Desde 2003 que o Centro de Estudos de História Local de Abrantes (CEHLA) organiza as Jornadas de História Local, exceção feita em 2020, devido à pandemia. Este ano, Sardoal, Mação e Abrantes, acolheram, entre os dias 7 e 10 de dezembro, aquela que foi a 19ª edição da iniciativa, assinalando os 20 anos do CEHLA e do cineclube Espalhafitas.
Na passada sexta feira, 9 de dezembro, os trabalhos centraram-se no Centro Cultural Gil Vicente, no Sardoal, com a iniciativa “Alfabetização da memória”, onde foi apresentada a recolha musical feita nos concelhos de Abrantes, Sardoal, e Constância, no âmbito do projeto “A música portuguesa a gostar dela própria”, dirigido por Tiago Pereira.
Ao longo da sessão, que encheu a plateia do Gil Vicente, foram revisitadas diversas memórias individuais e coletivas que fazem parte do património cultural da região do Médio Tejo.
Paula Passareta, o Grupo de Cantares Brisa do Tejo, os Cantares das Sentieiras, Maria Senhorinha e Envelhecer com Dignidade foram alguns dos nomes projetados na tela de cinema do Centro Cultural, na noite de sexta-feira.
Tiago Pereira é realizador, documentarista, radialista e visualista. Natural de Sintra, tem-se notabilizado na promoção e divulgação da música portuguesa, através de documentários sobre as tradições musicais e populares portugueses. É o mentor e diretor do projeto “A música portuguesa a gostar dela própria” – MPAGDP que, em viagem pelo país, documenta tradições e registos musicais que marcam diferentes gerações.
Aquele que já se tornou um ativista e “defensor da memória coletiva e tradição oral”, conta que por notarem uma desertificação na região do Médio Tejo, a nível de documentação do património musical, era “importante gravar” alguns registos.
“Há sítios no mapa que são manchas, onde nunca gravámos. A ideia é conseguirmos resolver isso. Esta zona de Abrantes, Constância e Sardoal era uma mancha branca onde não tínhamos gravado e era super importante que acontecesse, até porque abaixo gravámos logo a partir de Ponte de Sor até Faro (…), e depois, de Vila de Rei para cima também já tínhamos gravado”, explica.

Tendo conhecimento das práticas culturais existentes no território, Tiago Pereira contou com o incentivo da Associação Palha de Abrantes. “Sabia que aqui havia ainda grandes práticas, por exemplo, no Pego. E portanto, era uma coisa que nós queríamos que acontecesse. Depois, por um feliz encontro com o Pedro [Catarino] e com a Palha de Abrantes, isso foi possível acontecer. Tudo o resto que aconteceu aqui é um improviso”, conta.
Ao mediotejo.net, Lurdes Martins, presidente da direção da Associação Palha de Abrantes, explicou como surgiu a ideia para o projeto. “Dentro da Palha de Abrantes há vários projetos e dois deles fazem 20 anos, que são exatamente a revista Zahara e o Cineclube Espalhafitas. E então, a ideia que surgiu foi… Não vamos festejar cada um os seus 20 anos, não fazia muito sentido. Vamos tentar criar um casamento, algo que ligue dois projetos, criando uma síntese daquilo que cada um deles faz”, explicitou.
O projeto “Alfabetização da Memória” permite ligar a história local e a produção de imagem. “A Zahara liga-se muito à história e ao património material, imaterial e histórico, e o Espalhafitas tem muito de imagem, de filmes e, além disso, faz também pequenos documentários de registo de memórias”, referiu.

Apesar de haver um contacto junto das entidades locais e da comunidade, Tiago Pereira revela que muitas vezes os registos que faz resultam de um mero acaso. “A Lurdes, da Palha de Abrantes, tinha algum levantamento de pessoas que conhecia e depois o Pedro fez uma pré-pesquisa, em que andava de sítio em sítio à procura e a falar com as pessoas. Às vezes falava com Presidentes de Junta, outras vezes falava com Ranchos Folclóricos, às vezes descobria grupos e ia ter com eles, e assim se conseguiu chegar à maioria das pessoas. Às vezes é um acaso, outras vezes as pessoas vêm ter connosco, não há propriamente uma fórmula, é sempre diferente”, explicou ao mediotejo.net.
“O projeto ‘A música portuguesa a gostar dela própria’ é como uma cura de um queijo ou a cura de um presunto, é preciso haver a ação do tempo. Daqui a 50 anos, provavelmente, as pessoas vão dar mais importância a estes vídeos que foram gravados aqui do que agora. É sempre assim.”
Tiago Pereira
Questionado quanto à importância do projeto para a documentação e preservação da memória coletiva, o realizador português referiu ser uma iniciativa com uma “importância afetiva”.
“Os projetos têm sempre uma importância afetiva, porque as pessoas se reconhecem e se veem. Essa importância afetiva às vezes é muito importante, porque tem poderes cognitivos nas pessoas. Às vezes não se lembram de coisas e depois veem os vídeos, dizem ‘estava mesmo bem no vídeo’ e voltam a lembrar-se. Também perdem alguns pudores que têm porque acham que isto não serve para nada e alguém lhes dá esse reforço positivo e elas querem lembrar-se e querem dizer”, diz Tiago Pereira.
De acordo com o Diretor Artístico da MPAGDP, a importância do projeto divide-se em duas instâncias, estando a segunda diretamente relacionada com a construção de um futuro, com base nas memórias do passado. “É sempre uma importância que tem a ver com as memórias não se perderem e com que as pessoas possam sempre lembrar umas das outras, de como é que as coisas existiam. Isso será sempre importante no futuro, porque é sempre uma boa ferramenta para percebermos como é que as coisas funcionavam no passado”, refere.
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No entanto, este é um processo demorado. “O projeto ‘A música portuguesa a gostar dela própria’ é sempre como uma cura de um queijo ou a cura de um presunto, é preciso haver a ação do tempo. Daqui a 50 anos, provavelmente, as pessoas vão dar mais importância a estes vídeos que foram gravados aqui do que agora. É sempre assim.”
Quanto ao futuro, fica o desejo de descobrir e preservar novas memórias musicais no território central do país. “Acho sempre que há mais património por descobrir, acho que nós nunca descobrimos nada, é sempre pela rama (…). Tem de ser pensado, vir para aqui com mais tempo e descobrir ainda, porque é sempre uma luta contra o tempo. As pessoas que se lembram das coisas são as pessoas que estão a morrer”, concluiu Tiago Pereira.
Lurdes Martins conta que para a programação deste ano o objetivo era que “todos os dias tivessem esta comunhão” e foi isso que se acabou por fazer. “Nós hoje estivemos com o Tiago, fomos trabalhar com as pessoas no terreno, fomos filmá-las, mas antes de as irmos filmar tivemos de saber onde é que elas estavam, o que é que elas faziam, o que cantavam. Ou seja, houve um levantamento prévio para tentar ver o que é que podia ser registado”, referiu a diretora da associação abrantina.

Além disso, a colaboração com Tiago Pereira revelou-se um importante veículo de divulgação do património da região. “Pensamos que ele, em termos de divulgação dessa parte da nossa cultura (…), seria eventualmente, o melhor veículo de divulgação e foi assim que nós chegámos ao Tiago”, afirma Lurdes Martins.
A 19ª edição das Jornadas de História Local apresenta algumas diferenças relativamente à edição anterior. A abrantina explica que se procurou sair do registo que era habitual. “As Jornadas eram, habitualmente, um dia muito carregado de informação e era toda concentrada num dia. Acho que nunca saiu de Abrantes, ou seja, era aquele local, e nós pensamos em fazer qualquer coisa que fosse de convívio (…). As pessoas estão aqui a falar umas com as outras, conheceram-se, não se trouxe tanta gente de fora, mas conheceu-se o que temos cá dentro”.
Relativamente à descentralização, Lurdes Martins revela que já estava na hora. “Se a própria revista Zahara sai de Abrantes e se nós, os Espalhafitas saímos de Abrantes, porque fazemos cinema nas aldeias, registamos ofícios de aldeias que não são do concelho de Abrantes, então estava na hora de sairmos nós próprios para esta celebração de Abrantes. Claro que não podemos ir a todos os concelhos, mas isso ficará para outra vez. Fomos àqueles que foi possível: Mação, Sardoal e Abrantes.”
“A nossa intenção era termos também este desafio de trabalharmos modelos diferentes”, diz Lurdes Martins. “Este, por exemplo, é um trabalho bastante colaborativo. Nós trabalhamos todos no mesmo plano, estamos todos com as pessoas, juntos, e o bocadinho de trabalho que cada um de nós fez encaixou-se num bocadinho de trabalho final que resultou depois no ecrã, e que resultou bem.”