Mia Couto em Torres Novas. Fotografia: mediotejo.net

É um dos escritores mais aclamados e premiados mas, apesar de ter à sua frente um auditório cheio, Mia Couto esteve “como em sua casa”, conseguindo criar na Biblioteca Municipal de Torres Novas, na noite de sexta-feira, dia 17 de junho, o ambiente para uma conversa intimista, onde se falou de tudo um pouco, de forma descontraída.

“Literatura e Ecologia, modos de ler o que está à nossa volta” era o tema de sessão comemorativa dos 85 anos da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, mas o escritor e biólogo moçambicano, contando com a moderação da jornalista Maria João Costa, navegou com extremo à vontade entre a literatura, a ecologia, a educação, a sociologia, a economia, sonhos e destinos, levando os presentes a mergulhar na sua linguagem poética.

A conversa com Mia Couto – vencedor do Prémio Camões, entre dezenas de outras distinções, e autor de obras como “Terra sonâmbula”, “Jesusalém”, “Estórias abensonhadas”, “Tradutor de Chuvas”, “O Fio das Miçangas” ou “A confissão da leoa”– deu os primeiros passos focando o início da própria vida de Antônio Emílio Leite Couto, nascido na cidade da Beira, em Moçambique, a 5 de julho de 1955, filho de Fernando Couto, um emigrante português, jornalista e poeta.

O escritor revelou que na sua juventude era um “caso perdido”, por não saber o que estava a fazer no mundo, mas que esse “não saber” era um dom: “Com tantas coisas dentro de nós, com tanta gente que mora dentro de nós, ter que escolher o que vamos ser, quando nós temos 16 ou 17 anos, significa sempre que estamos matando alguma coisa, matando alguém”.

YouTube video

A sessão decorreu sempre num clima de boa disposição, com o escritor a despertar alguns risos entre a multidão embevecida com as suas palavras e tiradas poéticas, a que nos foi habituando nos seus livros. Para os escrever, confessou ter uma “enorme vantagem”: ser uma pessoa sem memória. “Invento memórias e invento esquecimentos”, revelou.

Foi aliás a questão da memória, entre outros fatores – como escrever poemas e cartas para namoradas que não existiam – que lhe abriu a porta para a literatura. É que em sua casa faziam de manhã algo que o irritava muito: todos se lembravam e falavam sobre os seus sonhos, pelo que, como não se lembrava, o escritor moçambicano começou a inventá-los. Até porque, diz, “os sonhos são a matéria prima, são onde a gente autoriza que exista dentro de nós uma certa loucura”.

A conversa foi moderada pela jornalista Maria João Costa. Foto: mediotejo.net

Todos somos contadores de histórias, uns fazem-no no papel, outros não, considera Mia Couto, mas mais do que inventor de histórias, ele é também um inventor de palavras nas suas “estórias abensonhadas”. O escritor confessou que isso provavelmente não aconteceria se não fosse de Moçambique, país onde tal acontece sem ser um labor literário, onde existe uma “licença poética” e menos preocupação com a gramática, relembrando que “a escrita, a poesia nasce do erro – do erro bonito”.

“Sou em primeiro lugar um poeta. Para perceber a lógica de uma narrativa – o tempo, as personagens –, tenho de entrar por via da poesia. É a minha porta”

Mia Couto

Lembrou, a propósito, a mensagem que alguém lhe enviou avisando que tinha encontrado um caderno de notas do escritor, e onde o tinha deixado para que Mia o fosse buscar, mais tarde: “Ficou no arrumário.” Essa é uma palavra que não existe no dicionário, mas “armário”, aquela que usamos como “correta”, fará ainda sentido, nos dias de hoje?

“Sou em primeiro lugar um poeta. A maneira como a história me surge é sempre de uma forma poética (…) Para perceber a lógica de uma narrativa – o tempo, as personagens –, tenho de entrar por via da poesia. É a minha porta”, revelou ainda Mia Couto, para quem a “poesia é uma maneira de limpar” aquilo que surge de forma muito confusa na sua cabeça.

O auditório da Biblioteca Municipal de Torres Novas encheu para ver e ouvir Mia Couto. Foto: mediotejo.net

Sobre os baixos índices de leitura em Portugal – no ano passado, 61% dos portugueses assumiu não ter lido um único livro –, Mia Couto considerou que é realmente preocupante, mas que esse empobrecimento é geral, porque as pessoas também estão a deixar de fazer outras coisas. Estão, por exemplo, a perder a capacidade de escutar os outros, de construir histórias, de saber encantar as crianças.

“Acusamos muito a pandemia, que a pandemia nos separou, ficámos isolados, que não dávamos abraços… Mas eu acho que a gente não dava tantos abraços como pensamos. Não é verdade, a doença começou antes (…), e nós estamos progressivamente mais distantes, mais incapazes de ter disponibilidade para os outros”.

“Acusamos muito a pandemia… ficámos isolados, não dávamos abraços… Mas eu acho que a gente não dava tantos abraços como pensamos. Não é verdade, a doença começou antes. Estamos progressivamente mais distantes, mais incapazes de ter disponibilidade para os outros”.

Mia Couto

Além dos romances e obras de poesia conhecidos dos graúdos, Mia Couto já escreveu também livros para crianças, mas confessa que isso começou como um “acidente”, tendo afirmado até que tinha um certo “preconceito” em escrever para os mais pequenos porque, não sabendo, podia “estar a fazer algo ofensivo, simplificado”, porque há a ideia de que as crianças têm “um entendimento menor”.

Mas, disse, “as crianças não têm um entendimento menor, têm outro entendimento, e às vezes entendem aquilo que é a vocação poética da fala, do pensamento, muito melhor do que a gente pensa”.

Mia Couto no auditório da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, em Torres Novas. Fotografia: mediotejo.net

O “destino” não quis que Mia Couto terminasse o curso de Medicina – e também não o prendeu ao jornalismo, que exerceu durante alguns anos – e ainda bem, diz, para sua felicidade, a qual lhe é conferida com a Biologia, a qual considera que não devia ser entendida só como uma ciência, mas ser ensinada logo na escola primária como uma forma radicalmente diferente de pensar o mundo, uma vez que esta defende que o ser humano não é o centro ou o topo, que não é humanamente puro (só 10% do corpo é humano, o resto são ‘outros’), o não-determinismo e o efeito das circunstâncias.

“A Biologia não devia ser entendida só como uma ciência, mas ser ensinada logo na escola primária como uma forma radicalmente diferente de pensar o mundo”

Mia Couto

A conversa passou também pela ecologia, como não podia deixar de ser, abordando-se aquela que “não é uma luta dos ambientalistas”, defendeu Mia Couto, mas sim de todos, até porque sob as costas largas do ambiente e das alterações climáticas, escondem-se governações “completamente irresponsáveis”.

“A maneira de pensar o mundo, a maneira de pensar a natureza, tem de mudar ela própria, e acho que aqui é preciso ouvir África”, lembrou, afirmando que ainda resta algum “sentido sagrado” sobre a natureza, dando o exemplo dos rios, que em África são encarados como “entidades”.

No final da sessão muitos foram aqueles que quiseram regressar a casa com um livro autografado e ter a possibilidade de trocar algumas palavras com Mia Couto. Fotografia: mediotejo.net

O escritor revelou ainda que, além de cães, tem também mochos e corujas na sua casa, em Moçambique. Começou por abrigar um mocho ferido e, depois disso, as pessoas começaram-lhe a entregar os mochos e corujas que encontravam. Coincidências do destino ou sinal da sabedoria patente naquele espaço a que chama casa?

Também a situação de Moçambique e a sua queda no índice global de paz, e em particular o conflito armado em Cabo Delgado, foi abordada, sendo que Mia Couto considera que os ataques vão continuar. O escritou defendeu ainda que Moçambique não se explicou bem, porque não é que recuse ajuda externa, apenas prefere que as pessoas que vão para o terreno sejam pessoas que estejam integradas culturalmente, racialmente e linguisticamente, até porque aquele não é um assunto simplesmente militar.

No final da sessão, seguiu-se um momento de autógrafos, com uma fila a preencher o auditório até à sua porta de saída. Todos queriam voltar para casa com uma assinatura, um aperto de mão, um abraço de Mia Couto.

ÁUDIO | Declarações de Mia Couto, no final do encontro em Torres Novas

Ao mediotejo.net, o escritor revelou que este “foi realmente um encontro, no sentido em que não se falaram coisas sobre literatura, exatamente aquilo que se espera num encontro sobre livros, mas falou-se sobre a vida, sobre aquilo que são as nossas preocupações do momento, quer seja na Europa, quer seja em África ou no mundo… Então eu acho que senti-me em casa, senti-me em família”.

“Foi realmente um encontro, no sentido em que não se falaram coisas sobre literatura, falou-se sobre a vida, sobre aquilo que são as nossas preocupações neste momento. Senti-me em casa, senti-me em família”.

Mia Couto

Mia Couto disse lamentar “a falta de tempo” para estar mais com quem acorre a estes encontros. “Acho que o que me acontece em casos como este é que fico com muita vontade de voltar e de fazer coisas mais pequeninas, em que haja uma troca mais nas duas direções, em que as pessoas também digam coisas, porque não é justo, fica um discurso num sentido só”, disse.

Sessão de autógrafos de Mia Couto, no final do encontro em Torres Novas. Foto: mediotejo.net

Elvira Sequeira, vereadora com o pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Torres Novas, disse ter sido “um prazer imenso” ouvir Mia Couto. “Ele efetivamente entra-nos no corpo, entra-nos na alma, entra-nos dentro com aquilo que é a sua forma de estar e a sua forma de usar as palavras e de jogar com elas de uma forma tão simples, mas ao mesmo tempo tão carinhosa”.

“Acaba por nos abraçar [com as palavras], e abraçar um tema que é tão presente na sua escrita, que é muito a terra, que é muito a água, que é muito os rios, que é tudo aquilo que nós estivemos a trabalhar ao longo deste ano com a nossa comunidade, que foi o rio e a parte ecológica deste trabalho que fizemos uns com os outros, e o Mia Couto foi uma forma de terminar este projeto da melhor forma”, completou a edil.

ÁUDIO | Elvira Sequeira, vereadora com o pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Torres Novas
A vereadora Elvira Sequeira (de pé), na apresentação do encontro com Mia Couto. Fotografia: mediotejo.net

Já Margarida Trindade, diretora da Biblioteca Municipal de Torres Novas, sublinhou que este foi o “corolário” de um processo iniciado em outubro do ano passado, o projeto “Almonda = Al Mundo, um rio à nossa volta”, ‘lema’ das atividades da Biblioteca durante este último ano.

ÁUDIO | Margarida Trindade, diretora da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, de Torres Novas

“Estas atividades e este tema prendem-se com a execução dos objetivos de desenvolvimento sustentável com os quais as bibliotecas estão comprometidas e já durante o ano quisemos tornar visível esta relação com o rio e esta consciencialização das pessoas, dos miúdos e da comunidade, para que tratemos bem aquilo que é nosso”, disse ainda Margarida Trindade.

A sessão visou também assinalar os 85 anos da Biblioteca Municipal, lembrou, e foi igualmente uma forma de “tornar ainda mais visível esta nossa preocupação e este nosso trabalho”.

Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Jornalismo. Natural de Praia do Ribatejo, Vila Nova da Barquinha, mas com raízes e ligações beirãs, adora a escrita e o jornalismo.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *