A importância de rios livres para a manutenção dos ciclos ecológicos, a consequente salvaguarda da biodiversidade, a possibilidade de reconhecer personalidade jurídica aos rios e a necessidade de uma ação de remoção de açudes e barragens (muitas destas barreiras obsoletas) de modo a restabelecer o bom funcionamento dos ciclos vitais. Foram estes os temas em cima da mesa no Seminário “Tejo Vivo e Vivido 2021”, promovido pelo proTEJO – Movimento pelo Tejo a 16 de outubro, onde o presidente da Câmara da Barquinha sublinhou a intenção de tornar o rio Tejo património da humanidade.
“A biodiversidade, os ciclos ecológicos e os rios livres” foi o mote do seminário promovido pelo movimento proTEJO em parceria com o Município de Vila Nova da Barquinha e a Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo e que levou a comunidade a pensar mais aprofundadamente sobre a efetiva importância dos rios livres para a salvaguarda da biodiversidade e, consequentemente, dos ciclos vitais, bem como que ações podem ser tomadas para alcançar tal objetivo.
Com a participação de especialistas de entidades reconhecidas, a abertura deste webinar esteve a cargo da secretária de Estado do Ambiente Inês do Santos Costa, que começou por admitir que é “preciso mais”. “E no que diz respeito ao Ministério do Ambiente e Ação Climática (…) obviamente que vamos continuar a fazer o nosso trabalho”, disse.
Com uma intervenção focada no rio Tejo e na questão da distribuição dos caudais com Espanha, Inês dos Santos Costa referiu que apesar de ser-se comum ouvir falar da necessidade de revisão da Convenção de Albufeira e dizer que “Espanha não está a cumprir”, a verdade é que “o acompanhamento é feito”.
“Quero assegurar aqui que, independentemente da reflexão que temos de fazer, o contacto com Espanha é permanente e o controlo também”, afirmou a governante.

Para a representante do Governo, a ideia de que Portugal é sempre “o lado perdedor ou menos exigente” da questão não é aceitável, admitindo mesmo que o problema no rio Tejo “é sistémico” e que uma solução terá der ser pensada “a montante, na origem”.
“Não nos podemos queixar que de Espanha nem bom vento nem bom casamento e depois não tratar da nossa casa. (…) Não podemos ter um guarda em cada esquina”, disse ainda, acrescentando que “se nós queremos ter zero poluição, temos que ter empresas que invistam em tecnologia”.
Também na abertura deste seminário, o presidente da Câmara Municipal de Vila Nova da Barquinha, Fernando Freire, usou da palavra para relembrar “os vários atentados” de que tem sido alvo o Tejo nos últimos anos, com a autarquia a debater-se por estas questões “desde a primeira hora”. Defendendo que o rio a partir de Constância tem sido “muito mal tratado”, o autarca barquinhense apontou a necessidade de encontrar “medidas políticas” para esta questão. “Este seminário é mais um momento de luta (…) é uma luta de todos nós, uma luta das populações ribeirinhas”, acrescentou.
Já para Miguel Pombeiro, secretário executivo da Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo, uma futura solução terá dois chavões aos quais responder: a regularização do caudal e a capacidade da reserva estratégica da bacia.
Na sua intervenção, o representante da CIM do Médio Tejo elencou o rio Tejo e a sua bacia como um dos “temas centrais do mandato 2021-2025”, sublinhando a importância da criação de uma nova NUT para colocar o Tejo como um dos pontos de intervenção em cima da mesa. Miguel Pombeiro referiu também que está prevista a construção de uma estratégia “de forma integrada [para o rio] e envolvendo um número significativo de concelhos”.
Mas a questão da biodiversidade, tema central do debate, foi levantada por Paulo Constantino, porta-voz do proTEJO – movimento pelo Tejo. “É necessário libertar os rios de barreiras”, disse, dando o mote para as intervenções que se seguiram.
Os benefícios da remoção de barreiras fluviais artificiais e a importância dos rios livres para os peixes migratórios
As barragens e os açudes adicionam pressões negativas sobre a biodiversidade nos rios, imperando a necessidade de uma visão ecológica, capaz de alcançar um equilíbrio entre a satisfação das necessidades humanas e a conservação da biodiversidade. É uma das conclusões a que chegamos neste webinar com as intervenções de Lorenzo Quaglietta, consultor de água na Associação Natureza Portugal WFF, e Herman Wanningen, diretor da Fundação Mundial da Migração dos Peixes (WFMF).
Ambos expuseram os impactos para a biodiversidade dos rios que tem a remoção de barreiras artificiais como barragens e açudes – para se ter uma noção, existem mais de 1.2 milhões de barreiras nos rios europeus. Mas primeiro, Lorenzo Quaglietta deixou claro os problemas que estas barreiras acarretam: bloqueiam a reprodução de peixes; alteram o curso do rio; acumulam sedimentos – que libertam gases de efeito de estufa, agravando as alterações climáticas; reduzem o habitat para diferentes espécies de fauna e flora; e aumentam os ricos para a saúde pública, sendo exemplo mais comum disso as inundações.

Por outro lado, a remoção destas barreiras faria com que fossem restauradas as rotas migratórias dos peixes, os habitats, as funções ecológicas dos ecossistemas, bem como aumentaria a resiliência climática e traria benefícios socioeconómicos associados ao processo de remoção.
Lorenzo Quaglietta lembra que as estratégias da União Europeia no âmbito do Acordo Verde Europeu preveem a libertação de pelo menos 25 mil quilómetros de barreiras artificiais – de referir que mais de 15% das barreiras nos rios europeus são obsoletas (mais de 150 mil barreiras obsoletas na Europa e 30 mil barreiras hidroelétricas aptas para serem removidas).
Em 2020, foram 101 as remoções (no âmbito do projeto de remoção de barreiras artificiais da Dam Removal Europe 2020-2030 e da Associação Natureza Portugal/WWF), com a maior remoção nesse ano a acontecer em França. Na Estónia, por sua vez, aconteceu a maior reconversão.
Numa lista de remoções e reconversões em que Portugal continua ainda em atraso (segundo os dados divulgados, no nosso país existem 256 grandes barragens e cerca de 8000 estruturas hidráulicas), o consultor de água da Associação Natureza Portugal WFF deixou o repto às entidades presentes para um esforço conjunto no sentido de remover as barreiras existentes nos rios no seu concelho.
E o presidente da Câmara Municipal de Vila Nova da Barquinha não tardou em responder à mensagem, tendo admitido a existência de açudes na zona de Tomar, nomeadamente na Matrena, cuja remoção seria “extremamente interessante”.
ÁUDIO | Fernando Freire, presidente da CM VN Barquinha:
De referir que, pela primeira vez na história da Europa, foi lançado no passado dia 8 de outubro um novo e dedicado Programa de Rios Abertos de € 42,5 milhões para restaurar rios por meio da remoção de barragens financiado pelo Fundo ARCADIA.
Herman Wanningen, diretor da Fundação Mundial da Migração dos Peixes (WFMF) aponta, a par da remoção de barreiras, outro objetivo: salvar os peixes migratórios em todos os rios do mundo, num total superior a 1.100 espécies.
“Nós temos vindo a despejar os rios”, expõe, apresentando números: desde 1970, perderam-se já 76% das populações migratórias de água doce, número que sobe para 94% no caso das populações migratórias de espécies grandes.
A possibilidade de reconhecer personalidade jurídica aos rios
Num webinar em que marcou também presença Maria Amélia Loução, bióloga e docente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, para abordar o tema da biodiversidade como base dos serviços dos ecossistemas, ficou claro que o conceito de biodiversidade não é meramente a enumeração de organismos. “A funcionalidade, a estrutura e a conetividade são essenciais”, sublinhou a bióloga que deixou o desafio para se olhar para os ecossistemas como aquilo que são: uma comunidade.
E se numa comunidade, além dos deveres, há direitos, também os rios têm os seus, nomeadamente no que respeita à personalidade jurídica. A possibilidade de reconhecimento jurídico permite, a título de exemplo, a capacidade de celebrar contratos como se os rios fossem pessoas, tal como de recorrer a tribunal para reconhecer os seus direitos.
Quem o explica é Alexandra Aragão, professora associada da Faculdade de Direito de Coimbra. “O rio é um bem jurídico merecedor de proteção”, admite, dando conta de que em muitos pontos do globo já é reconhecida personalidade jurídica a montanhas e a rios, como acontece no rio Ganges, na Índia.
Segundo a docente, esta personalidade jurídica pode ser reconhecida por via legislativa, por jurisprudência, via administrativa ou ainda por reconhecimento popular, numa ação que traz como vantagens a existência de uma nova forma de proteger os rios, o reconhecimento do direito de alguém ir a tribunal em nome dos interesses do rio, bem como ser facilitador de prova em causa de danos ecológicos (por exemplo, no caso da poluição térmica).
ProTEJO sublinha necessidade de manter os últimos 120 km do rio Tejo livre de barreiras
Adicionalmente, neste seminário online o proTEJO apresentou ainda a sua posição sobre a importância de manter os últimos 120 km do rio Tejo livres de açudes e barragens, apresentando alternativas às novas propostas de obras hidráulicas no rio Tejo.
Entre elas está o estabelecimento de “caudais ecológicos regulares no rio Tejo, contínuos e instantâneos, medidos em metros cúbicos por segundo (m3/s), e respeitando a sazonalidade das estações do ano” por oposição aos caudais mínimos negociados politicamente e administrativamente na Convenção de Albufeira.
Também a realização de um investimento na construção de uma Estação de Captação de Água diretamente do rio Tejo na zona da Lezíria do Tejo para uso agrícola (à semelhança da Estação de Captação de Água da EPAL em Valada no Cartaxo que tem em uma capacidade nominal de captação de 240.000 m³/dia destinados ao consumo humano na área metropolitana de Lisboa) é outra das soluções apresentadas, a par da promoção de uma agricultura sustentável que “tenha eficiência hídrica e preserve a biodiversidade e a sustentabilidade da vida com apoios às explorações agrícolas assentes nos meios financeiros que se pretendem destinar a obras hidráulicas desnecessárias”.
Classificação do rio Tejo como Património da Humanidade traria mais controlo sobre qualidade da água
Num debate em que o rio Tejo foi o tema central, o presidente da Câmara Municipal de Vila Nova da Barquinha, Fernando Freire, aproveitou o discurso final para relembrar o desejo de classificar o rio como Património da Humanidade da UNESCO.
“Sabendo que todos estes processos são complexos, requerem candidaturas muito sustentadas (…) toda essa classificação tem uma grande vantagem: um outro olhar sobre o rio, um controle muito mais apertado e visibilidade das populações que são de facto os melhores guarda-rios que existem – os cidadãos que praticam a sua pesca no dia a dia, que estão atentos a estas questões ambientais”, disse.
ÁUDIO | Fernando Freire, presidente do município barquinhense:
Admitindo que de 2017 até então tem vindo a melhorar a qualidade das massas de água no rio, o autarca lembra no entanto que continuam a existir “a montante fontes poluidoras – e de que maneira – das massas de água. Estou-me a referir objetivamente das fábricas de celulose que exercem a sua atividade em Vila Velha de Ródão e na zona de Constância”.
Recorde-se que a Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo (CIMT) encontra-se a desenvolver procedimentos no sentido de iniciar o processo de candidatura para que o rio Tejo venha a ser considerado Património da Humanidade da Unesco.
“Os autarcas estão motivados para esta solução, esta visibilidade do Tejo. Como diz o poeta, ‘pelo rio Tejo se vai para o mundo’ [Alberto Caeiro]. Era importante que pelo rio Tejo se desse visibilidade às causas da sustentabilidade, da preservação”, admitiu Fernando Freire que expôs existir atenção a esta questão: “estamos determinados em lutar para que os rios sejam livres e tenham caudais ecológicos”.
O Seminário “Tejo Vivo e Vivido 2021” pode ser revisto na íntegra AQUI.