Foi ontem apresentado o livro “Metalúrgica Duarte Ferreira 1879-1997 | Uma história em constante metamorfose, uma edição da Câmara Municipal de Abrantes, nas comemorações do 1º de Maio, no Tramagal. Foi um dia especial, com centenas e centenas de pessoas na rua, festejando o 1º de Maio “à moda antiga”, ou seja, começando o dia a oferecer flores a Eduardo Duarte Ferreira e depois seguindo a banda pelas ruas até à fábrica que se tornou numa das maiores do país, criada a partir de uma pequena forja, em 1879.
O 1º de Maio celebra-se no Tramagal desde 1901, sendo talvez a única terra que o fez sempre em liberdade, mesmo durante o Estado Novo. Aqui o dia era uma festa partilhada entre operários e patrões. Ontem, o edifício dos antigos escritórios da fábrica, congelado em silêncio há mais de 20 anos, abriu de novo as portas, agora como Museu MDF. O momento foi testemunhado por cerca de mil pessoas, entre elas mais de 50 membros da família Duarte Ferreira (netos, bisnetos, trinetos, tetranetos…) Um sonho de muitos anos que foi finalmente concretizado, com a união de tantos esforços e vontades, e com a perseverança de uma equipa extraordinária, de que me orgulho de ter feito parte.
Parafraseando o fundador da Metalúrgica Duarte Ferreira, “foi comprida a minha estrada”, até chegar aqui. Depois de escrever a biografia “Nas Asas de uma Borboleta”, em 2006 (Edição Página Seguinte/Câmara Municipal de Abrantes), prossegui com a recolha de material sobre a história da fábrica por entender que se impunha a sua publicação, para memória futura.
No decurso da investigação para a escrita deste livro tive o apoio de uma equipa incansável que me ajudou a descobrir dados fundamentais em arquivos, bibliotecas e, também, a recolher alguns testemunhos. Foi crucial a entrega e o entusiasmo do Mário Rui Fonseca, recuperando informação no antigo sindicato dos metalúrgicos e nas casas de tantos antigos trabalhadores; a pesquisa excepcional, junto dos meios militares, feita por Henrique Botequilha; a capacidade de “mergulhar” nos arquivos da Liliana Monteiro, da Margarida Serôdio e da Mia Alberti.
Da história da MDF – um sonho em forma de borboleta que transformou primeiro um homem, depois os milhares que ali trabalharam e a aldeia rural onde nasceu num dos pólos industriais mais modernos do país -, todos podemos retirar grandes lições de vida.
Para montar a sua primeira forja, em 1879, Eduardo Duarte Ferreira passou 36 dias a enganar o estômago com pão duro e uns queijos que levara de casa, e a dormir a um canto da Antiga Fundição do Ouro, no Porto, para aprender mais sobre o ofício. Quando voltou a casa, imundo e esfomeado, aos 22 anos, comprou uma caldeira velha, transformou-a em forno de fundição e, por tentativa e erro, foi conseguindo pequenas vitórias, breves minutos de glória que compensavam as horas exposto ao calor do ferro. O esforço era tal que os seus olhos inflamados já não suportavam a luz do sol. Era habitual desfalecer de cansaço ou dormir os domingos inteiros, sem acordar sequer para comer.
Durante anos, ninguém acreditava nas capacidades de Duarte Ferreira ou no potencial do que queria desenvolver. Ele nunca desistiu.
Entre o dia em que ergueu a sua forja, em 1879, e a data da extinção da Metalúrgica Duarte Ferreira, em 1997, passaram 118 anos. Muitos dos edifícios onde a marca da borboleta fez história, e onde chegaram a trabalhar mais de 2 000 operários, estão hoje vazios. Outros ganharam nova vida, albergando as empresas Futrifer e Futrimetal, do Grupo Diorama, de Joaquim Dias Amaro – ele próprio um produto da formação de excelência fomentada na Metalúrgica, onde começou a trabalhar aos 14 anos, e que recentemente cedeu parte das instalações (os antigos escritórios) para albergar o Museu MDF, tendo doado também o Campo de Futebol ao Tramagal Sport União. Outra parte das instalações está ocupada pela empresa gerida por Joaquim Cruz Martins, que continua a usar a sigla MDF, na área da fundição, e na antiga linha de montagem da Berliet, de onde saíram milhares de camiões para a linha da frente da guerra no Ultramar, constroem-se camiões da Mitsubishi Fuso, sob a gestão de Jorge Rosa, outro quadro formado na MDF, pertencendo hoje esta unidade industrial à empresa alemã Daimler.
Para lá da obra edificada, das máquinas agrícolas, lagares, noras, pás de turbinas, peças de automóvel, navios e camiões que ali ganharam vida, ficará sobretudo o legado do fundador Duarte Ferreira: a sua enorme determinação e o seu espírito empreendedor, numa época em que a palavra ainda nem sequer entrara no nosso vocabulário.
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In “Metalúrgica Duarte Ferreira 1879-1997 | Uma história em constante metamorfose”, de Patrícia Fonseca, 198 pág., €10, edição da Câmara Municipal de Abrantes (2017). À venda no Museu MDF, no Tramagal, e na Biblioteca Municipal e no Welcome Center, em Abrantes.
| Excertos |
[1958]
Aquele chão já dera uvas – ou, pelo menos, assim pensavam os mais jovens engenheiros que chegavam àqueles pavilhões industriais rodeados de vinhas, entre eles Rui Duarte Ferreira, acabado de se formar no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. O neto mais velho do fundador da empresa entendia que os tempos exigiam a diversificação do negócio, até aí concentrado nas máquinas agrícolas. Mas antes de poder fazer o que quer que fosse, teria de conhecer primeiro todos os cantos da empresa.
“Os meus primos [Mário, Fernando e Octávio] já estavam lá há seis anos, depois de terem acabado os cursos em Inglaterra, mas não intervinham nada. O meu pai fez-me o mesmo que fazia a todos. Comecei por baixo. Mandou-me arrumar revistas. Tínhamos uma biblioteca técnica bestial e foi muito bom para mim. Por sorte, o engenheiro Matos Silveira, que era do curso anterior ao meu, foi recrutado nessa altura. Como ele ainda era solteiro, estudávamos todas as noites. E no dia seguinte íamos ter com o Isidro, à Fundição, para perceber na prática como poderíamos introduzir inovações. Consegui, apesar de ter muito pouca experiência, fazer coisas muito interessantes. Na altura, Salazar tinha criado o Plano de Fomento, para ‘dar ferramentas para desenvolver a indústria portuguesa’. Eu e o Matos Silveira metemos na cabeça que iríamos conseguir concorrer para fornecer as pás directrizes de uma barragem (são as pás que controlam o caudal). Só que cada pá daquelas pesa 1,2 toneladas, e é tudo em aço. Concorremos contra fundições francesas e contra a CUF. No processo de fundição, o ferro fundido tem problemas de dilatação, decorrente da temperatura, e, com o arrefecimento e com a mudança de estado, para a solidificação, dá-se uma grande contracção. Se não se fizer nada, a peça fica com buracos nos últimos sítios a arrefecer. Como é que se evita isto? Dirigindo o arrefecimento, com metal líquido, e usando a pressão atmosférica, com um gito (uma espécie de bomba com vários metros de altura, com areia no seu interior). Tirávamos o hidrogénio do metal líquido usando uma bomba de oxigénio. Ninguém fazia isto na Metalúrgica. Usando os meus conhecimentos teóricos e a experiência do Isidro, fizemos as pás directrizes, que até gamagrafia tinham de levar. Cumprimos todas as exigências do concurso e ficámos apurados para o teste final, com a CUF. A última experiência, no final de tudo, era levantarem a pá directriz a 5 metros de altura e… zás! Deixá-la cair no chão. A primeira foi a da CUF. Partiu-se! A nossa nada, bum, catrapum, impecável! Assim ganhámos o concurso das pás directrizes, que ainda representava algum dinheiro para a empresa. Mas mais importante do que isso, senti que ganhava prestígio na Metalúrgica. Não me viam só como ‘o filho do patrão’. Depois disso fui várias vezes à Alemanha, participar em congressos, comprar material e ver como é que as fundições trabalhavam lá. Aprendi muito a ver fazer, embora a fundição não tenha muito que saber: mete-se aço para dar aço. Mas o aço com menos carbono é um aço mais caro. Nós comprávamos a sucata mais cara para fazer o aço mais caro. Mas com aquele processo do oxigénio, que queima tudo, geríamos a fusão, púnhamos os componentes que queríamos e fazíamos um aço melhor, com sucata mais barata. Conseguimos uma grande poupança e passámos a fazer aço que até a Volvo aceitava. Foi muito importante. Sem esse salto de qualidade nunca teríamos avançado para a construção de automóveis. A fundição que encontrei não tinha capacidade. Era uma fundição para máquinas agrícolas, nada mais.”
(…)
Rui Duarte Ferreira dava os primeiros passos na MDF quando Joaquim Dias Amaro pedalava com todas as suas forças entre a casa dos pais, no Pego, e a Metalúrgica do Tramagal, em busca de uma oportunidade. À porta existia um moderno parqueamento para bicicletas desenhado pelo arquiteto Keil do Amaral e ele, com todo o deslumbramento que se pode ter no olhar aos 14 anos, largou entusiasmado as suas duas rodas ao lado das centenas que debruavam os gigantes pavilhões industriais e, com outros 70 candidatos, entrou no imenso refeitório da empresa, onde se realizavam os exames de admissão. Não poderia imaginar que, mais tarde, haveria de ter nesse mesmo local a sua própria empresa – ou melhor, uma das suas empresas. Aquele momento viria a determinar todo o seu futuro.
Foi-lhe atribuída a 5ª melhor nota dos exames de admissão, o que lhe abriu imediatamente as portas do escritório principal, para onde eram encaminhados os melhores 10 alunos de cada ano.
(…)
[após a desintervenção do Estado, em dezembro de 1979, Carlos Duarte Ferreira recorda]
“Caiu o Governo da AD, veio o “Bloco Central”, o Dr. Ernâni Lopes como Ministro das Finanças a obrigar todos a apertar o cinto, o FMI a dar ordens. Começou nessa altura em Portugal o fenómeno dos salários em atraso e a Metalúrgica não foi exceção. Não conseguimos pagar o subsídio de férias de 1983 e a situação na empresa nunca mais foi a mesma.”
(…) “Sabe o que é um patrão chegar, ver os funcionários a trabalhar, olhá-los nos olhos e lembrar-se que lhes deve dinheiro? O que é ver pessoas que contraíram empréstimos e não os podem pagar porque não recebem ordenados por inteiro? O que é ir a uma loja no Tramagal e olhar para as mulheres dos trabalhadores que já estão a dever a conta do mês passado e nos observam com rancor? O que é acordar a meio da noite a imaginar soluções, procurar falar com os políticos com serenidade, não os sacudindo pelos ombros a dizer acorde, veja, perceba, resolva?
A agonia da MDF foi longa. Dou grande valor aos trabalhadores que, em circunstâncias muito adversas, continuaram a trabalhar e lutaram para que a empresa sobrevivesse. Houve enormes movimentações dos trabalhadores para chamar a atenção do Governo (linhas de caminho de ferro cortadas simbolicamente, marchas a pé do Tramagal até Lisboa, etc.) que tiveram naturalmente grande repercussão na comunicação social. Eu habituei-me a prestar declarações para a rádio e para a televisão e, vistas as coisas a esta distância, acho que, apesar de grandes momentos de tensão, a administração, a comissão de trabalhadores e os sindicatos convergiram em muitas ocasiões para salvar a MDF.”
A derradeira oportunidade para recuperar a MDF dependia do apoio da banca e, munido dos dossiers que propunham a reestruturação e detalhavam as apostas das novas empresas a constituir, Carlos Duarte Ferreira abordou Almerindo Marques, presidente do maior credor da empresa, o banco Fonsecas e Burnay.
No final de fevereiro de 1987, o banco informava que só continuaria a apoiar a Metalúrgica se Carlos Duarte Ferreira apresentasse a sua demissão de Presidente do Conselho de Administração, sendo substituído por uma “figura nacional” com créditos firmados na gestão, e que seria eleita pelos acionistas.
(…) Dias Amaro não era uma “figura nacional” de gestão, como Almerindo Marques inicialmente exigira, mas Carlos Duarte Ferreira, bem como a Comissão Administrativa, entendiam que ele tinha condições e conhecimentos únicos para presidir à empresa, que estava à beira do colapso.
“Pediu-me para pensar, apresentou um documento escrito clarificando situações, que eu achei correto”, recorda Duarte Ferreira. “O Dr. Almerindo Marques achou bem, os acionistas também (não é por acaso que os indico por esta ordem, a situação era esta) e combinei com o Presidente de Mesa da Assembleia-geral, o Dr. Mário Pais de Sousa, a marcação duma reunião extraordinária da Assembleia-geral para se formalizar a minha demissão, a qual teve lugar em setembro de 1987.”
Carlos Duarte Ferreira saiu do edifício da Administração, no Tramagal, como que anestesiado. Aquele mesmo edifício tinha sido a casa da sua família, até 1964. A sala de reuniões onde decorrera a Assembleia-Geral fora, noutros tempos, a sala de estar da casa dos seus pais. Ficou a cirandar pelo exterior, recordando o sítio onde aprendera a andar de baloiço, onde tinha o seu carro de corridas imaginárias, feito de sucata, o pátio onde tanto brincara com os seus irmãos. Foi a sua irmã Maria Rosa que lhe interrompeu os pensamentos, abraçando-se a ele a chorar.
“Naquele momento, senti que se tinha erguido uma parede de gelo que me separava de vez do Tramagal”, confessa. “Tal como José Cardoso Pires relata no seu livro ‘De Profundis, Valsa Lenta’, sobre o que sentiu quando teve um acidente vascular cerebral, também eu sentia uma ausência de mim próprio, um afastamento de toda a minha vida passada, a rutura definitiva com o Tramagal, e tudo o que ele representava, tudo à volta parecia frio. Foi uma sensação muito diferente da que tinha sentido quando o Estado intervencionou a empresa. Nessa altura, fui brutalmente impedido de entrar no que era meu; agora ausentava-me, pelo meu pé, definitivamente, de modo frio, cinzento, formal, com atas, papéis e assinaturas. Tudo estava no seu sítio. A casa, as pessoas, as cadeiras, as janelas, a luz, a vista do jardim. Eu é que estava a mais, era o intruso que devia sair. Já não pertencia àquele lugar.”