José Ramoa Ferreira. Foto: Helena Calhau – Câmara Municipal de Constância

A notícia de uma morte é sempre uma violência, em especial quando se trata da morte de um amigo. E os amigos, por muitos anos que tenham, nunca são velhos nem têm idade para morrer. Mas morrem, levando com eles muito saber e muitas histórias que não mais poderão partilhar connosco.

José Ramoa Ferreira, o Zé Brasileiro, português de Braga dos versos de Vasco de Lima Couto, meu amigo de muitos anos, partiu no domingo passado. Com ele foram as memórias de uma vida inteira dedicada à Arte, a cujo comércio se dedicava, e à Cultura, em que andava sempre envolvido.

Em Constância, onde viveu e ativamente interveio durante 40 anos, deixa o magnífico palacete setecentista onde residia e que é, também e por sua vontade, a Casa-Museu Vasco de Lima Couto. Trata-se de um património ímpar e muito valioso que, espero, o Município de Constância ou o Estado Português saberão olhar com o cuidado e a visão de futuro que se impõem.

Ainda em fevereiro, antes de a pandemia nos obrigar ao confinamento, José Ramoa acedeu, a meu pedido, a participar como convidado especial numa sessão da Tertúlia de Poesia da Casa-Memória de Camões dedicada a Vasco de Lima Couto. Longe de mim imaginar que essa seria a sua última intervenção pública…

Da vida que agora se finou fica a memória de um homem determinado, que se foi fazendo a si próprio e inconformado, sempre lutador e em busca de mais além.

Há pouco mais de dois anos, na primavera de 2018, na sequência de uma das muitas longas conversas que tive com o José Ramoa, escrevi para a rubrica Rostos do Boletim Informativo da Câmara Municipal de Constância o texto que, por ser o retrato que com palavras dele fiz, aqui reproduzo em jeito de sentida homenagem.

ZÉ BRASILEIRO, PORTUGUÊS DO MUNDO

Nasceu numa família modesta e numerosa de Braga. Eram 19 irmãos, dos quais só 10 chegaram à idade adulta, sendo cinco homens. O pai, que tinha má impressão da tropa, não consentiu que nenhum deles fizesse o serviço militar e, quando se aproximava a altura da incorporação, um a um mandou-os a todos para o Brasil, onde tinham família. Assim, o jovem José, que desde rapazito trabalhava numa fábrica de radiadores, viu-se aos 20 anos a caminho do Rio.

Em Copacabana e Botafogo trabalhou num bar e depois foi relações públicas de uma companhia de empreendimentos sociais, o que lhe permitiu fazer conhecimento e amizade com grandes figuras das letras e das artes brasileiras, como o arquiteto Roberto Burle Marx, e com artistas portugueses, como a atriz Laura Alves. Paralelamente dedicava-se à decoração de interiores e ao comércio de arte que lhe multiplicaram os contactos.

Mas o Brasil, verdadeiramente, nunca foi o seu mundo e, nove anos passados, decidiu vir para Lisboa, onde se empregou num negócio de antiguidades que depois adquiriu e passou a administrar por conta própria. Através da amiga Laura Alves conheceu na capital o escol dos intelectuais e dos artistas da época com quem fazia tertúlia: Mário Cesariny, José-Augusto França, Rui de Brito, Alexandre O’Neill, o maestro Jorge Machado, Irene Isidro, Beatriz Costa, Francisco Relógio, Artur Bual, Lagoa Henriques, Martins Correia… E Vasco de Lima Couto.

No dia dos seus 28 anos, em 1969, Vasco de Lima Couto ofereceu-lhe, como prenda, o poema Zé Brasileiro, português de Braga, uma magistral biografia da sua vida até então. O poema seria musicado por António Sala e popularizado pela cançonetista Alexandra que o levou ao Festival RTP da Canção. E a amizade com Vasco de Lima Couto seguiu, reforçada, até à morte do poeta.

José Ramoa veio pela primeira vez a Constância em 1975. A viúva e as filhas do pintor José Campas, proprietárias do palacete onde agora vive, chamaram-no para ver uns móveis antigos que tinham intenção de vender. Mostrou interesse em adquiri-los mas as senhoras disseram-lhe que só vendiam os móveis juntamente com a casa… E foi assim que passou para a sua posse a belíssima e espaçosa residência, que tantas e tão gradas figuras tinham antes habitado, como o chefe do governo setembrista Passos Manuel.

Não deixou, por então, a capital, mas passou a vir a Constância aos fins de semana, com Vasco de Lima Couto com quem partilhava a casa. Quando o amigo morreu, em 1980, José Ramoa transformou o rés-do-chão em Casa-Museu Vasco de Lima Couto, conservando e expondo todo o espólio do poeta: poemas, correspondência, livros, discos, móveis, fotografias, objetos pessoais.

O piso superior, onde passou a viver em permanência, é o seu espaço privado, também ele repleto de arte e cultura: quadros, esculturas, arte sacra, livros, uma infinidade de objetos valiosos que maravilham quem o visita. Na parede, os retratos de José Ramoa assinados por Artur Bual e Martins Correia testemunham a amizade e a consideração dos grandes artistas pelo Zé Brasileiro.

Mas há muitos outros mestres presentes, através da sua arte, como Manuel Cargaleiro, Sylvio Pinto, Vieira da Silva, Amadeo… Alguns destes e muitos outros foram expostos na Galeria que José Ramoa criou na Rua Luís de Camões e manteve por muitos anos em atividade, trazendo a Constância nomes importantes da arte e da cultura de Portugal e do Brasil. O enorme quadro que decora a Salão Nobre da Câmara Municipal foi oferecido ao povo do Concelho de Constância, numa dessas ocasiões, pelo seu amigo brasileiro arquiteto Burle Marx.

A viver na vila há quase 40 anos, José Ramoa tem tido uma participação muito ativa na vida da comunidade: foi presidente do Clube Estrela Verde, tendo dado especial atenção ao teatro, à banda e ao grupo coral, foi irmão da Santa Casa e fundador da Universidade Sénior. Mas onde teve uma ação mais duradoura e mais marcante foi nos Bombeiros, a cuja Direção presidiu durante 24 anos.

Aos 76 anos, José Ramoa mantém o olhar atento e muito vivo e o espírito crítico de sempre. Passa grande parte do tempo em casa, mostrando a Casa-Museu a quem a pretende visitar e organizando documentos. Neste momento tem em mãos a preparação de uma edição de 232 poemas de Vasco de Lima Couto musicados em fados e canções ou declamados: Amália, Carlos do Carmo, João Braga, Max, Frei Hermano da Câmara são apenas alguns dos que cantaram esses poemas.

De vez em quando vai a Braga, a sua raiz, onde tinha as saias da mãe. Mas volta sempre a Constância. Não é de lá nem de cá o Zé Brasileiro. É português do Mundo.

É ribatejano. De Salvaterra, onde nasceu e cresceu. Da Chamusca onde foi professor de História durante mais de 30 anos. Da Golegã, onde vive há quase outros tantos. E de Constância, a que vem dedicando, há não menos tempo, a sua atenção e o seu trabalho, nas áreas da história, da cultura, do património, do turismo, da memória de Camões, da comunicação, da divulgação, da promoção. É o criador do epíteto Constância, Vila Poema, lançado em 1990 e que o tempo consagrou.
Escreve no mediotejo.net na primeira quarta-feira de cada mês.

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