Falta de médicos de família tem sido problema de difícil gestão no ACES Médio Tejo e em todo o país. Foto arquivo: mediotejo.net

Segundo o portal da transparência do SNS, em abril de 2022 um total de 1.299.016 milhões utentes não tinham médico de família atribuído, número que aumentou para 1.678.226 um ano depois. Perante isso, o número de utentes acompanhados por esses especialistas de medicina geral e familiar baixou de cerca de 9,1 milhões para pouco mais de 8,8 milhões no mesmo período, indicam os dados oficiais.

Para este sábado estão agendadas marchas em Lisboa, Porto e Coimbra contra a “degradação do SNS”, convocadas por vários sindicatos e com a participação de movimentos de utentes, uma iniciativa para reivindicar um “investimento sério” neste serviço público.

Para o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), esta situação deve-se, simultaneamente, a uma vaga de aposentações dos especialistas que está a ocorrer nos últimos anos e à falta de atratividade do SNS para reter os médicos de família recém-formados e para atrair os que estão atualmente fora do serviço público.

Face a estes dois fatores, “todo o sistema que deveria ser baseado nos cuidados de saúde primários passa o foco para os hospitais e serviços de urgência, que também têm falta de recursos humanos e não são concebidos para este tipo de resposta”, disse à agência Lusa Nuno Jacinto.

A falta de médicos de família está, alertou Nuno Jacinto, a obrigar os utentes a aceder ao SNS “por um local onde não deveriam entrar” – os hospitais -, “pervertendo” todo o sistema e sobrecarregando os profissionais de saúde de um modo geral.

ÁUDIO | NUNO JACINTO, PRESIDENTE DA APMGF:

Um estudo dos investigadores Pedro Pita Barros e Eduardo Costa sobre os recursos humanos na saúde, divulgado em fevereiro deste ano, indica que cerca de um em cada quatro médicos tem mais de 65 anos, um envelhecimento da classe que resultará numa vaga de cerca de 5.000 aposentações até 2030.

“O envelhecimento dos médicos afeta os especialistas hospitalares, bem como os médicos dos cuidados de saúde primários. Estimativas de 2011 sugeriam que cerca de 75% dos médicos de família tinham mais de 50 anos. Este problema foi ainda agravado por uma vaga de reformas antecipadas que surgiu na sequência das medidas de austeridade implementadas após 2011”, alertou o documento.

Este é um argumento que também tem sido utilizado pelo Governo para justificar o aumento de pessoas sem médico de família, com a secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares, a reconhecer recentemente que, além de 2021 e 2022, ainda 2023 e 2024 “serão anos de grande número de médicos a aposentar-se”.

Segundo o executivo, a falta de especialistas de medicina geral e familiar afeta sobretudo a região de Lisboa e Vale do Tejo, o Algarve e o Alentejo, mas o presidente da APMGF alertou que a carência já se sente no Centro e mesmo no Norte, onde “começa a haver alguns locais onde não faltavam médicos e agora faltam”.

O Governo abriu todas as 978 vagas de medicina geral e familiar, para reter os recém-formados, mas também para atrair especialistas que não estejam no SNS, mas já admitiu que apenas fiquem colocados nas unidades públicas de saúde entre 200 e 250 dos 355 médicos que acabaram agora a sua especialidade.

“É bom que o Governo tenha aberto todas as vagas disponíveis. É a primeira vez que isso acontece e é um bom sinal, porque significa que a tutela assume a verdadeira dimensão do problema”, respondeu Nuno Jacinto, ao salientar que “faltam quase mil médicos de família” no SNS.

O presidente da ANMGF concorda que seria “irrealista” pensar que todas as 978 vagas seriam preenchidas, mas salientou que a abertura de todos os lugares disponíveis “tem de ser uma medida que tem de se manter a médio e longo prazo para que possa estabilizar”, considerando que o objetivo realista passa agora pela contratação dos mais de 300 médicos que acabaram a especialidade na última época de exame.

“Não vamos dizer que vamos buscar mil médicos de família de repente, porque eles não existem, mas temos de ser ambiciosos e dizer que, pelo menos, todos os que acabaram a especialidade queremos contratar”, disse Nuno Jacinto, para quem atualmente os médicos de família “olham para o SNS com alguma tristeza e desencanto”.

Para isso tem contribuído, de acordo com o responsável da ANMGF, o sentimento dos médicos de família de que “o seu trabalho não tem a valorização e o respeito que deveria ter”.

Na prática, isso deve-se à “falta de uma aposta nos cuidados primários, desde logo, na grelha salarial”, assim como à estagnação da carreira, à desadequação do sistema de avaliação, que deveria ter uma progressão baseada no mérito, e a um modelo de “contratação muito rígido baseado nas 40 horas, que não permite flexibilidade aos médicos que existe, por exemplo, no setor privado”, referiu.

Esta falta de atratividade do SNS é também sentida pelos novos médicos, garantiu à Lusa a presidente da Comissão Nacional de Médicos Internos do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), para quem isso deve-se às precárias condições de trabalho, mas sobretudo aos vencimentos praticados no setor público.

“Em 2022, o valor pago a um recém-especialista era 16,03 euros por hora brutos”, adiantou Mónica Paes Mamede, ao considerar este vencimento “baixo”, tendo em conta todas as responsabilidades clínicas que tem um especialista, assim como a exigência da profissão a vários níveis.

Os recém-especialistas têm a responsabilidade de todas as decisões clínicas que são tomadas sobre os seus doentes, trabalham em turnos de 24 horas e com horários rotativos ao fim de semana e feriados, sublinhou.

“O setor social e privado estão no mesmo país do que o setor público e têm um pagamento, por norma, bastante mais elevado e as condições de trabalho também são mais atrativas”, referiu Mónica Paes Mamede.

Se não se verificar um aumento dos vencimentos, “corre-se o risco de ter um SNS cada vez mais fraco”, alertou ainda a presidente da Comissão Nacional de Médicos Internos do SIM, ao assegurar que já nota “uma grande diferença” desde há seis anos, quando começou a trabalhar no setor público.

Utentes e trabalhadores alertam sábado que o SNS “corre o risco de implodir”

Profissionais de saúde, utentes e sindicatos do setor participam no sábado numa marcha em defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma iniciativa que terá uma “forte participação”, perspetivam os seus promotores.

“Do nosso ponto de vista, o SNS, se nada for feito, corre o risco de implodir”, adiantou à agência Lusa o coordenador Federação dos Sindicatos da Função Pública (FNSTFPS), uma das várias entidades que promovem a marcha que vai decorrer nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra.

Segundo Sebastião Santana, a “Marcha pelo Direito à Saúde” tem tido uma adesão “em linha com a importância do SNS”, o que quer dizer que vai registar uma “forte adesão” dos trabalhadores da saúde, dos utentes e dos seus movimentos representativos, dos sindicatos e até de outras entidades como associações de bombeiros.

“Estamos a viver um quadro muito difícil para quem trabalha no SNS, mas, mais do que isso, para o próprio serviço público. A falta de recursos é enorme e os profissionais estão exaustos”, adiantou o dirigente sindical, para quem, se não forem revertidas as atuais políticas para o setor, pode-se “chegar a um ponto de irreversibilidade”.

De acordo com Sebastião Santana, a situação de “degradação do SNS” vem-se acentuando há mais de 10 anos, “com um desinvestimento crónico e um subfinanciamento absurdo” das instituições de saúde públicas.

A Federação Nacional dos Médicos (FNAM), apesar de não ser uma das entidades promotoras, vai também estar presente na marcha, assegurou à Lusa a sua presidente, alegando que o “SNS precisa mesmo de ser salvo”.

“Vamos participar no sentido da defesa da nossa profissão, mas também de todo o SNS”, adiantou Joana Bordalo e Sá, ao salientar que “existem médicos em Portugal, não existem é médicos suficientes” nos hospitais e centros de saúde públicos.

Segundo referiu, a solução para o SNS ter mais médicos “é apontada todos os dias” ao Governo, através das propostas que a FNAM apresenta ao ministério para a melhoria das condições de trabalho, algumas das quais não implicando mais recursos financeiros.

Joana Bordalo e Sá sublinhou ainda que os recém-especialistas “não veem qualquer perspetiva de um projeto profissional, de serem valorizados e de poderem progredir”, o que está a contribuir para que o SNS continue a ter dificuldades em reter médicos.

A marcha de sábado é organizada pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses — Intersindical Nacional (CGTP-IN), Federação dos Sindicatos da Função Pública (FNSTFPS), Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional (STAL), Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), Sindicato Nacional dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica (STSS) e Movimento de Utentes dos Serviços Públicos (MUSP).

Está prevista sair do Campo Pequeno, em Lisboa, às 15:00, do Hospital de São João, no Porto, também às 15:00, e do Centro de Saúde Fernão de Magalhães, em Coimbra, às 11:00.

Agência Lusa

Agência de Notícias de Portugal

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