Para muitos, é uma vida inteira a fazer o tratamento, quase desde que se lembram. A outros, apanhou-os de surpresa já numa fase avançada da sua vida. A hemodiálise é uma condicionante que preenche uma grande parte da rotina destas pessoas, num dia a dia agravado por dois anos de pandemia, num serviço indispensável e cujo esforço e dedicação é muitas vezes invisível. A hemodiálise é um processo fundamental para estes doentes, uma vez que faz o trabalho que os rins deixaram de conseguir fazer, filtrando o sangue e removendo os excessos e toxinas. Ao fim ao cabo, é o “mal menor”, uma vez que a insuficiência renal crónica é uma doença terminal. Este tratamento acaba por colocar utentes e cuidadores em contacto prolongado, pelo que são estabelecidas relações e laços afetivos que vão para lá do simples tratamento ou do simples transporte. O mediotejo.net acompanhou um destes doentes e, entre o bombeiro responsável pelo transporte ou a enfermeira da clínica onde é feito o tratamento, algo foi coincidente: a relação de amizade, quase familiar, que consideram ser desenvolvida.
José Sebastião, que conta com 80 anos de idade e que fez vida no estrangeiro – em França e na Suíça, onde trabalhou como camionista e construtor civil – viu o seu rim esquerdo pregar-lhe uma partida: deixou de querer funcionar, como até aí tinha feito.
Ainda em sua casa, começou a fazer hemodiálise em Abrantes, cidade para onde se dirigiu durante dois anos para fazer o tratamento, findos dos quais se mudou para a Fundação Dr. Francisco Cruz, um lar de idosos em Praia do Ribatejo, concelho de Vila Nova da Barquinha. Essa mudança levou a que José Sebastião passasse a fazer hemodiálise noutro sítio, na clínica NephroCare, no Entroncamento, para onde se dirige três vezes por semana, às terças, quintas e sábados. “Até ao fim da vida, é lá”, diz o octogenário.
Sem queixas de ninguém e tendo sido sempre bem tratado – por todos aqueles que o acompanham no processo, tanto por bombeiros, responsáveis pelo transporte, como por auxiliares, enfermeiros ou médicos – José Sebastião refere que todos são simpáticos. As conversas acabam por ser sobre tudo um pouco, “é conforme”.

Na viagem que o mediotejo.net acompanha, é Pedro Pimentel, bombeiro da corporação de Vila Nova da Barquinha, o responsável por levar José Sebastião para mais uma sessão de tratamento, com quem o nosso jornal aproveita para trocar algumas impressões.
A crise que afetou o setor da construção civil há uns anos foi o choque que fez Pedro Pimentel trocar a profissão de eletricista por uma vida dedicada à causa dos bombeiros. Entretanto, já lá vão 15 anos, durante os quais tem feito, entre outros serviços, o transporte e acompanhamento de doentes de hemodiálise. Para si, não há dúvidas:
“É uma família, são muitas partilhas, de bons momentos, de maus também, angústias. Um ombro amigo. A família que nós chamamos 1409, que é o número do Corpo de Bombeiros de Vila Nova da Barquinha, acaba por englobar todos estes doentes que nós transportamos, acabamos por fazer parte deles e eles de nós, e muitas das vezes também vivemos a vida deles e eles a nossa”, diz Pedro Pimentel.

Entre as viagens costuma haver conversa para colocar em dia. Com os doentes masculinos, há um tema que costuma ser recorrente, a bola, como não podia deixar de ser. Já com as senhoras, estas acabam por vezes por partilhar atritos familiares e angústias com Pedro Pimentel e os seus colegas, visto que muitas vezes são as únicas caras diferentes que vêm e com quem podem desabafar.
“Até as perdas, a gente sente bem essa parte. Há uma afinidade, uma aproximação, uma partilha de problemas pessoais que eles próprios também têm e que nós depois começamos a perceber”, refere o ex-electricista, pelo que começa a nascer uma preocupação entre as partes, a qual tem sentido duplo, até “porque isto não é um dia, nem dois, nem três, são anos. Há doentes que são 10, 15, 20 anos que dia sim, dia não, com quem estamos em convívio”.
Como não podia deixar de acontecer ao ser criada uma forte ligação, estes profissionais acabam também por ser apanhados na corrente de emoções que jorra de situações mais infelizes: “há casos que a gente já à partida sabemos que são vidas curtas e que nós sentimos tanto ou mais do que a família, porque nos momentos de aflição – e temos muitos casos desses – eles acabam por partilhar as angústias, as dores ou até o próprio medo de partir. Acabam por partilhar mais connosco do que com a própria família”, confidencia Pedro Pimentel.

O bombeiro refere ainda que por vezes não é fácil “desligar” nessas situações, as quais já acabaram inclusive por funcionar como “rampa de saída” para alguns ex-colegas bombeiros, uma vez que são cenários que acabam por mexer muito com os sentimentos e com o psicológico destes profissionais que se dedicam à causa humanitária.
Mas também, ou principalmente, na clínica é importante que seja estabelecida uma ligação entre os profissionais e os utentes, tendo até em conta que os doentes “acabam por passar aqui connosco um número significativo de horas, porque fazem 4 horas de tratamento 3 vezes por semana, muitos deles acabam por estar muitos anos connosco”, explica-nos Ana Reis, enfermeira na clínica entroncamentense NephroCare.
O tratamento acompanha estes doentes até ao final da vida ou até serem transplantados, situação que é motivo de contentamento para todos quando acontece: “lá está essa relação que se estabelece com eles, é mais do que profissional”, diz Ana Reis.

“Acaba por ser uma relação até de alguma amizade e companheirismo. Eles quando chegam até nós vêm um bocadinho assustados e preocupados. Essa relação que se estabelece também os ajuda a ultrapassar um bocadinho melhor esta situação um pouco difícil que é fazer hemodiálise, que acaba por ser condicionante da vida deles. Acho que os ajudamos também a que seja um pouquinho mais fácil e acabamos por conhecer um bocadinho da vida deles e também acabam por desabafar um pouco connosco”, complementa a profissional de saúde.
Durante o tratamento, os doentes têm algumas formas de se entreterem. Cada um, além de acesso à internet, dispõe de uma televisão, ouvindo a emissão que querem através de auscultadores. “Mas acabam por conversar muito, especialmente connosco. Também uns com os outros mas principalmente connosco, precisam muito deste apoio e desta parte mais relacional. Cuidar deles também acaba por ter esta vertente relacional”, refere a enfermeira Ana Reis.
Da sua experiência pessoal, José Sebastião diz que acaba por não falar muito com os restantes utentes. Além da companhia da televisão, o facto de os doentes estarem afastados entre si, cada um na sua cama, e de terem de estar parados na mesma posição, com o braço numa posição (mais ou menos) específica durante quatro horas, também não ajuda, pelo que acabam por falar mais com os profissionais de saúde que os acompanham e monitorizam ao longo do tratamento, algo que é uma constante.

Esta ligação é assim, ao fim ao cabo, uma “relação bastante familiar”, apelida Ana Reis. “Eles depois acabam por perguntar de onde é que somos, se temos filhos, depois perguntam pelos filhos, notam quando vamos de férias e perguntam, é uma relação muito mais que profissional”, diz a enfermeira.
E à clínica chegam pessoas de todas as idades. Aquelas que ainda estão na fase ativa da sua vida, e que ainda trabalham, não fazem quatro horas de tratamento, mas sim oito. Estes doentes passam a noite na clínica, e a máquina responsável pelo tratamento trabalha mais lentamente, fazendo a renovação do sangue ao longo do tempo em que o doente está a dormir.
Até uma certa idade, os doentes realizam também diversas consultas para estarem em perfeitas condições físicas, uma vez que a qualquer momento pode aparecer um doador. É que em Portugal, por princípio, toda a gente é doadora de órgãos.
Tal como está explícito no site SNS24, “a doação de órgãos é uma atitude de solidariedade, que pode colaborar para melhorar ou salvar a vida de outra pessoa”, pelo que, de acordo com a legislação portuguesa, “todas as pessoas são consideradas potenciais dadores, desde que não expressem oposição à dádiva no Registo Nacional de Não Dadores”.

No que toca à ida para a clínica, José Sebastião vai sempre sozinho. Quando volta para o lar é que por vezes vem acompanhado, pelo que aí sim, estes utentes já aproveitam para meter a conversa em dia, embora apenas “às vezes”, quando estão ainda com disposição para isso após o tratamento. E José Sebastião é perentório: “para estarmos a falar de coisas tristes, não vale a pena”.
Mas sem dúvida que o melhor momento para José Sebastião é quando os bombeiros o trazem de regresso ao lar. Lar a dobrar, tanto por ser um lar residencial para idosos como por ser onde está agora efetivamente o seu lar, junto da sua esposa, Felismina Duarte, a qual nos confessou que, mesmo com os filhos de ambos a pedirem-lhe para não deixar José Sebastião sozinho no lar, ela também não teria sido capaz de o fazer, pelo que acompanhou o marido nessa etapa da vida, nova para ambos.

Em termos do tratamento, em concreto, a situação com a pandemia não se alterou. Mas em termos de vivência, posterior, a situação de José Sebastião poderia ter sido bem mais complicada. É que, neste caso, a Fundação Dr. Francisco Cruz oferece duas valências, a de Lar de Idosos, num espaço comum, e a de apartamentos.
Estando José Sebastião e a esposa num apartamento, este quando voltava do tratamento não necessitava de ir para o “quarto de isolamento”, uma vez que fazia o isolamento com a esposa no próprio apartamento. Uma sorte para José Sebastião, que não foi assim obrigado a viver uma experiência brutal de um isolamento de dois anos, neste contexto pandémico.
Questionada sobre qual era a perceção desta realidade, a enfermeira Ana Reis refere que essa foi uma decisão de cada lar, mas que alguns doentes realmente desabafaram com os profissionais da clínica sobre essa situação.

Felizmente para José Sebastião, sempre pôde voltar para a “sua casa”, para junto da sua esposa, que, ao fim ao cabo, acaba também por ser cuidadora, posição tanta vez esquecida nestes casos, pois são várias as esposas e maridos, mães e pais, filhas e filhos, que, terminado o tratamento, recebem de volta estes doentes, nem sempre nas mais perfeitas condições, umas vezes mais abalados pelo tratamento do que outras.
Uma dessas esposas, entre inúmeras outras, era Leonilde Silva, que, em conjunto com o filho Cláudio, sempre cuidou de Joaquim Silva. Joaquim também fazia hemodiálise três vezes por semana. Faleceu no ano passado. Mas o agradecimento de Leonilde e de Cláudio para com todos os profissionais que o acompanharam ao longo do tratamento, o seu cuidado e o seu empenho, esse, é eterno.
Fui companheira de viagem do Sr José Sebastião durante alguns meses. Três vezes por semana lá nos encontrávamos nós para o nosso “castigo”. Actualmente estou num turno diferente do senhor. Mas nunca hei de esquecer aquele senhor tão simpático que tinha sempre a preocupação de perguntar como eu estava e se a minha família andava boa.