Foto: mediotejo.net

Nascida na aldeia de Cabeça do Poço, freguesia de Fundada, concelho de Vila de Rei, Maria Inês não teve uma vida fácil. “Nasci, cresci, fiquei…”, diz, encolhendo os ombros e esboçando um sorriso que não revela ingratidão, mas se tivesse havido oportunidade fintava o destino.

Sempre gostou de trabalhos feitos à mão, bordados de renda e costura, algo que marcou a sua educação. A infância traz memória amarga. Perdeu a mãe aos dois anos e foi criada por uma tia e pela avó materna. Naquela altura já tinha gosto pelo convívio, e havia muita gente a residir na Fundada.

Fez a segunda classe, mas também andou na ribeira do Bostelim a pastar cabras e a acompanhar o pai nos nateiros, onde fazia desbaste para a comida dos animais. Depois, não querendo estudar mais, foi para casa dos tios na sede de freguesia. Tinha 13 anos, e apoiou no pequeno comércio que tinham. Só dali saiu aos 24 anos, para casar.

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Como mandavam as regras, deixou a loja, e foi morar para a casa onde reside atualmente, dedicou-se aos filhos e ao marido. Dantes, sem vizinhos, e simplesmente com a escola primária mais acima e as casas na entrada. Não esconde que se sentiu muito sozinha, e lá lhe valiam algumas visitas à loja ou alguém que viesse ali a casa.

Durante muitos anos não conseguiu encontrar novas oportunidades, pois a sua avó materna – que a havia criado também – adoeceu. O seu compromisso era “tomar conta dela” dois meses por ano.

Mas, no Polidesportivo da Fundada, surge um curso dado pelo CEARTE (Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património) de Coimbra. “Os miúdos já eram crescidos e andavam na escola. E eu pensei: algo aqui tão perto e não hei-de aproveitar?”, e lembrou-se do curso de costura que tinha tirado ainda solteira, nos tempos livres, quando morava com os tios e apoiava na loja deles. Aí, mal sabia que a costura ia servir de base ao seu futuro enquanto tecedeira.

“Inscrevi-me e tive a sorte de entrar”, conta, radiante. Mas algo maior veio alterar os planos. Não podia deixar de substituir a sua mãe juntamente com a irmã no compromisso de cuidar da avó materna, um acordo que tinha com as tias. E para piorar, a avó ficara acamada. Para poder fazer o curso “uma tia, solteira, disponibilizou a casa que era aqui perto e nós íamos ajudar, e muitas vezes ficávamos lá a dormir, eu e a minha irmã”.

Maria Inês saía às seis da manhã para sua casa, orientava a sua vida e entrava às 9 horas no curso de tecelagem. Foi duro, mas terminou com 18 valores. E, na altura, as feiras que percorriam após o curso até davam algum dinheiro. “Era uma área que eu gostava, a minha juventude foi passada a vender e a conviver com as pessoas. Foi isso que me fez seguir.”

Começou em 1993 e terminou um ano depois. Coletou-se em janeiro de 1995. A turma contou com nove participantes, mas Maria Inês foi a única a entregar-se de corpo e alma a este ofício. Algo que traz, hoje, algum arrependimento. Tal como o facto de nunca ter tirado a carta de condução, que “faz muita falta”.

Vários trabalhos saem deste bailado de braços e pernas, com a técnica nas mãos que dão mecanismo ao tear juntamente com os pés nos pedais. Mas o segredo está nas pontas dos dedos, que passam o fio vezes sem conta, enlaçam-no, fazem-no ganhar forma até chegar ao aspeto pretendido.

Entre teias de diferentes tamanhos proporciona-se a criação de diversos tipos de napperons, panos em linho liso e caseiro – sim, essa linha áspera, num tom mais escuro a vingar o tradicional – pois ainda há quem muito procure este tipo de trabalhos. Mas a obra vai muito além do tecer mais clássico, e fazem-se os típicos tapetes e passadeiras de todas as maneiras e feitios, com aquele misto de cores ou mais sóbrios. E eles duram, conforme o tratamento que os clientes lhes derem.

Mas a variedade, garante a artesã, não é sinónimo de facilidade. Há quem complique e, por vezes, lá tem de dar uma nega a uma cliente.

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“Isto ou é engraçado, ou não tem graça nenhuma, pois quando temos o tear regulado com uma medida, a pessoa quer outra”, disse, rindo-se de uma situação desgraçada em que recusa alguns pedidos de trabalho. Não por incapacidade sua, mas porque a lei do tear assim o dita: dada a demora no carregamento e no regular da teia que sustenta toda a base do que é que tecido, têm primazia as encomendas que se enquadrem nas medidas e respeitem o tempo de confeção.

E tudo porque “o mais difícil é fazer a teia, carregar o tear”… E se houver um engano? Uma grande complicação. “Se se partir um fio já não é fácil, mas se a gente se engana… basta que não se coloque a linha no sítio certo.”

Os tamanhos de teia funcionam consoante o pedido de largura do trabalho, e isso influencia todo o processo: trabalhos que variem muito do tamanho anterior terão de esperar. Mas quem aceite a explicação da artesã, percebe que um napperon com largura de 60 centímetros que já esteja regulado na teia se tece rapidamente, seja qual for o comprimento. Mas se o novo pedido for com 10 centímetros a menos ou a mais… nada feito.

Aqui, apesar de o trabalho com o tear parecer já meio mecanizado, e feito de uma forma praticamente intuitiva e automática, não há máquinas. Tudo é feito a partir da arte, engenho, paciência e muitas horas ali despendidas para criar peças únicas.

E este é um dom do artesanato: muito dificilmente se encontram peças iguais. Não há simetrias de cor, nem outro truque que valha. Vale pela originalidade, e muito devido aos próprios novelos e bobines de linha.

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Na sua oficina tem quatro teares: aquele com que aprendeu no curso (mais antigo) e que foram deixando ali ficar, um mais recente que pediu a um carpinteiro da Fundada para fazer, e os outros dois deram-lhe duas colegas que desistiram do ofício mal o curso acabou.

Cada um tem uma medida de teia diferente, para ir dando a possibilidade de terminar trabalhos em prazos combinados. Mas não, ainda que tenha quatro medidas distintas, não consegue satisfazer os pedidos. E esses, já são poucos.

Maria Inês Tereso diz que a maioria das pessoas já não dá valor ao trabalho dos artesãos, e no seu caso, das tecedeiras. “Basta irmos ao supermercado ou a lojas dos chineses, há montes de tapetes e panos deste género”, referiu, assegurando que quem procura o trabalho de uma tecedeira tem que “gostar do trabalho, conhecê-lo, dar o valor ao tempo que leva a fazer e ao material que se gasta”.

Há quem reclame do preço, dizendo que é caro. “Perguntam se não faço um desconto… e às vezes até fico um bocadinho embaraçada”, assumiu, tendo noção que noutras superfícies as peças são mais baratas, “mas não têm a mesma qualidade do que é feito de modo artesanal”. E é o acumular de situações do género que leva à perda de interesse.

“Ainda há pouco tempo fiz uma feira no verão, e uma senhora que se diz artesã apresentou-se com montes de trabalhos. O que me deixou a pensar… como é que ela conseguiu fazer tanta coisa? Ainda por cima vende mais barato… E nestas alturas uma pessoa fica a pensar o que foi fazer ali…”, desabafa.

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Uma coisa tem como certa: o ofício não dá para o seu sustento. A procura não é muita e não é suficiente para manter a casa. Maria Inês vai tecendo enquanto cuida das lides domésticas, enquanto trata da horta e dos animais. O marido é taxista, vai estando fora, e os filhos também já estão criados, estando a mais nova a frequentar a universidade.

Desistir não está nos planos. E quer chegar à idade da reforma. Mas não esconde que, “se fosse mais nova”, acabava com a atividade e tentava empregar-se. Pois as complicações em termos de faturação e licenciamento são muitas.

“Se aguentei estes anos todos… E gosto, gosto realmente do convívio com as pessoas em cada feira ou mercado que faço, tenho trabalhos espalhados pelo mundo fora, nos Estados Unidos, Brasil… muitos emigrantes têm levado trabalhos. E é isto que é gratificante!”, justificou.

Mudam-se os tempos…

A verdade é que Maria Inês leva a preceito e rigor cada trabalho e a quantidade de pedidos que consegue aceitar é limitada. “Isto não é fábrica!”, exclama, salientando que é apenas uma entre quatro teares que não trabalham sozinhos.

Conhece a história de tecedeiras e os métodos com que antigamente semeavam e tratavam do linho para depois fazerem as suas roupas, e recorda um dito popular que dizia que “a mulher só era mulher se fizesse uma teada”.

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Nos dias que correm manda vir o algodão de Braga, vem por correio à cobrança, e mesmo pagando portes, garante que fica mais em conta do que deslocando-se a outros locais. Caso de uma fábrica onde também faz encomendas, em Mira D’Aire. “Tive de lá ir fazer a encomenda, depois voltar para ir buscar,… Perde-se tempo e gasta-se nas viagens”, sublinhou, dando conta do esforço que tantas vezes se revela inglório pela indiferença de quem acha caro o seu trabalho.

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Há materiais que foram acabando, mas outros vão aparecendo, caso do fio reciclado. Mas este, com menor resistência, obriga a manejar com cuidado, para evitar que se partam fios e se ponha em causa todo um tapete idealizado, com nós, entrançados, desenho ao centro.

Os desenhos, são feitos num esquema, em quadrículas. Como quem borda ponto cruz marcando ‘x’ nos quadrados certos da folha. Num dossier, com desenhos do curso, há de tudo. Conforme a complexidade e a imaginação, o trabalho vai seguindo.

E entra no tear, encostada num assento fingido que a acolhe horas a fio. Aponta os caixilhos onde passam os fios que darão o resultado final e pente onde passam as malhas, com trejeitos desafinados e agudos, mas que já não causam estranheza aos ouvidos de Maria Inês.

Com a técnica de “puxar da agulha” faz um pano individual que atravessa as mesas das casas de jantar, de algodão liso. Um trabalho prático onde só joga com os pedais do tear. Parece simples, mas demora mais de uma hora a fazê-lo, pois ao sair do tear “tem de ser rematado à mão”. Isto se não o desmanchar entretanto, pois quer uma peça perfeita, e prefere “desmanchar do que deixar passar um engano”, por mínimo que seja.

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“Já me tem acontecido… pensar que isto se calhar até escapa, é só um fio, mas não… nota-se logo e prefiro desmanchar e que fique como deve ser”, relatou, garantindo que “as bermas têm de estar perfeitas”.

A apresentação conta muito, especialmente quando se expõe os trabalhos para conquistar os clientes. “Sinto-me satisfeita se for a algum evento e me dizem que já compraram produtos meus e dizem que são bons e duram”, relata. “Mas nada é eterno”, atira rapidamente, mencionando que “com o uso, a continuação da lavagem, é natural que se desgastem. E se assim não fosse, que seria de mim? Se já digo que faço pouco, se não se gastar, depois não tenho novas encomendas!”, comenta, rindo-se.

Atualmente, Maria Inês participa nos mercados “Quintais nas Praças do Pinhal”, promovidos pela associação Pinhal Maior. É presença garantida em Vila de Rei, o seu concelho, mas também vai até Oleiros, Sertã, Vila Velha de Ródão, Mação ou Proença-a-Nova. “A gente a qualquer feira que vá, fica sempre com novo conhecimento, porque nunca ficamos junto das mesmas pessoas. Isso é bom, ali somos todos amigos”. E logo conta que costuma ir à boleia com os conterrâneos Abel e Luís, os cesteiros de Aveleira, que o são por herança do pai e também correm os eventos na região.

Os seus trabalhos estão em exposição da loja no mercado municipal e também na Internet, no site da autarquia dedicado aos produtos endógenos.

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Maria Inês garante que no verão “aparece mais gente”, sejam emigrantes ou mesmo muitas excursões que passam e que visitam a loja, e aí consegue vender alguma coisa. Na altura do Natal há quem venha de propósito comprar algo para oferecer. Mas não esquece de referir as suas clientes fiéis, de Abrantes, de Mação, de Mouriscas… “Tenho trabalhos espalhados por muitos lados e vendidos principalmente na Feira dos Enchidos, Queijo e Mel, em que aparece muita gente em Vila de Rei”, que é para Maria Inês “das melhores”.

Ano após ano, a criatividade vai puxando fios dali, linhas de acolá, e até misturando materiais, para se ir conquistando o mercado. Mas as ideias só têm sucesso se se ousar fazer diferente e inverter a tendência de deixar cair peças tradicionais em desuso.

Foi o caso de outubro de 2018, quanto Maria Inês se ofereceu para fazer as lembranças de casamento do filho para as convidadas. “Foram feitas no tear. Panos individuais, quase um cento deles!”, disse, lembrando que deu a dica para fazer saquinhos de cheiro, mas a sua nora preferiu algo com mais utilidade. E a tendência tem sido esta: optar pelo “mais rústico”.

Agora, enquanto espera que cheguem os netos, vai continuando sozinha no ofício. As filhas, apesar de terem crescido ligadas à tecelagem, nunca quiseram seguir as pisadas da progenitora. Questionada sobre se passaria os seus conhecimentos a alguém interessado, reconheceu com humildade que só na parte prática daria dicas, “pois na escrita e em módulos não se sente à vontade”.

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Apesar de, no meio rural onde vive, entender que não é fácil uma pessoa tirar um ordenado e se manter, acredita que, noutros sítios e dedicando o tempo apenas à tecelagem, as pessoas possas conseguir ter o seu próprio negócio. E como em todos os negócios, “há alturas em que se vende mais, outras em que se vende menos”.

Mesmo lembrando aquele mercado em que só conseguiu trazer dois euros para casa, Maria Inês só pede saúde. Porque passando os dias maus, “em que apetece desistir”, tem que se ir à luta e “tem que se lá voltar outra vez”.

* Publicada originalmente em fevereiro de 2019, republicada em janeiro de 2023.

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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3 Comentários

  1. Conheço a Inês há muitos anos quando ela estava na loja dos tios. Faz este ano 50 anos. Tenhos muitas coisas feitas por ela. É um privilégio. Força Inês. Beijinhos

  2. boa tarde , gostaria de saber se ensina a trabalhar no tear,sempre tive uma paixão enorme por esse tipo de trabalhos.

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