Partiram de Vila de Rei rumo a Marrocos. Atravessar aquele país numa Monkey Bike, revelou-se um choque e uma experiência inesquecível. O quanto bastou a três aventureiros para perceberem, numa viagem de quase 5 mil quilómetros, quantos mundos estão logo ali, ao lado da Europa. Um desafio que Pedro Jorge Farinha, o seu filho André Farinha e um amigo de ambos, Ricardo Ventura, querem repetir em 2020, numa aventura mais longa… pelo menos até alcançar Itália, circulando devagar junto à costa do Mediterrâneo.
Três aventureiros de Vila de Rei partiram à descoberta de Marrocos de Monkey Bike, sentados numa pequena mota de 50 centímetros cúbicos (cc), de 7 a 31 de outubro. O desafio partiu de Pedro Farinha, depois de uma viagem nas “macacas” aos Picos da Europa, em 2018. Esta primeira aventura desenrolou-se durante pouco mais de uma semana, num total de 2035 quilómetros.
“À chegada ao destino, o ponto mais alto dos Picos, e com a adrenalina em níveis muito elevados, olhámos uns para os outros e eu disse em voz alta: – Pró ano Marrocos!! Como resposta: – Boraaa! E assim foi. Um ano depois e com algum planeamento” lá partiram, desta vez sem o quarto amigo que os acompanhara nessa viagem. Apenas André Farinha, Ricardo Ventura e Pedro, conta o próprio ao mediotejo.net, caracterizando-se como “um aventureiro desde criança”, permanecendo assim mesmo aos 50 anos.

Pedro é um apreciador de motas, tem e teve várias ao longo da vida, mas nenhuma de 50cc. Adepto do associativismo, integra a Associação Desportiva Cultural e Recreativa de Aivado, da qual também fazem parte outros admiradores de motas, que restauram as suas motorizadas para os famosos passeios da chapa amarela. “Queria realizar um evento com eles mas não tinha como os acompanhar e decidi comprar uma 50cc” explica.
Para tal procurou um veículo à altura, mas só encontrava motas originais. “A chamada Honda Monkey (macaco em inglês). São muito caras e reparei que existiam umas réplicas, idênticas, com rodas de oito polegadas, um motor de 50cc, só que de fabrico chinês ao invés de japonês, apesar das peças serem todas fabricadas no mesmo local” nota. Atualmente possui quatro e garante que qualquer pessoa consegue conduzir uma.
Tinha encontrado a ferramenta das suas aventuras que divide em dois estilos: “normal e radical. Ambas as experiências criam estimulação psicológica e fisiológica. É isso que procuro!”, revela.
Os amigos procuram o mesmo, conscientes que nos projetos mais radicais “os riscos são maiores e por vezes fora do controlo. O medo que corra mal é a parte negativa. A parte positiva é a explosão de emoções, a sensação de coragem e de superação dos nossos limites. A sensação em que a adrenalina nos acorda, com um arrepio na espinha, ao mesmo tempo que sentimos o sangue a correr nas veias e no final a sensação de bem estar, do cumprimento do objetivo a que nos propusemos”.

Pedro Farinha trabalha como freelancer na área de Desporto e Aventura, responsável por duas praias fluviais de Vila de Rei: Penedo Furado e Fernandaires. Quer André Farinha (27 anos) quer Ricardo Ventura (30 anos) militaram na Força Aérea. Ricardo trabalhava como bombeiro no aeroporto de Faro, até ser vítima de um acidente que, até ver, o colocou fora do ativo. E André dedica-se à fotografia tendo trabalhos publicados e premiados pela revista National Geographic.
Portanto, as suas aventuras decorrem, por norma, durante as férias após a época balnear, aproveitando para a descoberta e para a reportagem fotográfica.
“A minha maior aventura é a busca contínua de descobrir quem eu sou e tentar fazer aquilo que gosto e me dá prazer. As várias experiências que vou tendo ao longo da vida vão moldando a minha maneira de ser e de pensar. O presente é uma aventura, o passado são as recordações dessas aventuras, o futuro o planeamento de novas aventuras” refere Pedro.
Para estas viagens, os orçamentos “nunca são muito elevados” uma das razões que levou a aventurarem-se com as pequenas motas de 50cc, a quatro tempos. “Muito económica! Utilizamos a mesma para carregar uma tenda e saco cama para podermos poupar nas dormidas, mochila às costas e lá vamos nós” conta.
Na viagem a Marrocos, em que percorreram cinco mil quilómetros, cada um deles gastou cerca de 650 euros. Foram 4500 quilómetros em estradas mais cerca de 500 quilómetros em trilhos, pistas, desertos e praias, durante 25 dias em cima de uma Monkey Bike.

“Tenho a noção que foi uma viagem em versão low cost, no entanto, podíamos ter reduzido ainda mais as nossas despesas caso houvesse necessidade, principalmente nas dormidas, mas um banhozinho de água quente dia sim, dia não, valeu a despesa extra”, garante.
Assim, cada um levou, preso na traseira da mota, um saco estanque com uma tenda tipo iglo, um saco cama, um cobertor e uma almofada e um fato de chuva completo. Na frente da mota: um colchão de espuma compactado, um carregador de isqueiro, um suporte de telemóvel, um cabo de ligação de telemóvel, uma cinta ou um elástico para prender o colchão ao guiador da mota. E ainda, dispersas pelas três motas, algumas ferramentas desde chaves de fendas a sextavadas, um pneu extra, caixa de remendos, câmaras de ar, cabos e serra cabos, óleo de motor, etc.
Na mochila roupa, kit de higiene pessoal, kit de primeiros socorros, respetivos documentos pessoais e das motas, um powerbank, um canivete suíço, frontal (para iluminação) e pilhas extra. A manutenção das motas era feita diariamente, com a vantagem de Pedro ter trabalhado como mecânico nos Estados Unidos.
Uma viagem que se fez sem mapas onde a aplicação Waze lhes valeu como uma lança em África, uma vez que o Google Maps não funciona em Marrocos. Com essa aplicação encontravam os parques de campismo onde passavam as noites e à entrada do país compraram 30 gigas de internet, por um euro cada um, que durou 15 dias.

A caminho do desconhecido
Após consultar alguns blogues sobre locais a visitar em Marrocos e de “falar com algumas pessoas amigas que já tinham visitado o país” Pedro elaborou “uma pequena rota, apenas com o nome dos locais de passagem e os pontos que achei serem interessantes. Queria visitar a medina azul de Chefchauen, o deserto do Sahara, o Grande Atlas, as gargantas de Todra e de Dadés, a maior mesquita do mundo em Casablanca, mas principalmente conhecer um pouco da cultura marroquina, os seus costumes e hábitos e ainda experimentar a sua gastronomia” revela.
Uma aventura semelhante Pedro já havia explorado em Cabo Verde. Desta feita, pegou na ideia “hilariante” de uns ingleses e decidiu experimentar novamente em África, mais perto, no norte islamizado.
Nas variadíssimas peripécias que viveram em Marrocos, incluindo o trivial furo no pneu, “as motas fizeram toda a diferença porque fomos com elas a todo o lado, menos ao deserto. Andámos com elas dentro das medinas, descemos às quedas de água da Fonte de Deus, entrámos com as motas para dentro da fábrica dos curtumes em Fez.
Em El Jadida, antiga cidade portuguesa, as ruas da medina eram tão estreitas que os espelhos tocavam nas paredes, para fazer manobra de inversão de marcha tivemos que entrar com as motas para dentro da casa de um marroquino que fez o favor de nos abrir a porta” conta a rir.
De Vila de Rei a Sevilha, daquela cidade espanhola a Gibraltar, de Algeciras a Ceuta, de Tetouan a Fez, de lá até Errachidia, de Merzouga (deserto do Sahara) a Tinger passando por Ouarzazate, Tamedakhte, Marrakesh (não conseguiram circular devido à agitação caótica), Essaouira, Moilay Bouselham e tantas outras até chegar a Tanger depois Tarifa até Vila de Rei novamente.

Europeus estreantes no norte de África o choque inicial foi inevitável, admitem Pedro e Ricardo. Lidar com as casas de banho públicas, com mármores ou paredes sujas e sem papel higiénico, buracos no chão e baldes para acartar água, cheias de odores desagradáveis e muitas vezes sem janelas salvadoras, foi complicado.
“Marrocos é um país culturalmente muito diferente do nosso e não sabíamos o que esperar. O certo é que essa experiência revelou-se muito surpreendente. Primeiro estranha-se muito à entrada, entre Ceuta e Marrocos. Depois entranha-se e adorámos”, afirma Pedro Farinha.
Logo à entrada o clássico da “comissão”. Para passar a fronteira os guardas caem na tentação de pedir dinheiro para tratarem de alguma “irregularidade”. No caso, a Monkey Bike onde viajava Ricardo era propriedade de Pedro que a emprestou ao amigo e estava presente para confirmar esse empréstimo, mas de pouco lhe valeu sem apresentar a suposta “declaração” formal necessária, que prontamente ficou resolvida depois de alguns dirham (moeda marroquina) nas mãos das autoridades.
“Se eram de facto guardas?… não estavam fardados, nem tinham identificação…”, interroga-se Pedro. Mas foi dessa forma que transpuseram a fronteira. Ricardo manifesta-se chocado com a primeira imagem: filas e filas de carros, gente e mais gente amontoada.
“Senti a pressão do esforço, da tentativa para entrar em território da União Europeia”, diz. “Perguntaram se tínhamos armas”, conta Pedro. “Não!” afirmou, “só se for o meu canivete suíço”, brincou.

Na memória outras imagens permanecem como os táxis de cinco lugares com 9 pessoas em viagem, comboios com burros, o caos dos carros e motorizadas conduzidas por homens que reinventam a cada segundo as regras elementares do trânsito onde ninguém respeita os peões; ou o cheiro da queima de lixo em contraste com o cheiro intenso das especiarias responsáveis pelo colorido dos souks ou ainda o incrível número de 500 pessoas a regar a relva à entrada de Chefchaouen por falta de sistemas de rega.
Uma aventura vivida que até aí estava distante da imaginação. Marcada particularmente pela pequenez daquelas motas, feitas para crianças, que conseguiram chegar a locais onde o comum dos turistas não vai e assumiram o papel de relações públicas em todo o território.
“Os marroquinos não são pessoas muito alegres. São até carrancudas, mas como íamos devagar, a 50 quilómetros à hora no máximo, apitávamos e todos levantavam a mão e abriam um sorriso”, lembra Ricardo.

Pedro garante que a viagem realizada pelos três amigos, poderia ter sido feita por mulheres. “ Não tive qualquer razão para ter receio de passear em Marrocos. Foram todos muito simpáticos, principalmente os polícias, que sempre que percebiam que éramos turistas, levantavam o braço para nos cumprimentar e sorriam. E sempre que parávamos, vinham crianças e adultos querer sentar-se nas nossas pequenas motas. Se tivesse recebido um euro por casa pessoa que se sentou na minha mota, tinha a viagem paga”, assegura.
A provar que o gosto pela aventura não tem género está Marta Durán, uma portuguesa de Carnaxide, que os três amigos encontraram a viajar sozinha de bicicleta, desde Lisboa até à Guiné Bissau. Quando fizemos esta entrevista, Marta – acompanhada pelos seus seguidores através da página no Facebook ‘As boleias da Marta’ – já se encontrava no sul da Mauritânia.
Os três viajaram sem qualquer alojamento ou refeições marcadas e utilizam a palavra “indescritível” para descrever a sensação de viajar tantos quilómetros em cima de tão pequena mota. No final do dia, com percursos quase sempre superiores a 150 quilómetros diários, “o rabo e as costas acusavam algum cansaço”, admitem.
Durante a viagem, entre 25 e 40 quilómetros “parávamos um pouco para aliviar as costas do peso da mochila, verter e repor líquidos, verificar se estava tudo bem e continuávamos. Geralmente, no início do dia ao abastecer as motas, fazíamos sempre um pequeno check up nas nossas macacas, onde lubrificávamos e afinávamos as correntes de transmissão, verificávamos os apertos e aplicávamos lubrificantes nos pontos de movimentação/fricção para evitar o desgaste. Afinal foram 25 dias seguidos em cima das nossas macaquitas”, recorda Pedro.

Da beleza aos contrastes de Marrocos
Os dias iniciavam a “perder tempo na procura de uma pastelaria e um sítio para beber o café matinal” explica Pedro. Isto porque “os marroquinos não vendem bolos nos seus cafés, só café. Ao almoço e ao jantar procurávamos um local acessível, de preferência com preços afixados nos menus e por fim tentar encontrar um local seguro para dormir”.
E por vezes a estrada deslizava por um tapete de asfalto em boas condições, outras nem por isso, numa mistura de terra batida e pedras deformadas, com as montanhas do Grande Atlas a crescer à volta deles, paisagens áridas, cortadas por pequenos oásis ou enormes com extensão de 40 quilómetros de palmeiras. Pelo meio encontravam vilas e aldeias construídas em barro e palha.
Mas a grande dificuldade passou pela comunicação com os locais, particularmente fora das cidades onde a língua praticada é o árabe ou francês. “São poucos aqueles que sabem falar inglês. Alguns arranham um bocadinho de espanhol. No entanto, quando tudo falha, a língua gestual parece funcionar muito bem. Os marroquinos são muito flexíveis” afirma Pedro.

Esse flexibilidade notou-se também em Fez, onde Pedro comprou um tarbush, chapéu típico que a partir da compra viajou em cima do seu capacete, e onde levaram as motos para dentro da fábrica de curtumes o que lhes possibilitou estar em cima das tinturarias.
Em Fez, a aventura não se fez com as motas nas 99 mil ruas da medina, ao contrário de todas as outras medinas por onde passaram. Nem no parque de campismo “espetacular, com todas as infraestruturas, mas fechado ao público porque a polícia acha que é bom demais e quer mais dinheiro. Então é tudo cuidado: o relvado cortado, as casas mantidas, podemos utilizar as instalações mas não podemos dormir lá dentro. Dormimos à porta, no passeio, com o porteiro a tomar conta das nossas motas, toda a noite”, conta Pedro.
O objetivo dos três, a partir de Fez, era chegar ao deserto do Sahara, em Merzouga. “Para lá chegar tivemos de atravessar várias aldeias, que turisticamente não têm muito interesse mas onde realmente se descobre a cultura marroquina”.
Em Errachidia viveram a melhor experiência dos 25 dias de viagem. “Aí entrámos em África! Quando tomávamos o pequeno almoço ouvimos crianças a cantar que seguiam o professor em fila indiana. Convidaram-nos para ir à escola. Nunca vi tantos miúdos! De onde vinham? São felizes, com um sorriso na cara. E recuamos 100 anos, tendo em conta a nossa cultura. As mulheres é que trabalham, os homens à beira da estrada. Trocam coisas, trocam romãs por pão, por bolos” refere. O convívio com a população marca “a grande diferença da experiência. Estivemos a viver com os marroquinos e fizemos a diferença para aqueles miúdos!”.
Nas dunas de Erg Chebbi encontraram o berbere Omar “que saiu do nada . Estávamos literalmente no meio do deserto e ele apareceu ali. E de repente já estávamos em sua casa. A vida dele é levar pessoas ao deserto, incluindo no verão com 50 graus, recebe marroquinos que vão para o deserto tratar artrites” contam.

Saindo do deserto, já no 13º dia, passaram por Gorges du Todgha e Dadés Goges, uma etapa com 120 quilómetros. Em Ouarzazate atravessaram de mota um rio que normalmente se passa a pé, encontraram cenários da famosa série da TV ‘Guerra dos Tronos’ e comeram sanduíches kefta mix “feita com uma espátula de barrar as paredes” asseguram.
Para chegar às cascatas de Ouzoud, as maiores de África, com 110 metros de altura, para uma caminhada de três horas, conseguiram levar as Monkey Bikes, apesar de nenhum marroquino alguma vez ter visto uma mota nas quedas de água. “Fomos até lá abaixo. Impressionante! Um percurso pedestre, um trilho que parece o dos Poios. Chegámos eufóricos” recorda Pedro.
Dali o objetivo era atingir a costa passando por Marrakesh onde desistiram de circular com as motas devido à confusão do trânsito.
Em Moulay Bousselham viveram a situação mais caricata: as motas atravessaram o rio dentro de um barco de pesca, evitando uma volta de quase 40 quilómetros. Ali, Pedro esqueceu-se da regra básica de regatear e pagou mais caro por isso. E perceberam que os marroquinos são os mestres do engenho: “um frigorífico a servir de barco, que boiava graças a garrafas de coca-cola, com dois homens a pescar lá dentro, um deles sentado numa cadeira de plástico”, conta Ricardo, mostrando o vídeo do momento que ainda guarda no telemóvel.

Para Portugal, Ricardo trouxe um conhecimento que desconhecia. “Conseguimos viver com pouco. A grande aprendizagem: é possível ser feliz com quase nada. Trouxemos a simplicidade de viver. Em termos de enriquecimento, foi brutal!“, afirma.
Pedro trouxe a sensação de “objetivo cumprido. Que a velocidade reduzida permitiu o conhecimento. Uma viagem que planeei e deu-me satisfação pessoal. Aliás é o que ando sempre à procura. Aprendi a ser mais generoso e a confiar mais nas pessoas. Percebemos que há uma liberdade superior, pois a nossa era maior que a dos locais. Como turistas não tivemos de seguir regras”.
No regresso, já no 23º dia passaram de Tanger para Tarifa, cruzando a fronteira respirando o ar da Europa. Depois? Depois é sempre a subir, Espanha dentro, onde as portas do primeiro mundo se abrem novamente, com lojas de marcas conhecidas, restaurantes com estrelas, hotéis, casas de banho com papel higiénico e tudo a que um ocidental está habituado.
No último dia, os 420 quilómetros de Sevilha a Vila de Rei, quase 10 horas em cima das motas, revelaram-se um martírio e um teste à resistência dos três. Mas alguma saudade do conforto do lar ajudou nos quilómetros finais. “Se me perguntassem se gostaria de repetir esta experiência, era só verificar a pressão dos pneus e 15 minutos para voltar a preencher a mochila”, conclui Pedro. Em 2020 há mais! Até Itália.