Fundada a 1 de julho de 1901, a SAT é conhecida com a Catedral da Cultura em Tramagal. Foto: mediotejo.net

Numa altura em que Tramagal era ainda uma pequena aldeia metalúrgica, a meio do ano de 1901, nasceu nas indústrias Duarte Ferreira aquela que viria a ser a Sociedade Artística Tramagalense (SAT), a Catedral da Cultura como é carinhosamente conhecida. Passados 120 anos, repletos de história e cultura, a SAT continua a marcar presença na vila e na vida dos tramagalenses. A data redonda é comemorada com uma cerimónia simbólica e um concerto.

“120 anos… é muito tempo”, começa por assinalar Manuel Grácio, atual presidente da direção da SAT, ao mediotejo.net. Afinal, ainda faltavam nove anos para que Portugal deixasse de ser uma monarquia, 13 para que se desse o início da Primeira Guerra Mundial e 16 para que três pastorinhos de Fátima relatassem o testemunho de um milagre, e já a SAT dava os primeiros passos com a sua banda filarmónica.

Atualmente, a SAT conta com um grupo de teatro, um coro, uma escola de música e, criada recentemente, uma secção de aeromodelismo. É também nesta Catedral da Cultura – assim apelidada nos anos 70 por Manuel Tomás, jornalista que colaborava com rádios na zona e igualmente responsável por apelidar Tramagal de Vila Convívio – que está sediada a JOST (Jovem Orquestra Sinfónica do Tejo), desde 2017, e a Tagus Big Band, que surgiu no período pandémico.

Na sua listagem atual podem ser contabilizados 1203 sócios, número que irá ver-se reduzido através do levantamento e remoção de todos aqueles que entretanto já faleceram e dos que, com base nos estatutos e por não pagarem as quotas (por um período superior a um ano), perdem igualmente o seu estatuto de sócio.

Embora com alguns períodos “menos bons”, como entre os anos 1908 e 1916 ou logo a seguir à novidade do 25 de abril, a Sociedade Artística Tramagalense nunca esteve propriamente fechada. Em 120 anos de histórias para contar é normal que alguns períodos mais conturbados ditem um certo amortecimento da sua dinâmica e vivência, tal como acontece atualmente derivado da situação pandémica, em que desde março 2020 se têm feito apenas alguns ensaios e espetáculos. “Mas fechada em definitivo, isso nunca esteve. Mal ou bem, foi sempre funcionando”, sublinha Manuel Grácio.

SAT assinalou 120 anos de atividade contínua em Tramagal a 1 de julho de 2021. Foto: mediotejo.net

A génese daquela que é uma das mais antigas associações do concelho de Abrantes, essa não muda. “Tudo tem altos e baixos”, diz o presidente da direção, “mas esta casa sempre esteve vocacionada para o povo, e é importante que continue assim”.

Sala de espetáculos da SAT.

Afinal de contas, a SAT foi também ela feita pelo povo: “Em 1951-52, foi criada uma comissão pró-sede. Uns deram um ou dois escudos, outros deram o trabalho, deram o que puderam. Vinham para aqui trabalhar ao fim de semana – que era só ao domingo, pois ao sábado também se trabalhava – e foi assim que se fez grande parte do que aqui se vê e do que não se vê (o telhado)”.

O mesmo aconteceu com o portão exterior do palco de espetáculos, que permite a existência de duas bocas de cena (uma para o interior e outra para o exterior mediante a abertura do portão), o qual foi feito por trabalhadores aos domingos, responsáveis por cortar, furar e cravar as chapas que ainda hoje, e desde os anos 50, dão forma ao portão.

“Isto foi feito pelo povo e portanto a génese da Sociedade é mesmo a de ser uma Catedral da Cultura e uma casa do e para o povo, para toda a gente”, diz o presidente da direção.

Para celebrar os 120 anos de fundação, na manhã desta quinta-feira, dia 1 de julho, decorreu o içar da bandeira com o hino da sociedade – o qual já não era ouvido na SAT há mais de 20 anos e que foi agora gravado – e uma cerimónia simbólica e protocolar com a entrega de cinco medalhas, tal como acontece todos os anos, aos sócios mais antigos com as quotas em dia. Seguiu-se um bolo e porto de honra. No sábado, dia 3 julho, às 21:30, igualmente inserido nas celebrações dos 120 anos, realiza-se o concerto com Joana Cota.

Quanto ao futuro da coletividade, o dirigente associativo mostra-se um pouco apreensivo pois “isto dá trabalho e as pessoas não se querem preocupar com isto, a juventude também tem outros interesses e portanto não sei mesmo o que vai acontecer no curto-médio prazo, o futuro o dirá”, prontificando-se a dizer presente, em conjunto com os colegas, para tentarem fazer o melhor possível “enquanto puder e enquanto o quiserem”.

E objetivos a perseguir não faltam. Basta questionar o presidente da direção sobre objetivos futuros, e o semblante apreensivo desfaz-se num olhar sonhador que percorre o interior do edifício. À margem de se querer manter o que já é realizado – o grupo de teatro, o coro e a escola de música (neste caso até pensando-se numa ampliação) – substituir o velho telhado geral do edifício, que ainda é de fibrocimento, é a grande empreitada.

Mas há mais. Dotar a sala de espetáculos de uma plateia fixa, substituir todas as janelas, que são antiquadas e energeticamente pouco rentáveis, reparar as caleiras do telhado, as quais revelam problemas em dias de chuva abundante e colocar uma nova porta principal no edifício, são outras metas que se querem atingir, com o intuito de “dar outro conforto e dignidade à coletividade”, pois “é uma casa com muita história, é preciso dignificá-la”.

Fundada a 1 de julho de 1901, a SAT é conhecida com a Catedral da Cultura em Tramagal. Foto: mediotejo.net

O levantamento e tratamento, através de digitalização, de todo o enorme espólio da Sociedade – que só a nível de partituras é muito significativo – é também um objetivo que está na mira. Mas já se sabe, só se movem mundos com fundos, tal como em 2019 só se conseguiu substituir a parte de cima do teto do palco, denominada teia, através do financiamento do ProDer (Programa de Desenvolvimento Rural).

“Se não for com estes apoios, nós não temos dinheiro para fazer este género de intervenções, é preciso irmos arranjando meios para conseguir manter a casa aberta, com condições de segurança e onde as pessoas se sintam bem, e nós queremos sempre o melhor, dentro do possível, para o dar aos nossos sócios e a toda a massa envolvente. Merecem que nós demos o nosso melhor, mas também é preciso apoios”, diz Manuel Grácio.

Aliás, o dirigente associativo não tem dúvidas de que a SAT estaria fechada, se não fosse o apoio da sociedade local, da Junta de Freguesia do Tramagal e da Câmara Municipal de Abrantes, principalmente através da linha de apoio FinAbrantes, criada pelo município e que visa apoiar o movimento associativo do concelho abrantino.

“Nem sempre foi fácil e continua a não ser, nem para mim nem para todos os outros antes. Estas associações não têm dinheiro. O único rendimento que têm é a quotização, algo que hoje tem muito pouca expressão, até porque a maior parte dos sócios não pagam as quotas. Felizmente a Câmara de Abrantes criou uma linha de apoios, o FinAbrantes, onde concorremos à medida de apoio Cultura e Eventos, e em que se não fossem esses apoios, isto estaria fechado pois não haveria dinheiro nem para pagar a luz”. 

“Não havendo espetáculos onde vamos buscar dinheiro para pagar nem que seja só as contas da água e da luz?”, questiona.

Manuel Grácio, atual presidente da direção da SAT.

Para Manuel Grácio, a casa que hoje representa tem para si um significado especial. Começou por fazer parte do grupo de teatro nos anos 50 e representou pela primeira vez em 1958, tinha 12 anos. Hoje tem 75. Foi também ali que conheceu a sua esposa.

A sua mensagem para os sócios e para a população em geral, neste dia simbólico que marca uma data redonda, é simples: “Venham à coletividade, paguem as quotas, venham aos espetáculos. Ficamos muito satisfeitos com a vinda das pessoas, pois estamos a trabalhar e assim vemos que o nosso esforço está a ser compreendido pelos outros, pois não é fácil estar à frente disto. Ajudem-nos. Entrem e digam olá, nós já ficamos contentes. Venham até à SAT, a SAT merece e faz 120 anos dia 1 de julho. Parabéns à SAT”.

Um pouco de história…

No dia 1 de julho de 1901 foi criada a Sociedade Artística Tramagalense, à data designada por União Fabril, pois o seu nascimento deve-se aos trabalhadores António Cordeiro, Álvaro Manana, Manuel e José Rodrigues Ferreira Calado, aos quais se juntaram as gentes da fundição Duarte Ferreira, que saíram às ruas do Tramagal no dia 1 de maio de 1901, celebrando e tocando o hino alusivo à data. Logo foi solicitado a Eduardo Duarte Ferreira que considerasse o dia feriado e foi-lhe sugerida a criação de uma banda de música. A pedido e a sugestão foram aceites pelo reconhecido e grande benemérito de Tramagal e daí a dois meses, no dia 1 de julho de 1901, era fundada a banda filarmónica, a qual se manteve em funcionamento até 1974.

Em Galveias, Eduardo Duarte Ferreira adquiriu instrumentos em segunda mão, os quais já se encontravam distribuídos entre os elementos da banda em novembro, e mandou igualmente fazer mobiliário, tudo a expensas suas. Na altura ainda não existia uma sede própria, pelo que os ensaios se realizavam numa sala da fundição. No mês de janeiro do ano seguinte, em 1902, decorreu a primeira atuação pública com o tocar dos reis.

No 1º de maio de 1903 estreou-se o primeiro fardamento, de fazenda azul, cujo importe ficou a cargo de Duarte Ferreira e o restante pelos grados da terra, ao mesmo tempo que se inaugurou o primeiro estandarte, oferecido por Manuel Vicente de Jesus, em seda e bordado a ouro pela sua filha Elvira. Foi também em 1903 que se estrearam as atividades cénicas, com a vinda do pároco Manuel Brás Rosa para o Tramagal.

Sempre em crescendo, e sob o olhar do fundador Duarte Ferreira, a banda começou inclusive a ser chamada para fora da terra, até que em 1908 se dá um amortecimento na sua atividade, que perdura até 1916, altura em que é reorganizada sob o nome de Grémio Musical Tramagalense.

Foi já sob esta nova designação que se formou o cargo diretorial, do qual fizeram parte os filhos do fundador, Joaquim Ferreira e Eduardo Duarte Ferreira. Foi numa direção de Joaquim Ferreira que, em 1922, foi construído um coreto, que veio posteriormente a ser demolido na década de 60.

Em 1944, a sociedade, por motivos de disposições oficiais, passou a designar-se Sociedade Artística Tramagalense, nome que se mantém até aos dias de hoje.

A Sociedade organizou um rancho folclórico e um grupo coral, e durante muitos anos pelos santos populares, manteve as tradicionais marchas populares. Com o seu contínuo desenvolvimento, avivava-se o sonho da construção de uma sede própria, e foi inclusive formada uma comissão pró-sede, para se dedicar à sua realização.

Surgiu uma oportunidade de compra da propriedade onde estava instalada a sede e, em colaboração com a Metalúrgica Duarte Ferreira, chegou-se à sua compra pelo valor de 150 mil escudos (cerca de 748 euros). Procedeu-se a uma solicitação à massa associativa de um empréstimo inter-sócios, que teve algum êxito, e à elaboração do projeto para remodelação do edifício, realizado gratuitamente pelo arquiteto Adelino César Costa. Só a estrutura principal foi construída por trabalhadores contratados, tendo o resto sido feito gratuitamente por grupos de sócios, na construção que decorreu nos anos 50.

Com os tempos conturbados que se seguiram ao 25 de abril, entre 1974 e 1976, a Sociedade passou por alguma inatividade, até que em 1976 um grupo de jovens retomou as rédeas do seu destino e impulsionou novamente a coletividade.

Em 1990 todos os terrenos e edifícios foram legalizados para o nome da SAT, sendo que antes vigoravam em nome da Metalúrgica Duarte Ferreira. Desde o ano de 1993 que a SAT é detentora do estatuto de utilidade pública.

Fonte: Revista comemorativa dos 100 anos da Sociedade Artística Tramagalense

Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Jornalismo. Natural de Praia do Ribatejo, Vila Nova da Barquinha, mas com raízes e ligações beirãs, adora a escrita e o jornalismo.

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