O vermelho incandescente das labaredas deu lugar ao negro dos campos queimados. Pela manhã, toda a paisagem da zona norte de Vila de Rei parece estar mergulhada em nevoeiro – mas é fumo que permanece a pairar sobre as terras por onde o fogo passou. Respira-se cinza e, ao longo de quilómetros e quilómetros devastados, os bombeiros continuam numa correria, a vigiar fumarolas e a apagar reacendimentos, na companhia vigilante de militares e sapadores florestais. No cenário de rescaldo percorrido pelo mediotejo.net não se avistam casas ou carros queimados, mas há palheiros e barracões perdidos, quintais e culturas destruídas, árvores com as copas amareladas pelo calor do fogo – e muitos corações aflitos.
Nem nos seus piores pesadelos as gentes de Vila de Rei podiam supor que o inferno estava a caminho assim, quase como um decalque do que aconteceu em 2003. Chegou até no mesmo dia, 20 de julho, vindo do mesmo lado, fazendo o mesmo trajeto, e transformando em cinza toda a zona norte do concelho, desde Vilar do Ruivo a Portela dos Colos.
“Lembro-me bem da data porque tenho um sobrinho que faz anos nesse dia. Até lhe disse: – Olha, vê lá se mudas a data do aniversário…”, conta ao mediotejo.net Deolinda Mendes Laranjeira, residente em Relva de Boi, na freguesia da Fundada.
O fogo esteve colado à sua casa no sábado, e metade do que tinha cultivado sucumbiu ao calor das chamas. “Milho, oliveiras e até as colmeias arderam”, diz, mostrando as plantações arruinadas. Prefere não ser fotografada. Não quer dar a cara em tal situação penosa. Mas é a única coisa que nos recusa, talvez por nos sentir parte solidária com a “miséria” relatada.
Vai a casa, pouco depois traz-nos pêssegos e água. Comprovamos que Kafka tinha razão quando dizia que a solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana.

No rescaldo de dois dias difíceis, entramos no “lado negro” de Vila de Rei. O calor pela manhã já mirra a vegetação que teimava em permanecer verde, pintalgando a paisagem enegrecida onde os bombeiros batalham para evitar reacendimentos. O ar é respirável apesar do cheiro intenso a fumo, mas mais parece uma manhã de nevoeiro, tal é a densidade do ar.
Nem nos seus piores pesadelos as gentes de Vila de Rei podiam supor que o inferno estava a caminho assim, quase como um decalque do que aconteceu em 2003. Chegou até no mesmo dia, 20 de julho, vindo do mesmo lado, fazendo o mesmo trajeto
Os carros da Proteção Civil cruzam e recruzam as estradas que atravessam a terra queimada. Os ventos fortes deram um avanço rápido ao fogo. Deolinda nem estava em casa mas a trabalhar no lar da Fundada. “Via-se o incêndio ao longe, no Torno, e não demorou uma hora a chegar aqui. Estava bastante vento”, recorda.
Para as chamas não chegarem à sua casa, apesar de ter a área limpa do lado de onde chegava o inferno, valeu-lhe o marido, o filho e o sobrinho. “Os bombeiros também aqui estiveram mas depois acabou-se a água e foram embora. Andavam cansados e nós também, fartos de ver tudo a arder”, desabafa. Deolinda conta-se entre os crentes de que as chamas têm origem criminosa. “Claro que sim! Nem pode ser de outra maneira.”

A frente de fogo chegou a contabilizar 25 quilómetros e o esforço de todos foi hercúleo, principalmente o dos bombeiros, referem Ana e José Ramires, os únicos que permaneceram na sua autocaravana na praia fluvial de Bostelim. Na manhã de sábado havia 10 autocaravanas estacionadas na única praia fluvial do distrito de Castelo Branco com bandeira azul.
Vindos do Barreiro, e já em “férias permanentes”, viajam por Portugal e pela Europa na sua autocaravana. Esperam regressar a casa somente em dezembro e na segunda-feira decidiram ir pernoitar em Coimbra. “Não é por causa dos incêndios, mas porque assim tínhamos planeado”, esclarecem, após permanecerem uma semana em Bostelim.

A evacuação no sábado “correu tranquilamente”, afirmaram. Até porque, na Praia do Bostelim, dizem, “têm a preocupação de saber o número de pessoas que estão, se ficam durante a noite”, etc. “Saímos às 16h00, ficámos na Sertã e regressámos a Bostelim no domingo antes do almoço” explicam.
Para Ana é “desolador ver que em poucas horas o verde se transformou em negro”. O parque de campismo também estava cheio, e na retirada ordenada pela Guarda Nacional Republicana algumas tendas ficaram na praia, “porque as pessoas andavam em passeio pelo Penedo Furado e já não puderam passar” pela estrada cortada, nota.

Para o casal do Barreiro, pela primeira vez no Bostelim, “a GNR atuou de forma perfeita. Iam passando a informação, preparam-nos para sair, porque não tínhamos a noção da velocidade do vento. E assim, em 5/10 minutos, saímos pela estrada que indicaram, e que era segura”.
Isabel Pereira, da ADETULF – Associação para o Desenvolvimento do Turismo e Lazer da Fundada, a coletividade concessionária desta praia fluvial, indica que “eram 68 as pessoas no parque de campismo”. Havia também “umas 200 ou 300 pessoas na praia”, e o parque de autocaravanas estava lotado.

O sol faísca sobre a praia, que agora é um oásis no meio do negro. “O fogo vindo de Vilar de Ruivo aproximou-se rapidamente, mas a praia não ficou com fumo. Fui a penúltima a sair. Só cá ficou o nadador salvador e o presidente da associação, e claro, as autoridades”, diz, lembrando que a envolvente ardeu em cerca de meia hora.
Isabel confirma as palavras dos caravanistas. “Os bombeiros e a GNR fizeram um trabalho excelente. A praia permaneceu sempre com eletricidade e água”. E mesmo depois do terror, esta segunda-feira, às 08h00, já havia gente a mergulhar nas frescas águas de Bostelim.
Até ao momento, não há desistências nas reservas. “Para a semana o parque de campismo está cheio. Ninguém desmarcou”, confirma Isabel. Todos os equipamentos estão a funcionar a 100%, mas ainda assim teme pela redução do número de turistas no resto do verão. “É inevitável não temer. Os acessos estão negros”, apesar de no vale, não fora a paisagem frontal, nem se dar conta que o inferno passou por ali.
“na praia do bostelim Todos os equipamentos estão a funcionar a 100% e Para a semana o parque de campismo está cheio. Ninguém desmarcou”
Bombeiros em São João do Peso. Foto: Paula Mourato/mediotejo.net
“Ficamos completamente impotentes perante o fogo. É horroroso. Ardeu tudo em 2003 e agora os pinheiros novos voltaram a arder”, observa.
O fogo seguiu depois para São João do Peso, onde também a Praia Fluvial do Pego das Cancelas foi esvaziada de gente por precaução. Contudo, permanece verde, tal como a zona da ponte romana dos três concelhos, onde Vila de Rei, Mação e Sertã se tocam.
O mediotejo.net percorreu as estreitas estradas até lá chegar atravessando as aldeias que viram as chamas irromperem pelos quintais das casas. Pelo caminho jaziam restos de árvores de folhas tenras, que perderam rigidez e verticalidade, com os frutos mirrados nos ramos encarquilhados.

Na linha da frente do incêndio esteve Monte Novo, a primeira aldeia a ser atingida no concelho de Vila de Rei. Um pequeno lugar com cerca de 12 habitantes, onde residem três ou quatro famílias, algumas com elementos bastante idosos, como é o caso da mãe de Margarida Maia.
Ao abrir-nos a porta de casa, o rosto revela fadiga e desalento. Pede um momento antes de iniciar o relato do desgosto, volta com um copo de água fresca para nos oferecer. Conhece bem o desgaste que o calor provoca nos corpos, ainda que durante a passagem do fogo ali tivessem o socorro todo.
“Fomos os primeiros!”, refere Margarida, que não sentiu qualquer falta de coordenação no terreno. Lembra-se bem do fogo de 2003. “É uma réplica”, afirma. “No espaço de uma hora ou duas ardeu por todo o lado, era muito difícil de controlar.”

As mangueiras continuam estendidas do lado de fora da casa, acompanhando a largura da habitação, com a saída de água voltada para os pinheiros queimados. Continuam preparadas, caso regresse a aflição. A sua maior preocupação não é económica. Não chora o prejuízo das oliveiras mas a perda da paisagem que tinha à sua frente, agora pintada em tons escuros.
“Ninguém me vai devolver essa paisagem. Era tão linda… Apetecia abraçar o mundo. Há a lamentar não tanto aquilo que era nosso, mas o que era de todos. Quilómetros e quilómetros ardidos, é uma desolação, pega-se à alma!”
Há um ano que Margarida está em Monte Novo a cuidar da mãe, com 91 anos, doente de Alzheimer. “Passei um ano lindo, pensava que vivia no paraíso e de repente…”, esfumou-se.

“Ninguém me vai devolver essa paisagem. Era tão linda… Apetecia abraçar o mundo”
A propriedade em Vila de Rei, integrada no Pinhal Interior, é maioritariamente minifúndio, mas na verdade, segundo relata Margarida, nem minifúndio é. “São parcelas… à volta da minha casa estão terrenos de cinco proprietários”.
Há muitos anos a viver em Lisboa, recorda um Monte Novo da sua infância diferente, muitíssimo pobre. “É necessário que as pessoas tenham consciência cívica e moral. O ordenamento do território não pode ser à base da multa”, defende, e conta que há dois anos as pessoas daquela pequena localidade reuniram-se e acordaram fazer a limpeza à volta das casas, tendo a Câmara Municipal feito o resto, limpando junto às estradas.
“E mesmo assim ardeu! Mas se não fossem as limpezas à volta das casas teria sido muito pior”, garante, explicando que mesmo em terreno limpo “o fogo foi comendo as ervinhas e chegou a entrar dentro de um palheiro do vizinho, saltando para as oliveiras”.

Deste fim-de-semana terrível tem gravada na memória a noite e um horizonte de chamas. De manhã, descreve, “nem se vê o cume dos montes devido ao fumo”, apesar do fogo ter entretanto palmilhado quilómetros e estar já bem longe dali, no concelho vizinho de Mação.
“É algo que dói, e que vai doer por muitos anos. Custa olhar para a paisagem… e temo que já não consiga ver o verde da vegetação a renascer.”
