O Natal regressa ano após ano e com ele os apelos à solidariedade. As campanhas lembram-nos “quem mais precisa” e o espírito da partilha espalha-se com ações solidárias que terminam quando se arrumam as decorações. No entanto, a pobreza e a solidão não são sazonais e a Loja Social de Vila Nova da Barquinha é um dos casos onde o Natal existe todo o ano.
A Loja Social de Vila Nova da Barquinha completa cinco anos de existência no próximo mês de janeiro e as decorações natalícias que encontramos no espaço remodelado de uma das antigas escolas primárias de Moita do Norte, onde ainda restam os nostálgicos quadros de ardósia, revelam a proximidade do Natal. Uma época em que a solidariedade marca forte presença, com repetidos apelos que nos lembram “quem mais precisa”.
No entanto, por aqui – ao contrário do que acontece um pouco por todo o mundo – a consciência de que a pobreza e a solidão existem não é encaixotada com a árvore e as decorações quando as “Boas Festas” terminam. Fomos conhecer quem prolonga o Natal por 365 dias e conseguimos reunir alguns responsáveis desta instituição solidária que junta doze entidades do concelho, entre associações, Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e organismos públicos.
A solidariedade é perpetuada pela associação Essência da Partilha, Cáritas Paroquial, Santa Casa da Misericórdia, Fundação Dr. Francisco Cruz, Associação de Bem-Estar das Madeiras, Centro Social e Paroquial de Atalaia, Conferências Vicentinas da Nossa Senhora da Assunção e Nossa Senhora dos Remédios, as quatro juntas de freguesia e o município.

O último, representado pelo vereador Ricardo Honório na nossa conversa, assegura as vertentes técnica e financeira através da avaliação dos casos que vão surgindo durante o ano por parte dos serviços de Ação Social e a atribuição de um subsídio anual, na ordem dos 7.500,00€, ao qual se juntam os das juntas de freguesia. Os restantes parceiros contribuem de diferentes formas, sempre voluntariamente, para assegurar apoio a famílias carenciadas do concelho a partir da Moita do Norte e da antiga escola primária da Praia do Ribatejo.
A ajuda engloba bens essenciais, como géneros alimentares, roupa e apoio no pagamento de algumas despesas pontuais (por exemplo, medicação), brinquedos e livros. A estes juntam-se o balneário e a lavandaria social, valências com menor procura, mas que não deixam de ter quem deles usufrua. O apoio alimentar através dos cabazes mensais abrange entre 45 a 50 agregados familiares, número que sobe quando se trata de outras necessidades.
António Costa, nascido no concelho há 62 anos, esteve na génese da Loja Social depois de uma temporada a residir em Sacavém, onde foi desafiado para colaborar num projeto solidário. Na bagagem de regresso à terra natal trouxe a vontade de ajudar os outros e criou o PATAS – Projeto de Apoio Técnico de Ação Social, em 2008, que cedo começou a trabalhar em conjunto com a Câmara Municipal e a Cáritas Paroquial.
A profissão de 46 anos como técnico de telecomunicações é partilhada com o tempo dedicado à “vontade de ajudar” e depois de meia década de presidência na direção do PATAS, que em 2012 deu lugar à associação Essência da Partilha, sediada no Cardal, decidiu tornar-se “apenas voluntário” e passar o cargo “à juventude” em que Joana Prates está incluída.

A monitora de Atividades de Tempos Livres (ATL) da Associação de Pais e Encarregados de Educação do CIEC – Centro Integrado de Educação em Ciências é um dos elementos que vai contribuindo nas diversas atividades realizadas pela Essência da Partilha ao longo do ano, nomeadamente as do projeto FOS – Formação Ocupacional de Seniores (Universidade Sénior) que envolve 169 pessoas do concelho com idades entre 65 e 91 anos.
O voluntariado, segundo diz a barquinhense de 27 anos, foi estimulado pelos tempos de escutismo e “a ajuda ao próximo está sempre presente”. Para Joana, a solidariedade não se resume ao apoio na entrega dos cabazes mensais da Loja Social e procura incutir as boas causas junto dos mais novos com quem convive diariamente através da participação em iniciativas de âmbito nacional, como o Dia do Pijama ou a Operação Nariz Vermelho.
Fala-se em crianças e depressa saltam à vista os brinquedos, os livros, os “ovos” de transporte de bebés e as etiquetas coladas com fita-cola nas estantes que indicam peças de roupa com tamanhos infantis. Um ponto sensível da pobreza que gera maior dificuldade em lidar com os casos com que se vai deparando e muitas vezes são o principal motivo para ajudar famílias cujos progenitores se “acomodaram”.

A opinião é partilhada por António e Conceição Salvador, que também esteve presente na entrevista durante a hora em que interrompeu o trabalho nos Refrigerantes Baía para almoçar. Conceição não é nascida, nem criada em Vila Nova da Barquinha, mas conhece-a desde muito cedo, particularmente o “toque dos bombeiros” que fazia o pai sair de casa a correr. Anos mais tarde também envergaria a farda vermelha como voluntária e o sentimento solidário reforçou-se quando aceitou o desafio para constituir a Cáritas Paroquial de Vila Nova da Barquinha, em 2004.
Depois do período de formação e preparação do projeto, nasceu o Banco Alimentar Contra a Fome do concelho, através do qual começou a ter contacto com famílias mais carenciadas, algumas através da informação de vizinhos preocupados, outras que procuraram diretamente a instituição. Nessa fase, deparou-se com quem “acha que tem direito a pedir e que os outros têm que dar alguma coisa”, em detrimento de quem realmente necessita. Um facto que, muitas vezes, gera desconfiança por parte da sociedade ao pensar que este tipo de entidades ajudam “quem não precisa”.
Face às recentes notícias da diminuição dos números associados ao desemprego, quisemos saber se os mesmos têm reflexo na realidade das famílias barquinhenses e como evoluiu o contexto socioeconomico do concelho nos últimos cinco anos, ou seja, desde que a Loja Social abriu. Segundo Conceição, na fase mais crítica o perfil da “pessoa que precisava era diferente” devido às extremas dificuldades com que alguns agregados familiares se depararam, com os dois elementos do casal a perderem os rendimentos mensais.
Nessa altura, tal como hoje em dia, o trabalho da Loja Social incluiu o apoio na procura por uma atividade profissional que assegurasse um ordenado e a consequente independência financeira por parte de pessoas “que muitas vezes não sabem procurar os direitos que têm”. A situação encontra-se, atualmente, “estacionada” e uma das razões apontadas é o facto dos “profissionais do pedir”, como chama Conceição a quem procura apoio sem real necessidade, terem passado “um pouco à história”.

António destaca, igualmente, as situações em que a necessidade existe, mas fica escondida pela “vergonha”, lamentando aquelas de que não chegam a ter conhecimento. As juntas de freguesia, pela proximidade com a população, desempenham um papel importante na identificação dos casos que, mais tarde, são avaliados pelos Serviços de Ação Social do município, assim como a Unidade de Saúde Familiar que, apesar de não ser parceiro social, consegue referenciar casos identificados nos serviços domiciliários.
Casos que os três voluntários nem sempre conseguem esquecer ao final do dia, mas cuja sensação é muitas vezes compensada pelo “prazer de poder ajudar”. “Prazer de ajudar” e vontade de garantir que o apoio social evolui com o passar dos anos, algo que não aconteceu a Conceição quando as cheias de 1979 lhe esvaziaram a casa, levando-a a decidir que casos futuros não deviam ter a escassez de apoio particular e institucional com que se deparou na altura.
A falta de bens materiais é o problema mais visível e a resposta dos doze parceiros da Loja Social vai procurando colmatar essas necessidades. No entanto, a conversa revela a vontade de que a antiga escola primária não seja apenas um ponto de chegada, mas um ponto de partida para irem junto das pessoas, apoiando-as diariamente nas suas casas. Trabalho “complexo” quando longe vão os tempos em que a chave ficava do lado de fora e entrar na casa das pessoas é difícil, mesmo quando o motivo para bater à porta é a solidariedade.
A desconfiança junta-se à vergonha e são referidos casos de pessoas que não vão buscar os cabazes mensais nos horários mais concorridos, ainda que a escolha da localização da Loja Social tenha sido feita a pensar num espaço com menor exposição. O receio de ser apontado leva a que alguns desses cabazes – compostos, sobretudo por bens alimentares secos devido à incapacidade de armazenamento de alimentos frescos – sejam entregues ao domicílio.

Ao longo do mês, o apoio estende-se a peças de roupa e brinquedos, entre outros, e funciona com base num cartão atribuído a cada agregado familiar, cujo plafond vai sendo gasto conforme a tabela de preços “simbólica” afixada na parede. Desta forma, referem, consegue-se assegurar a igualdade entre quem necessita e passar a mensagem de que “tudo tem um custo, tudo tem um valor”. Sem valor possível de quantificar só mesmo a gratidão de quem recebe e essa é tão grande que nem o cão de guarda da Loja Social, feito de loiça, consegue guardar.
Pelo menos era essa a nossa ideia até colocarmos a questão aos três voluntários e percebermos que, para eles, o sentimento maior é o de quem dá. Para António, a “gratidão é aquela que sentimos nós próprios, não é aquilo que nos dão” pois “o voluntário não é a pessoa que se gaba disto ou daquilo para receber louvores, faz por querer fazer e fica satisfeito só por ter feito”. Joana complementa com a “sensação de missão cumprida” e Conceição conclui que é “quando passamos pelas pessoas, algum tempo depois, e as vemos bem”.