito diferentes… muito diferentes.”

Recordando a chegada à fronteira, Anna descreve uma altura em que a ajuda humanitária ainda não havia chegado de forma organizada, onde ainda tudo estava muito confuso.

À medida que o tempo foi passando, iam-se aproximando das fronteiras voluntários de múltiplos países: Polónia, França, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Reino Unido… iam trazendo comida para quem chegava à fronteira ou para quem por ali permanecia há dias, sem ter para onde ir.

“Foi um grande caos. E na fronteira as pessoas tinham de esperar e ficar cinco, seis, sete dias sem comida, sem nada. Com criancinhas… foi muito difícil”

Ao recordar aqueles dias, a emoção assalta com uma rapidez fulminante, embarga a voz e impede-as de continuar o relato. As lágrimas escorrem pelo rosto, respira-se fundo e estremece-se ao reviver aqueles momentos de dor e sacrifício. Mas a resiliência surge para dar novo embalo à conversa.

No caso de Anna, um conhecido que fora da sua turma e que estava na Polónia há alguns anos, telefonou-lhe logo e disponibilizou-se a ajudar, a ela ou a alguém que soubesse que precisava de ajuda. Disse que tinha um apartamento para ceder.

Era grande o aparato dos voluntários que depois tentaram reencaminhar os ucranianos, dando informação e distribuindo bens essenciais para a sua subsistência. Os refugiados eram encaminhados até um centro comercial transformado em centro de operações. Nesse centro comercial, podiam ficar um ou dois dias, com vários apoios, nomeadamente de saúde.

Nesse centro, contam, havia pessoas voluntárias em bancadas com várias bandeiras, de vários países, e em cada espaço era explicado que tipo de ajuda o seu país oferecia, se tinha condições para receber e como. Em um ou dois dias, os ucranianos tinham de decidir para onde ir.

Anna chegou a Portugal com uma caravana de voluntários, ex-militares de Abrantes, que rumaram à fronteira da Polónia levando alimentos, vestuário e medicamentos.

“Uma pessoa que não tivesse familiares ou amigos fora da Ucrânia, alguém que ajudasse ou acolhesse, neste centro encontrava alguém pronto a ajudar. Ao início havia um impasse, não se sabia se o conflito iria durar ou não. Falavam que haveria uma reunião e que a situação seria resolvida… acho que nos alimentaram essa esperança, mas nunca aconteceu.”

Anna chegou com uma caravana de voluntários, ex-militares de Abrantes, que rumou à fronteira da Polónia com a Ucrânia levando alimentos, vestuário e medicamentos. Trouxeram quem apanharam no caminho, entre eles Anna e a sua mãe. Estiveram em casa deles alguns dias, até serem albergadas numa habitação cedida pela paróquia.

Vigília pela Ucrânia, em Abrantes, em março de 2022. Foto: CMA

Viagem diferente teve Nataliya, que chegou a Abrantes em agosto. Formada em Biologia, mas a trabalhar na área da Economia, Administração e Finanças, trouxe consigo o seu filho. Viajou de carro até Abrantes, e sendo conhecida de Anna, foi pedindo orientação para chegar ao local certo.

Na Ucrânia deixaram irmãos, primos, amigos e vizinhos. O contacto é mantido de forma intermitente e com recurso à internet e redes sociais. “Quando eles têm eletricidade e não existem cortes, conseguimos estabelecer contacto. Falamos um pouco todos os dias, quando possível. Mas não é fácil. Estar a quase 6 000 quilómetros do meu país natal, da minha casa… perdi tudo.”

Apesar dos pesares, consideram ter tido a sorte de encontrar refúgio num local agradável. “Gosto de estar em Abrantes. É um lugar bastante amigável, as pessoas são solidárias e disponíveis. É muito importante para nós sentir que se importam connosco e com a nossa segurança. Não queremos ser vistas só como vítimas e coitadinhas e queremos muito agradecer todo o apoio que nos têm dado.”

“Gosto de estar em Abrantes. É um lugar bastante amigável, as pessoas são solidárias e disponíveis. Queremos muito agradecer todo o apoio que nos têm dado.”

Quanto a trazer a família para viver em Portugal, é uma incógnita. “Vamos ver… não sabemos sequer o que nos espera amanhã. Mas é normal querermos reunir-nos e vivermos todos juntos novamente.”

De vez em quando surgem contactos, pedidos de ajuda, de amigos e conhecidos que tentam encontrar em Portugal um porto seguro.

Para as refugiadas, o tempo já vai sendo aproveitado de outra forma, a passear pela cidade, a assistir a eventos culturais e a participar em iniciativas de lazer e desportivas, a visitar exposições, espaços museológicos e a vaguear pelo centro histórico, apreciando o património e comunicando com alguns habitantes com quem já estabeleceram laços de amizade.

Também ocupam o seu tempo nas aulas de Português – Língua de Acolhimento, curso ministrado pelo IEFP, para que, com a aprendizagem da língua, seja fomentada a sua autonomia e integração no país.

“A integração tem sido positiva”, mas a comunicação continua por afinar. Anna começou as aulas de português em maio, e diz que umas vezes o programa é mais intensivo, outras vezes mais acessível.

“Se já sei português? Bom, é melhor fazer essa pergunta à minha formadora”, diz, entre risos. “É diferente, e pessoalmente, não acho nada fácil. Acho que os dois meses de aulas não serão suficientes, preciso de mais tempo…”

Ainda assim reconhecem que foi uma grande surpresa o facto de a maioria dos voluntários, tanto nas fronteiras da Ucrânia como em Portugal, falarem inglês. “Isso facilitou um pouco. Mas temos tempo livre e temos de fazer algo por nós próprios, para melhorarmos, e então estamos dedicados a aprender português”, refere Anna. Até porque a guerra parece não ter fim, e isso significa que a estadia por terras lusas poderá prolongar-se.

Foto: Dmitry Zvolskiy / Pexels

Quanto ao acompanhamento que fazem da guerra a partir de Portugal, referem que o verdadeiro ponto de situação nunca é mostrado através dos media, pois “cada um mostra uma interpretação e um lado da guerra”.

É hábito acompanharem ao longo do dia o que acontece; de manhã ao acordar e à noite ao deitar, verificam o que se passa através dos grupos de conversa no WhatsApp, ou espreitam as aplicações oficiais que indicam as zonas em estado de alerta onde podem suceder eventuais ataques. Quem está na Ucrânia é avisado dos bombardeamentos e ataques aéreos através de sirenes, via rádio, e com os telemóveis estabelece-se uma rede que permite ir atualizando informação. Também recebem avisos da proteção civil ucraniana.

Anna mostra o seu telemóvel e indica-nos a informação que foi sendo dada ao longo do dia anterior, no WhatsApp. Indicam quando começam os ataques e quando abrandam, e voltam a alertar quando outro recomeça. Ao longo do dia vão havendo atualizações por pessoas que ficaram na Ucrânia.

Nataliya refere que agora a comunicação faz-se com mais obstáculos, devido às constantes falhas de energia a que o país está sujeito pelos ataques russos. Nem sempre é possível receber os avisos em tempo útil; há pessoas que podem estar cinco dias sem luz, em certas zonas, o que as impede de comunicar.

Nataliya refere que agora a comunicação faz-se com mais obstáculos, devido às constantes falhas de energia a que o país está sujeito pelos ataques russos.

Anna dá como exemplo uma situação em Kiev, em que bombardearam uma creche. Falou com um amigo que ia levar a filha, e do nada caiu um míssil naquela zona. Não houve receção de avisos, nem sempre é previsível um novo ataque. “O meu amigo teve sorte porque se atrasou para levar a menina à creche, caso contrário… poderia não ter sobrevivido para contar esta história. Vivemos um tempo de incerteza, nunca se sabe o que esperar e o que vai acontecer a seguir”, sublinha.

Nataliya, que vai desenhando com o dedo na capa do telemóvel enquanto nos vai tentando situar, como que a teletransportar-nos até à Ucrânia, admite que “é tudo muito pior do que se possa imaginar, muito pior do que os meios de comunicação alguma vez conseguirão mostrar”.

Com o inverno, tudo se torna mais complicado, e a guerra traz um panorama mais difícil de suportar. “Quem vive nas aldeias, tem a vida mais facilitada, com recurso a lenha e a lareira. Conseguem safar-se mais facilmente, armazenam água, têm meios de subsistência, alimentos”, descreve.

Porém, com os problemas no sistema elétrico, “há picos de energia que queimam os eletrodomésticos todos. Mesmo que tenham aquecedores em casa para poderem aquecer-se durante o inverno, com a energia a faltar recorrentemente, quando volta queima logo algum equipamento”.

Nas cidades, há quem use pequenos geradores, mas muitos dos geradores que começaram a enviar para a Ucrânia não aguentavam ficar no exterior, com as temperaturas de vários graus negativos, por isso alguns têm que funcionar dentro de casa, para durarem. Isso representa um perigo, podendo intoxicar os habitantes com os gases e fumos que deita. A situação é desesperante a este ponto, de procurar soluções e nem sempre correr bem.

aerial view of the old historical center of the city lviv in ukraine during winter
Créditos: Pexels

Para Nataliya, ainda assim, este inverno não está a ser tão rigoroso quanto outros no passado. “Não está tanto frio assim”, diz, apesar de a temperatura baixar até aos -15 C durante a noite e, ao longo do dia, subir até aos -4 graus.

Em termos de energia, devido aos cortes e picos, passou a existir um horário em que a energia é desligada por completo nas cidades. Mas há situações nas aldeias em que as pessoas passam 4 ou 5 dias sem energia.

“Nesta altura as temperaturas têm estado sempre abaixo de zero. Quando neva, é praticamente na totalidade de todo o território ucraniano. Isso dificulta muito a situação, visto que existe uma tremenda dificuldade nas ligações à energia. Muitas regiões do país têm períodos específicos de corte de energia para se poder gerir melhor essa escassez”, conta.

Existem casos de pessoas idosas, isoladas em aldeias, e se a bateria do telemóvel acabar, se tiverem uma situação de emergência, não têm como pedir auxílio, exemplifica.

“Neste momento, a principal preocupação e o maior anseio é que a guerra acabe. Estamos preocupadas com familiares e amigos que ficaram na Ucrânia, são preocupações constantes… seja pelos ataques praticamente diários, seja pelas condições em que se encontram, com o frio, a falta de água e os cortes de energia.”

exploded house in borodyanka
Créditos: Pexels

Dizem saber de amigos e conhecidos que foram para a linha da frente combater e que perderam a vida. Em termos materiais, nas suas áreas de residência para já não há indicações de que tenham sido destruídas as suas propriedades e as suas casas.

Nataliya viajou até Portugal com o filho adolescente porque teve receio de ficar na Ucrânia, antevendo que o conflito possa subir de de tom, envolvendo também a Bielorrúsia. Trouxe o jovem para o proteger dos riscos da guerra.

O filho gosta de estar em Abrantes, diz que aprecia a paz com que se vive na cidade e reconhece que as pessoas ajudam imenso.

“Já tem idade para entender o que é a guerra, sabe do que se passa e está informado até pelo contacto que vai tendo com amigos e colegas de turma. Além de ter aulas e estar inscrito num dos Agrupamentos de Escolas de Abrantes, continua a ter aulas online com os professores da Ucrânia e com presença na internet de alguns amigos que também fugiram para outros cantos do mundo”, diz-nos Nataliya.

Nota que há professores a esforçarem-se para dar aulas a partir das escolas, e outros que o fazem a partir das suas casas, transmitindo as aulas online. Há crianças e jovens a ter aulas na escola portuguesa, e depois ainda têm duas a três horas de aulas da escola ucraniana. Mas cada caso é um caso.

Sobre se preveem ficar em Portugal e integrar o mercado de trabalho, referem que estão a tirar o curso de português para tentarem aprender a língua, pois será uma grande ajuda caso tenham de permanecer cá. “A nossa situação é totalmente diferente de uma pessoa que queira emigrar, que faz uma opção para abandonar o seu país e procurar uma nova vida. No nosso caso é totalmente diferente, estamos longe de casa porque nos obrigaram a sair, porque quisemos salvaguardar as nossas vidas e as vidas dos nossos. Acabámos num sítio desconhecido… uma pessoa se quiser ir trabalhar para outro país, faz essa escolha. Não foi o que aconteceu connosco.”

Créditos: Pexels

Das duas, apenas Anna já tinha estado em Portugal, de viagem aos Açores, antes da guerra começar. Mas é entendimento das duas refugiadas que Portugal é “um país maravilhoso, com gente boa e acolhedora”.

“A cidade de Abrantes e as suas gentes têm-nos acolhido bastante bem e têm ajudado bastante. É uma cidade calma, o que ajuda muito a tranquilizar, após o trauma vivido com esta invasão russa”, diz Nataliya, apontando o senão de ter muita dificuldade em aguentar o calor que se faz sentir na região.

Na alimentação, confirmam que a comida tem algumas diferenças… “Mas é algo que conseguimos adaptar”, desvalorizam. No que toca ao acesso a serviços como as Finanças e Segurança Social, dizem que “funcionam de forma diferente em alguns aspetos, mas há muitas semelhanças entre Ucrânia e Portugal”.

Ao início, aquando da chegada de refugiados a Abrantes, foi o ucraniano Maksym Darmogray, funcionário da Câmara Municipal de Abrantes, que serviu de tradutor para conseguirem resolver questões a nível de instituições bancárias e serviços públicos, até porque tinha de explicar aos refugiados os procedimentos e traduzir para o responsável pelo atendimento em português.

“As pessoas aqui ajudam mais do que aquilo que lhes compete, ajudam sempre mais”, garante Nataliya.

Dizem-se bem acolhidas, e o saldo parece ser positivo, até porque dada a situação não criaram expetativas sobre o que as esperava. “O pior já nos tinha acontecido, por isso, a cada dia fomos sendo surpreendidas. Tem sido uma experiência de acolhimento positiva até agora”, dentro do possível.

Isto porque “nunca se aceita bem a ideia de sair do seu país, ainda para mais fomos forçadas a isso. Infelizmente essa ideia é muito difícil de digerir. Uma pessoa que tem a sua vida normal e que, de repente, é forçada a sair e deixar tudo para trás… Causa grande transtorno emocional…”, confessa Nataliya.

Além disso, a perda de amigos próximos e familiares é algo que as assombra regularmente. Até porque continuam a saber de muitos conhecidos das suas cidades que foram destacados para a frente de combate, situação que as deixa de coração apertado e sempre sobressaltadas, temendo mais más notícias.

Não conseguem responder se querem ficar a residir por cá ou se anseiam regressar o mais rápido possível à Ucrânia. “É uma situação muito complicada de responder, visto que a guerra parece não ter fim. Mas claro que gostávamos muito de regressar à Ucrânia. Só não sabemos quando”, dizem.

E no futuro, assim que seja possível regressarem à Ucrânia, o que vão fazer? Num tempo incerto, optam por não criar expetativas nem pensar muito no assunto. Mas a resposta surge, após um momento breve de introspeção: “Não sabemos o que nos reserva, mas sem dúvida que correremos a visitar e abraçar familiares, encontrar aqueles que estão vivos, mas também prestar homenagem aos que faleceram na frente de combate e visitar as suas campas.”

A ajuda humanitária, a solidariedade abrantina e a criação de um Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano

Na primeira quinzena de março muitas foram as mobilizações no país, desde logo pelo apelo feito à solidariedade internacional para com o povo ucraniano, mas numa primeira fase enviando bens para apoiar a Ucrânia e os refugiados que se deslocavam para as fronteiras.

Em Abrantes, cedo se percebeu que algo deveria ser feito e pensado não só para levar o apoio àquele país do leste da Europa, como precaver e preparar a receção caso começassem a procurar refúgio e auxílio no concelho e na região.

Vigília pela paz na Ucrânia, realizada a 16 de março de 2022. Foto: mediotejo.net

A autarquia, as instituições de cariz social, a Igreja, grupos voluntários de cidadãos quiseram fazer parte desta ajuda humanitária mediante um cenário dantesco de imprevisibilidade e receio.

A Igreja, através das Paróquias de São Vicente e São João, disponibilizou dois edifícios paroquiais para acolhimento de refugiados, e atualmente estão nove refugiados numa dessas casas, no centro da cidade. Entre os que permanecem e os que saíram, passaram por ali 20 refugiados do grupo de 70 que inicialmente se previa chegarem a Abrantes, alguns com outros destinos já programados, outros que acabaram por tomar opção de ir para outro local ou regressar ao país.

Conta-nos o padre António Castanheira, pároco de Abrantes, que os refugiados acolhidos, também com apoio do Centro Social Interparoquial de Abrantes, foram contando com fornecimento de refeições desde a sua chegada até agora. “Continuamos a fornecer todas as refeições aos refugiados que estão na casa da Paróquia, desde início. As casas foram preparadas antes da sua chegada, com funcionários do Centro Social Interparoquial a integrarem uma onda de voluntariado e intervirem no sentido de dar o melhor acolhimento possível a estas pessoas vindas da Ucrânia”, diz.

Padre António Castanheira, pároco de São Vicente e São João, concelho e arciprestado de Abrantes. Foto: mediotejo.net

Questionado sobre como tem sido a integração das pessoas e como tem sido feito o seu acompanhamento, o padre diz que “o trabalho de integração tem sido feito com muita parcimónia. Nós não queremos ser intrusivos na vida destas pessoas e queremos estar disponíveis para colaborar e ajudar no que for necessário. Alguma da necessidade premente tinha que ver com a regularização e legalidade da sua permanência no país, e isso foi feito em coordenação com os serviços da autarquia e com o Alto Comissariado para as Migrações”.

Passado um ano, admite não ser fácil alcançar estas pessoas e perceber o que sentem e o que as atormenta, mesmo que contem com a proteção da Igreja. “Sempre se manifestaram todos muito reservados, com exceção de dois refugiados da Ucrânia mas de outra nacionalidade, que dois dias depois de chegarem perguntaram onde poderiam trabalhar para serem remunerados e poderem ter as suas autonomias. Conseguiu-se trabalho para eles na altura, continuaram a viver nesta casa com os restantes refugiados, mas a perspetiva é de eles se tornarem autónomos. Em relação aos outros, são muito recatados, não têm falado muito de perspetivas de trabalho, mas parece-me que a sua perspetiva passa por ficarem em Abrantes, a grande maioria. Outros quererão regressar”, assume António Castanheira.

Quanto às suas vidas, ao seu agregado familiar, entre os que ficaram e os que vieram, “os refugiados ucranianos são muito, muito reservados. Não se abrem e eu também não procuro saber. E depois temos a barreira linguística”, indica.

“Aparecem alguns no culto católico, sendo ortodoxos, e fazem-no com toda a dignidade. Há outros que nunca deram o mais pequeno sinal de proximidade, não se manifestam. Outros vêm com muita frequência agradecer o cuidado e a atenção”, menciona.

“Aparecem alguns ucranianos no culto católico, sendo ortodoxos, e fazem-no com toda a dignidade. Outros vêm com muita frequência agradecer o cuidado e a atenção”

Padre António Castanheira

A expectativa era que “a guerra fosse mais breve”, e o sacerdote não tem dúvidas que “há que ajustar a presença e permanência dos refugiados ucranianos entre nós”.

O padre reconhece que, caso se prolongue no tempo esta situação, terá que se encontrar outras respostas, porque a habitação que é propriedade da paróquia serve outros propósitos. Notou que está pensado um dos edifícios servir nomeadamente para a Jornada Mundial da Juventude em que o Arciprestado de Abrantes vai receber jovens de outras partes do mundo, de 26 a 31 de julho, nas chamadas pré-Jornadas. Na cidade de Abrantes ficará um grupo de 200 noruegueses, segundo o pároco.

“Veio a guerra, intrometeu-se, e o acolhimento de refugiados é importante, mas estando há um ano, já terão ambientação para poderem tomar outros caminhos de maior estabilidade de habitação”, defende.

Padre António Castanheira conduziu a missa da vigília promovida pela paz na Ucrânia. Foto: mediotejo.net

Para o padre António Castanheira a guerra foi uma surpresa. “Eu achava – se calhar é um defeito de formação – que as pessoas são capazes de fazer a paz e viver em paz. E depois da Queda do Muro de Berlim e de desfazer-se a ideia da URSS, os países estão suficientemente estabilizados, voltaram as fronteiras antigas, e o ambiente político e de organização internacional estaria estabilizado. Nunca pensei que acontecesse. Mas tendo acontecido, é sempre inesperado.”

Releva e reconhece “a resistência deste povo martirizado da Ucrânia” e afirma que “a violência nunca é justificada, muito menos com esta dimensão e destruição humana”.

“O que será do coração daquelas pessoas, absolutamente destroçado, demolido, com as perdas humanas, as perdas das relações, o não poderem ter uma vida serena, sossegada e de esperança. Passaram a viver hora a hora e mais do que o dia a dia conforme costumamos dizer em Portugal”, lamenta.

“Incomoda-me como pessoa e na minha fé e no meu acreditar; creio que os homens são capazes de viver numa relação de paz uns com os outros apesar das diferenças. Todos nós somos diferentes.”

Maksym Darmogray e a vereadora Raquel Olhicas têm articulado o trabalho do Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano da CM Abrantes. Foto: Carlos Grácio

Do lado da Câmara Municipal de Abrantes o trabalho foi sendo articulado com apoio da Igreja neste acolhimento. A autarquia “abraçou este desafio de solidariedade e de querer ajudar este povo que estava em sofrimento extremo, não só o povo, como o país em geral”, diz Raquel Olhicas, vereadora da Câmara de Abrantes com os pelouros da Ação Social e da Saúde.

Foi rapidamente delineada uma estratégia municipal para ajudar com maior eficácia os refugiados, mas não foi pêra doce. “Estávamos a trabalhar um pouco no desconhecido, num estádio muito inicial da calamidade da guerra, não sabíamos as repercussões, não sabíamos por quanto tempo seria”, admite a vereadora.

Uma das medidas passou pela criação do Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano, tendo sido convidado o funcionário da autarquia Maksym Darmogray, natural da Ucrânia mas a residir desde muito jovem em Portugal, para se construir este gabinete que dispõe de uma linha telefónica disponível 24 horas por dia.

Também a Rede Social se mobilizou, entre os mais de 72 parceiros, para delimitar estratégias, tendo o núcleo executivo de Conselho Local de Ação Social (CLAS) reunido extraordinariamente para atuar perante as principais preocupações: a alimentação e a habitação.

“Sabíamos que a qualquer hora os refugiados poderiam aparecer no nosso país, e assim aconteceu. Tivemos uma bolsa de 40 famílias de acolhimento em Abrantes, que disponibilizavam as suas casas próprias e disponibilizavam uma ou duas assoalhadas para acolherem estas pessoas. As famílias de acolhimento tiveram um papel fundamental”, descreve Raquel Olhicas.

No que toca à habitação, também foi disponibilizado o antigo Patronato, da Santa Casa da Misericórdia, as Paróquias de Abrantes disponibilizaram duas casas propriedade da Igreja e em algumas freguesias também as paróquias disponibilizaram casas, no entanto houve preferência pela habitação dentro do perímetro urbano pelas famílias que ficaram.

Mas o verdadeiro desafio chegou depois, com o principal trabalho de monitorização e acompanhamento das pessoas chegadas do contexto de guerra e com a verdadeira implementação do Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano, que é como quem diz, a altura em que Max se torna o rosto amigo dos refugiados que chegam a Abrantes.

Maksim vive em Abrantes desde os 10 anos, quando os seus pais decidiram sair da Ucrânia e imigrar para Portugal, em busca de uma vida melhor. Créditos: mediotejo.net

Maksym Darmogray tem 30 anos, nasceu na Ucrânia, mas veio para Portugal aos 10 anos com os pais. “O meu pai já estava cá, passado um ano veio a minha mãe, e depois eu. Quando cheguei, entrei logo no Ciclo [Escola D. Miguel de Almeida]. O primeiro ano foi mais complicado, não sabia nada de português, só algumas palavras que o meu pai quando nos visitava ia dizendo. Mas passado um ano já conseguia desenrascar-me. Ainda era muito jovem e ia apanhando tudo”, diz, notando que a dificuldade é maior para pessoas mais velhas em aprender português, especialmente a gramática. “É o pior, a ligação das frases, perdemos muito tempo a explicar”, diz.

Voltou pela última vez à Ucrânia quando tinha 18 anos, para se apresentar presencialmente devido ao serviço militar obrigatório.

Fez os estudos em Abrantes, até se licenciar em Turismo e depois fazer o mestrado em Marketing e Promoção Turística, através do Politécnico de Leiria. Estagiou na Câmara de Abrantes, até que passou a integrar o Serviço de Turismo na Divisão de Cultura, mas estando atualmente na Divisão de Desenvolvimento Económico.

Apesar de estar cá há mais de 20 anos, nunca se desligou do seu país natal, e em altura de conflito armado não foi diferente.

“Lembro-me da chamada telefónica do Presidente Manuel Jorge Valamatos a pedir uma reunião urgente, e foi dali que surgiu a criação do Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano. Não havia como recusar”, afirma.

Max, como é tratado por todos, diz que já acompanhava e estava sensibilizado para o estado de alerta na Ucrânia há mais tempo. “Começou em 2014 a primeira entrada da Rússia na Ucrânia, a 20 de fevereiro. E depois foi estabilizando, fizeram fronteiras fictícias e a população deixou de se preocupar tanto. Desta vez a escalada foi muito pior… lembro-me de ver as notícias, ao acordar, e soube primeiro que os meus pais porque recebo notificações no telemóvel através de uma aplicação de notícias. Fui falar com os meus pais, ligaram para a Ucrânia e confirmaram que tinha começado a guerra”, recorda.

Tem lá família direta da parte da mãe, e através deles vão acompanhando e sabendo o que se passa, de outra forma. “A Ucrânia é um país extenso, mas bombardearam em todos os pontos de interesse militar, não havia margem para dúvidas de que a guerra estava instalada. A minha família chegou a dizer que um dos pontos militares junto à nossa cidade tinha sido atacado, logo nos primeiros dias.”

À semelhança do trabalho que Max foi desenvolvendo com os refugiados que chegavam a Abrantes, também a comunidade ucraniana na região e no país se prontificou a ajudar na integração e acolhimento, bem como na tradução, desde logo para encaminhamento para o hospital para avaliar condições de saúde.

“Foi muito stressante. Porque as pessoas não tinham documentação ainda para acesso. Mas o hospital estava informado e preparado para atender estas pessoas”, e tudo se fez.

Quanto à parte mais complicada no apoio que presta através do Gabinete da Câmara de Abrantes, diz, é a tradução. “Rouba mais tempo e dá mais trabalho. Se for com uma família à Segurança Social estou lá pelo menos meia hora a fazer o pedido. Houve situações em que levei cinco ou seis famílias, e isso era complicado. Havia serviços a ligarem diretamente a pedir-me ajuda, quando tinham agendamento, tentavam saber se podia lá passar”, relata.

Diz que ao início era complicado gerir, e até compatibilizar com o seu trabalho na autarquia, mas confessa que atende o telemóvel a qualquer hora, estando disponível 24 sobre 24 horas para apoiar no que for necessário. Este passou a ser o seu trabalho prioritário.

Maksym Darmogray, funcionário da Câmara Municipal de Abrantes, de nacionalidade ucraniana, é o rosto do Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano desde o momento zero. É o apoio dos refugiados no concelho de Abrantes e tem tido um papel fundamental enquanto tradutor, quebrando a barreira linguística. Foto: Carlos Grácio

Max tem noção do seu papel e da importância que tem como rosto do acolhimento e conforto às pessoas refugiadas ucranianas, que chegavam cheias de dúvidas. E, na verdade, ainda continuam a tê-las. “Faziam muitas perguntas, queriam perceber como se orientar. Havia até algo simples que lhes fazia confusão, como exemplo, o facto de em Portugal se dizer ‘bom dia’, ‘boa tarde, e ‘boa noite’. Perguntavam-me logo como deviam proceder, e o que deviam dizer e quando. Lá cumprimenta-se de outra forma”, conta.

Por outro lado, acaba por também ser o suporte e apoio a nível psicológico e emocional. Ainda que na altura em que a autarquia disponibilizou três psicólogos para os refugiados, a maioria não solicitasse esse apoio e impedisse chegar às crianças e jovens. “Os pais fechavam mais o círculo. Eu tentava falar com eles, mas nunca avançávamos. Eles optavam por falar comigo…”, diz, referindo que impediam conversa com tradução, notando algum melindre nesta tentativa de chegar aos seus filhos.

Ainda assim, são cerca de 20 as crianças que continuam em Abrantes e isso fez com que se mantivesse alerta e os acompanhasse de perto. Até porque o trauma começou a ser visível em pequenas coisas no quotidiano.

“Tive situações em que vi com os meus próprios olhos a consequência deste trauma da guerra. Abrantes fica numa posição mais sensível, com três quartéis militares na zona. Conseguimos ouvir os tiros e disparos em Santa Margarida nos exercícios de treinos militares com fogos reais. Além da passagem de aviões da Força Aérea com alguma frequência. Um dos casos aconteceu com os aviões… O miúdo estava na rua a brincar, sentiu o avião a passar, ouviu o barulho e imediatamente fugiu para dentro da casa. Não saiu o resto do dia…”, lembra, detalhando e deixando passar algum do desconforto e tristeza provocados por aquela memória.

As crianças que estão a residir em Abrantes carregam os traumas do que viram na Ucrânia e assustam-se com alguma frequência, por haverem três quartéis militares na zona e por vezes se ouvirem disparos, em treinos com fogo real. Também a passagem de aviões da Força Aérea causa medo, mesmo tantos meses depois.

Na generalidade, diz Max, as pessoas refugiadas “fecham-se em si próprias”, e “há certos aspetos dos quais preferem não falar”. Esta sua experiência de voluntariado em prol do povo ucraniano, do seu país natal, é “totalmente diferente” daquilo que já fez. “Vai-me marcar muito.”

Esteve presente desde a primeira hora na receção das famílias ucranianas. Reencontrou os seus conterrâneos em posições vulneráveis, frágeis, com sacos de plástico onde traziam alguns pertences ou bens, desprotegidos, deslocados… E tinha agora a responsabilidade de os fazer sentir “em casa”.

Muitos destes refugiados saíram de Portugal, voltando de imediato para a Ucrânia porque não conseguiam estar em Abrantes sabendo que os pais, filhos, maridos e companheiros tinham ficado na guerra. Caso de uma médica que tentaram que ficasse enquanto auxiliar de saúde na cidade, e de duas outras mulheres que partiram “para uma cidade que passado um mês ou dois foi bombardeada”. Algumas voltaram, correndo riscos, mas outras continuam a zelar pelas suas vidas e pelas vidas de quem trouxeram consigo.

Atualmente permanecem em Abrantes 46 refugiados vindos da Ucrânia, na maioria mulheres adultas, com idades compreendidas entre os 35 e 55 anos, alguns idosos e 19 crianças. Destas crianças, 85% frequentam escolas de Abrantes e mantêm aulas online no ensino da Ucrânia.

Foi feito encaminhamento para o CLAIM (Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes), na Associação Vidas Cruzadas, em articulação com o Alto Comissariado para as Migrações (ACM).

Ali se inscreviam a nível do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para receber o documento de proteção temporária – regista a morada, sendo também obrigatório o registo nas Finanças e Segurança Social – não só para conceder direitos de acesso a rendimento social de inserção e abonos de família, como também para terem número de utente de acesso ao Serviço Nacional de Saúde.

Além de proporcionar o acesso a serviços, também permite a integração no mercado de trabalho nacional. O Título de Proteção Temporária tem uma duração inicial de um ano, com muitos a caducar nas próximas semanas e a terem de ser revalidados, pois o documento pode ser prorrogado por mais um ano.

Com os menores teve de ser feita deslocação, por duas vezes, à delegação distrital do SEF, em Santarém, e o gabinete de apoio fez acompanhamento das crianças nos Agrupamentos de Escolas de Abrantes, tendo em conta as vagas que existiam.

Outro dos passos passou por inscrever os refugiados na formação de Português – Língua de Acolhimento, programa dinamizado pelo IEFP. Por outro lado, o Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano foi ainda fazendo articulação com as empresas do concelho, aferindo a disponibilidade para empregar estas pessoas.

Dentro das atividades promovidas, a vereadora Raquel Olhicas lembrou ainda as ações de solidariedade dinamizadas desde o princípio, caso do envio de um camião com 24 toneladas de bens alimentares e de primeira necessidade para a Ucrânia, após recolha solidária dinamizada por todo o concelho, entre juntas de freguesia, Bombeiros, Cruz Vermelha, e com muita adesão dos cidadãos.

Vereadora Raquel Olhicas, responsável pelos pelouros da Ação Social e Saúde na Câmara Municipal de Abrantes. Foto: Carlos Grácio

“Outros municípios remeteram para Abrantes os produtos resultantes de recolhas solidárias nos seus territórios, porque a nossa iniciativa foi única na região do Médio Tejo. E também as paróquias faziam chegar o resultado das suas recolhas. Dali seguiram para a Polónia, e depois para a Ucrânia. Aqui foi determinante a dádiva da empresa sediada em Abrantes, OKE, que permitiu cobrir o custo de transporte, a rondar os 3 mil euros. Foram os únicos que nos socorreram na altura, de outra forma não conseguiríamos”, salienta, mostrando reconhecimento.

Lembra a chegada de refugiados e as diversas situações que cada um encerra, com origens distintas e com opções também diversas. “A maioria dos refugiados que chegaram já estavam orientados, já tinham contactos com pessoas que os acolheriam. Outros optaram por seguir para Espanha ou outros pontos do país. Outros por aqui ficaram.”

Destaca o apoio da Paróquia de Abrantes e do padre António Castanheira. “Foi imprescindível”, diz, pois acolheu mais de 20 pessoas, “assumindo as custas todas, desde alimentação, água, luz e gás” com apoio do Centro Social Interparoquial.

Por outro lado, enquanto vereadora responsável pela organização e logística de toda esta operação, assume ter sido positivamente surpreendida pela resposta dada pela população. “A comunidade abrantina, tendo em conta este alerta, reagiu, respondeu com muita proatividade, estando sempre disponível para ajudar no que fosse necessário, mesmo a nível de voluntariado, com bens ou habitação. Temos famílias que se disponibilizaram para orientar os ucranianos e encaminhá-los para consultas de saúde, ir ao hospital… Sei que as pessoas são boas e que reagem bem em situações de catástrofe, mas fiquei agradavelmente surpreendida com esta dádiva e com este espírito tão humanitário de que Abrantes se reveste”, notou.

“Sei que as pessoas são boas e que reagem bem em situações de catástrofe, mas fiquei agradavelmente surpreendida com esta dádiva e com este espírito tão humanitário de que Abrantes se reveste”

Raquel Olhicas, vereadora da Câmara Municipal de Abrantes

Diz-nos que a principal carência tem que ver com a disponibilização de habitação, pois “os parques habitacionais dos municípios não são os ideais, porque têm que dar resposta a outras situações”. E o mesmo acontece com as habitações das paróquias. “Temos famílias muito vulneráveis a precisar de apoio e temos de fazer uma ginástica e equilíbrio muito grande para não estar a hiper-proteger uns e a deixar outros menos protegidos”, argumenta.

“Queremos tentar autonomizar as pessoas acolhidas vindas da Ucrânia. Um casal de indianos que veio de lá já vai ter uma casa própria, já têm emprego e vencimento. Os restantes, seria ideal encontrar casas para todos e autonomizá-los por via do emprego. É esse trabalho que agora vamos fazer, mas tem de se avaliar caso a caso”, reconhece.

Quando terminarem o curso de português pelo IEFP, ficam aptos a integrar o corpo de uma empresa. Há também situações que não esperaram pelo curso, como o caso de uma pessoa que foi já trabalhar numa padaria de Abrantes.

“Existem situações muito díspares. Uns vieram com grupos de voluntários, outros pediram boleia, e outros vieram em viatura própria. Muitos estão a chegar de carro, e estão autónomos e independentes, e só contactam o Gabinete de Apoio ao Povo Ucraniano para pedir informações, sabendo que estou cá e que sou ucraniano”, acrescenta Maksym.

Quanto ao retrato e perceção sobre a forma como os refugiados ucranianos permanecem na cidade e se vão mostrando, é seu entendimento que “a maior parte está conformada, não são exigentes. São pacíficos. Aceitam tudo o que lhes for dado. E querem trabalhar. Não querem sentir-se invadidos, querem ter o seu espaço e o direito à privacidade e sigilo. Querem estar no cantinho deles”, descreve Raquel Olhicas.

Neste aspeto, Max confirma esta perceção da vereadora. Sente essa mesma atitude por parte do grupo e o facto de se estarem a fechar sobre si próprios e não darem nas vistas é, considera, um mecanismo de autoproteção e defesa. Depois de terem sido violentados no seu país, não é fácil voltar a confiar que existe gente e lugares de paz.

“Há coisas que nos passam despercebidas. Os refugiados têm receio do preconceito, da ameaça dos movimentos extremistas, querem salvaguardar-se disso. Receiam alguma perseguição e confronto”, explica Max. “A guerra não é só lá.”

A maior crise de refugiados na Europa desde a II Guerra Mundial

A ofensiva militar lançada em 24 de fevereiro de 2022 pela Rússia na Ucrânia causou até agora a fuga de mais de 14 milhões de pessoas – 6,5 milhões de deslocados internos e mais de oito milhões para países europeus –, de acordo com os mais recentes dados das Nações Unidas (ONU), que classificam esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Neste momento, pelo menos 17,7 milhões de ucranianos precisam de ajuda humanitária e 9,3 milhões necessitam de ajuda alimentar e alojamento. A ONU apresentou como confirmados, desde o início da guerra, 7.155 civis mortos e 11.662 feridos, sublinhando que estes números estão muito aquém dos reais.

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *