Arnaldo Vicente é um dos produtores da afamada couve de Valhascos. Créditos: mediotejo.net

Talvez seja possível resumir Valhascos: terra de couve enorme e solo fértil, graças ao pH, mas também de memórias, de histórias e de ambições, como a certificação que a Associação Cultural e Desportiva pretende dar ao produto. Sendo certo, que a semente da afamada couve espalhou-se por outros terrenos e cantos do País, contudo sem grandes resultados, no que diz respeito ao porte, como acontece em Valhascos, onde a planta atinge tamanhos surpreendentes. Uma realidade envolta em mística, que, na verdade, não passa de botânica, mas que suscita a curiosidade.

Chegar a Valhascos, no entanto, não têm qualquer ciência. Antes de entrarmos naquela aldeia de Sardoal, só pelo conto popular, imaginamos os couvais de exemplares avantajados nas hortas, ao lado dos campos de oliveiras e o casario que por estes tempos é residência de cerca de 350 pessoas. Foi a couve que nos levou até lá, à beira do 3º Festival no qual será apreciada com azeite novo e ao qual está definitivamente associada.

Nascido e criado em Valhascos, Arnaldo Vicente, de 62 anos, conhece bem a hortícola, que todos os anos planta pelo mês de agosto, para que cresça “até ao Natal e para oferecer algumas”. Não a comercializa. Na verdade, a única produtora de couve de Valhascos que vende é Augusta Lourenço, de 73 anos.

Os restantes agricultores produzem para consumo doméstico, este ano já a contar com o Festival da Couve de Valhascos com Azeite Novo, e muito por insistência da Associação Cultural e Desportiva de Valhascos que organiza o evento em parceria com a Tagus – Associação para o Desenvolvimento Integrado do Ribatejo Interior e com o Município de Sardoal.

Qualquer um percebe ser uma planta de tamanho grande, mas diz quem sabe que em média pesa entre três a quinto quilogramas, tem diâmetro inferior a 90 cm, caule grosso a médio e longo, cicatriz foliar grande, 10 a 12 folhas de pecícolo e folha grande arredondada, elíptica ou reniforme, de cor verde a verde-clara, com margem subinteira ou crenada, de muitas nervuras brancas em ambas as páginas e pseudo-repolho central muito grande, elíptico ou irregular. Muitos termos técnicos mas que definem esta espécie de couve e porque é tão apreciada e afamada por terras de Sardoal e da região envolvente. Claro que as características do solo e do clima também entram na equação final palatal e sensorial.

Mas “há dois ou três anos” Arnaldo viu desenvolver-se na sua horta “uma couve com 14 quilos que ofereci a um rapaz de Alcaravela. Era enorme, nunca tive uma couve tão grande como aquela. Mesmo as folhas eram enormes, algo fora do normal”, conta.

Trata-se de uma couve portuguesa, tronchuda – embora as opiniões continuem a dividir-se entre ser tronchuda ou de olho -, cujo nome científico é brassica oleracea, da família das crucíferas ou brássicas. Uma couve muito tenra, adocicada e aromática.

Arnaldo Vicente é um dos produtores da afamada couve de Valhascos. Créditos: mediotejo.net

“Normalmente as couves de Valhascos são plantadas na terra de onde arrancamos as batatas, para aproveitar um pouco do adubo. E a couve aproveita”, explica Arnaldo, que opta pela plantação em meados de agosto, sendo que as condições meteorológicas também têm uma palavra a dizer.

“Agora veio muita chuva e estraga, apodrece. E há a questão das lagartas. As couves não são tratadas, porque são para consumo da casa”, justifica.

Falamos de uma couve muito consumida, desde setembro até março, sendo de especial apreço na época da safra da azeitona, regada pelo azeite novo, e na consoada de Natal, onde não pode faltar a acompanhar o bacalhau e as batatas cozidas.

Por volta de junho, “semeiam-se os canteiros. Aproveito para semente umas quatro ou cinco couves, poucas, que é só para consumo próprio, as que têm melhor bola, que são mais originais”.

Arnaldo Vicente confirma que, devido à qualidade do solo, a couve não precisa de muito estrume. “Desde que seja plantada, sachada e colocando um bocadinho de estrume quando ainda são pequenas, por norma a couve desenvolve-se muito bem”.

A couve floresce duas vezes por ano, sendo plantada em junho e em outubro para crescer até ao Natal. Mas as melhores produções obtêm-se com o plantio de inícios de setembro até outubro, com as temperaturas de outono, nos terrenos férteis e com capacidade de retenção de água, mas também drenagem suficiente para que se evitem excessos.

Por isso, Arnaldo Vicente refere que a melhor localização é o terreno mais elevado da horta, “por causa da chuva. Quando é muita, se a couve estiver num terreno mais baixo, acaba por apodrecer a couve. Numa zona elevada a terra seca mais rápido”.

Couve de Valhascos. Créditos: mediotejo.net

A sementeira deve ser feita pelo Santo António (junho), os períodos de sementeira e transplante interferem nas propriedades nutricionais da couve. Tradicionalmente a sementeira é feita em canteiros, sendo depois mudada para lugar definitivo em finais de agosto, até início de outubro. A rega é fundamental no período de transplante.

Desde que há memória que a produção desta couve é realizada nas hortas e campos de Valhascos, terra das mais férteis do concelho de Sardoal, com um microclima que permite o seu cultivo com características, como sabor e textura só possíveis nesta freguesia. Não é afetada pelas geadas, pelo contrário, o que permite que se torne mais macia e tenra.

As flores são brancas, hermafroditas, auto férteis e são na sua maioria polinizadas por abelhas. E nem tudo corre sempre bem na polinização, uma vez que há preocupação com a preservação da semente genuína. Para evitar que a planta se descaracterize, os agricultores deslocam as couves para locais isolados na horta, de forma a que as abelhas, durante a polinização, não coloquem nas couves de Valhascos pólens de outros tipos de couve, privando a planta da sua singularidade. Mas mesmo assim acontece, refere Arnaldo.

“A geada não prejudica a couve. E por norma chega em janeiro, já a couve foi comida. E depois em novembro, quando a transplantamos para aproveitar a semente, arrancamos a planta do local onde está e colocamos noutro para evitar que a abelha polinize e altere a semente”.

A sua fama na região do Médio Tejo depressa a destacou para contexto nacional, sendo hoje possível encontrar as suas sementes comercializadas em vários locais do País e por várias marcas nacionais. Isto só foi possível porque desde tempos ancestrais os valhasquenses fazem de forma exímia a seleção genética desta preciosa hortícola, tendo incrementado a sua comercialização nacional.

César Marques e Duarte Batista na Associação Cultural e Desportiva de Valhascos. Créditos: mediotejo.net

Nos anos 1980 “um produtor local levou a semente da couve de Valhascos para a loja das sementes em Lisboa e iniciou comércio de sementes a nível nacional. Se hoje formos a uma loja de sementes ainda vemos os pacotes de couve de Valhascos. Portanto, já teve uma amplitude maior do que tem atualmente. Não era tão divulgado”, explica César Marques, secretário da Associação Cultural e Desportiva de Valhascos.

Pela freguesia, é cultivada em todos os quintais das habitações e também em hortas, para consumo e comercialização. Nesta parte entra a Associação Cultural e Desportiva de Valhascos e a Tagus, no seu papel facilitador e potenciador da marca.

“Procurámos o apoio da Tagus por causa dos mercados nas aldeias e pensámos que, com a presença da Tagus, poderíamos conseguir ter um pequeno mercado de produtores e incorporar o nosso produto. Percebemos que a Tagus tem um conjunto de apoios, no contexto de apoios europeus, para os produtores. É o veículo para chegar a esse tipo de apoios. Divulga, traz produtores e traz pessoas. Uma parceria que tem resultado muito bem”, explica César.

A Tagus é uma entidade de direito privado sem fins lucrativos. Foi constituída em 26 de novembro de 1993, fruto de uma parceria público-privada. Surgiu para dar resposta às necessidades de criação e aplicação de uma estratégia para o Desenvolvimento Local dos concelhos de Abrantes, Constância e Sardoal. É composta por entidades públicas e privadas da região.

Como objetivo primordial visa a promoção, apoio e realização de um aproveitamento mais racional das potencialidades dos três referidos concelhos e concelhos limítrofes, tendo em vista o desenvolvimento rural em todas as suas componentes e a melhoria das condições de vida das populações residentes.

A importância da couve é tal que integra o logótipo da Associação Cultural e Desportiva e da Junta de Freguesia. Por isso, foi quase natural surgir uma ideia no sentido de valorização daquele produto endógeno, muito por vontade, também, do presidente da Câmara de Sardoal, Miguel Borges, conta César Marques.

Nesse sentido, a direção da Associação pensou “numa noite temática com um produto nosso, divulgarmos, dar os louros a um dos nossos produtos tão afamado. E fez-se com uma noite de fados. A procura foi imensa. Escolhemos esta época porque é a campanha da azeitona e a aldeia tem mais dinamismo. Achámos que era o timing certo. Quando temos a couve e o azeite novo”, recorda Duarte Batista.

O Festival surgiu em 2019, era Duarte Batista presidente da direção da ACD Valhascos, sendo um dos impulsionadores do evento. Naquele primeiro ano num modesto formato: “um jantar com fados em torno da couve de Valhascos e, por ser nesta altura do ano, juntou-se o azeite novo, porque está ligado, mesmo no prato. Seguiu-se um workshop sobre características e processos do azeite”, reforça César Marques.

A segunda edição decorreu em 2022, devido ao interregno provocado pela covid-19, conjugando “dois dias, mais completos. Possibilitando conversas sobre o tema. Achávamos que a produção da couve de Valhascos estava a ser feita de uma forma avulsa, ou seja, cada agricultor produzia a couve de Valhascos mas para consumo, era uma produção parca. No ano passado tivemos imensa dificuldade em conseguir couves para o Festival”, dá conta César.

Para contrariar essa dificuldade, ao longo de 2023, a ACD Valhascos reforçou a ideia de produção “e toda a gente reforçou a produção da couve. Este Festival além de pôr as pessoas a falar sobre a couve trouxe o aumento da produção”, nota.

O secretário da Associação refere que havia a ambição de criar a Confraria da Couve de Valhascos, mas devido aos processos burocráticos a ideia não avançou e “está na gaveta”.

Para já foi substituída pela ideia de “criar um grupo de produtores. Somos uma terra pequena, com poucas pessoas, e a Associação pode ser o motor que facilite toda a comunicação”.

Remetendo para o futuro a ideia passa por “os produtores organizarem-se individualmente e darmos a liberdade para, nesta altura do ano, no âmbito do Festival, fazer um pequeno mercado onde as pessoas possam vender as suas couves ou até a Associação vender em nome dos produtores”.

Um evento que tem juntado entre 180 a 200 pessoas, grande parte delas chegam de fora da freguesia. Na segunda edição do Festival “mais couves houvessem, mais eram vendidas. Notamos que há um crescendo da procura, também fruto desta divulgação. Há margem para a produção progredir. Mas a ideia inicial passou pela divulgação, para não perder a marca, a imagem. Aliado a isso estamos a conseguir que também haja procura, consumo. Tocamos nos dois pontos: no produtor, aumenta a sua produção, e no consumidor, aumenta a procura”, acrescenta César.

Nesta terceira edição do Festival, que acontece no próximo fim de semana, a 11 e 12 de novembro, a organização optou por adicionar um concurso, no sentido de avaliar o melhor exemplar de couve tendo em conta a dimensão, a amplitude e o tamanho. O vencedor terá uma entrada gratuita no jantar da couve, no valor de 20 euros.

No domingo terá lugar o mercado da couve de Valhascos e a Feira de Vinhos, no exterior da sede da Associação, com o apoio da Tagus, que irá promover a venda em nome dos produtores. O mercado conta ainda com produtos locais e artesanato do Ribatejo Interior, integrados no mercado dos produtores locais da Tagus, onde não faltará animação musical com grupo de concertinas ‘Os Terra da Couve de Valhascos’.

A ementa do jantar integra queijo curado, azeitonas e chouriço crocante do fumeiro, como entradas. Segue-se a sopa sendo um creme de aves do campo, bacalhau em cama de couve de Valhascos, enlagueirado em azeite novo, supremos de frango com míscaros e arroz de frutos secos. Integra ainda sobremesa. Um menu da responsabilidade do chef Fernando, de Alferrarede.

A verba conseguida reverte a favor da ACD Valhascos com o objetivo de “dinamizar a divulgação da couve de Valhascos”, refere César acrescentando que tanto pode ser na organização do Festival como na certificação do produto.

O reconhecimento oficial da couve “está pensado! Para certificar um produto como este, tem de haver um núcleo de produtores locais que vendam. Este ano as pessoas aumentaram a produção, a pensar no Festival, mas o ideal era um produtor que se dedicasse exclusivamente ou com alguma alavancagem para conseguir produzir em massa”, refere por seu lado Duarte Batista, atual presidente da Junta de Valhascos, lembrando que nos anos 1990 “a semente era muito bem vendida, a 50 euros o quilo. Havia muita procura. Mas pronto… podem levar a semente mas não levam a terra, portanto não será bem igual”, admite.

César Marques dá conta que a ACD Valhascos, em conjunto com a Tagus, “será uma parte ativa na certificação da marca quando houver condições para avançar, sendo responsável por esse núcleo de produtores, para que a parte burocrática fique assegurada, ou seja, damos o suporte burocrático. Tentamos ser um elemento facilitador”.

Duarte reconhece ser “o caminho” da Associação e da Junta de Freguesia: abrir as portas para incentivar a produção. “É um orgulho transversal a todos. É um produto próprio, associado ao azeite novo, daí o Festival. São duas coisas muito próprias. Este ano o lagar de Valhascos é o único a funcionar” no concelho de Sardoal, detalha.

Por seu lado, César Marques reforça que “no ano passado a nossa missão era sensibilizar os produtores para a sua importância, para a especificidade da couve. Mostrando que, se deixarem de produzir, a couve acaba por desaparecer e as pessoas ficaram sensibilizadas. Ganharam alguma importância que até então não tinham. Acho que este ano vai evoluir, o caminho faz-se pela sensibilização e estimulação para a produção e há mercado”, defende

O Festival, este ano, inclui igualmente uma caminhada pela Rota do Pão e do Vinho.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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