Luís Grilo, uma vida no rio e um ano sem lampreia. Foto: mediotejo.net

“Não tenho memória de uma coisa assim. Já há muitos anos que não acontecia não apanhar nada e que não haja nenhuma lampreia praticamente no Tejo. Sempre houve muita lampreia, algumas vezes havia menos, mas sempre aparecia alguma, e agora não. Não aparece nada”, afirmou, tendo sugerido um ‘defeso’ com proibição de pesca para ver se a lampreia recupera.

VIDEO/ENTREVISTA COM LUÍS GRILO, PESCADOR EM TRAMAGAL:

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mediotejo.net – Luís Grilo tem 67 anos e desde sempre esteve ligado ao Rio Tejo, aliás, nasceu num bairro de pescadores, no Porto da Barca, em Tramagal. Tem memória de haver tão pouca lampreia no Tejo?

Luís Grilo – Não, não tenho memória nenhuma. Já há muitos anos que não acontecia… que não haja nenhuma lampreia praticamente no Tejo. Há anos que eu me lembro, sempre houve muita lampreia, algumas vezes havia menos, mas sempre aparecia alguma e agora não. Não aparece nada.

Ainda não apanhou nenhuma, portanto, este ano?

Nada, nada. Nem eu, nem… que eu me lembre, os pescadores aqui da zona, ninguém apanhou. Aqui nesta zona do Tramagal.

O que é que pode estar relacionado com a falta de lampreia no Tejo?

Nos últimos anos tem sempre escasseado, cada vez há menos, cada vez há menos e este ano não há nada. Eu penso que é a apanha excessiva. Apanham muita lampreia na altura que há, não a deixam desovar e depois é os corvos-marinhos, é o siluro (ou peixe gato), são os outros peixes que comem as ovas na criação da lampreia. Isto chegou a certo ponto em que não há nada. É como a enguia, também não há nada e antes havia milhares, milhares de enguias. A enguia está proibida de pescar no Tejo.

É uma situação que pode melhorar para o ano?

Conforme. Penso eu, conforme. Eles dizem que é de 7 em 7 anos, quando elas desovam, 6/7 anos é quando elas vêm. Se nessa altura houve muita desova, pode ser que para o ano apareça mais lampreia.

Os restaurantes e os apreciadores de lampreia vão perguntando aos pescadores por ela?

Sim, perguntam. Sempre, têm perguntado pela lampreia e eu digo “não há nada”. Eu só tenho de dizer é “não há nada”, quando apanhar logo se vê.

E se houver, estão dispostos a pagar preços proibitivos...

Sim, à volta de 50/60€, por cada uma. Mesmo conforme o tamanho, mesmo que sejam pequenas, eles querem é comer. É verdade.

Há tradição, pelo menos consta-se, que a lampreia no Tejo tem outro sabor do que as importadas, de França ou de outros países e que a que sobe o Tejo, a que está mais a montante… estamos no Tramagal, mas as que estão na Ortiga, perto da barragem de Belver, será o ponto mais a montante do Tejo, até à barragem de Belver, que serão as melhores, as mais saborosas. Tem razão de ser?

Sim, eu acho que sim. Porque a lampreia, desde que venha lá de baixo, vai sendo batida aí pelas pedras, no cascalho e quanto mais para cima, mais saborosa é. É como a saboga e o sável, quanto mais para cima, mais saborosa é, por ser batida no cascalho.

Luís Grilo tem uma vida dedicada ao Tejo. Foto: mediotejo.net

Já que fala na saboga e no sável, como é que estamos nesta época de migração?

Sável há pouco ou nenhum. Acho que só um [pescador] é que apanhou um sável. E a saboga ainda é um bocadinho cedo, é lá mais para meados de abril, maio, que é o mês da saboga. Pode ser que apareça, pode ser que não apareça.

Foi uma vida dedicada ao Tejo, nasceu aqui no Porto da Barca. Foi aqui, por aqui?

Sim, foi ali ao pé daqueles mosqueteiros.

E como é que foi a sua infância. Os seus pais era pescadores, viviam do rio?

Sim, sempre viveram do rio, o meu pai. Sempre, até uma certa idade, quando se empregou ali na hidráulica também, já velho. Já tinha 55 anos quando se empregou ali. O resto viveu sempre do Tejo e deu para criar os filhos, fazer uma casa e criar os filhos. Eu admiro o meu pai, porque o meu pai sempre viveu da pesca mais a minha mãe. A minha mãe foi uma vida inteira doente, de bronquite e conseguiram do peixe juntar dinheiro para fazer uma casa.

E passou a sua infância aqui junto ao rio e também a ajudar na pesca?

Ia ajudar o meu pai, quando podia. Já depois, mais de idade, a minha mãe não podia. Quem ia à pesca era eu ou a minha irmã. Os outros não iam, ia eu. Noites perdidas… mas gostava de andar no Tejo, gostava muito de andar à pesca com o meu pai, dentro do barco.

E chegavam a dormir no barco?

Dormíamos e acordávamos… dormíamos um bocadinho, íamos à noite, jantávamos dentro do barco. Quando se chegava lá para a uma, duas, o meu pai chamava-me, começávamos a pescar lá de cima, ou lá de baixo, que era para onde a gente ia, até chegar ao porto [do Grilo]. Naquelas noites frias, de gelo, um gajo tinha que bater os braços para aquecer as mãos e às vezes até levávamos uma braseira dentro do barco para aquecer os pés e as mãos. Muito frio e muito nevoeiro.

Rio Tejo, em Tramagal, no Porto da Barca. Abril de 2023. Foto: mediotejo.net

Uma tradição de uma família avieira?

Sim, os avieiros sempre viveram… vieram lá de baixo da Vieira para aqui e viveram una vida inteira no Tejo. A família praticamente inteira do meu pai e da minha mãe, todos eram pescadores, todos.

E nunca viu nada parecido como o rio está hoje, em termos de água e de peixe?

Nunca, nunca vi o Tejo como ele está agora. É só pedras, todo seco. Também podia ter sido de os gajos tirarem areia, mas não, eu acho que é a falta de água. Falta de água e não chove. Vá lá que ele agora vai um bocadito mais limpinho. Houve uma altura que ele ia mesmo preto preto, por causa daquela zona, daquela coisa que aconteceu lá em Vila Velha. Não, agora já vai um bocadinho mais limpinho. Antes, quando andava o meu pai e a minha mãe nos barcos, bebíamos água do Tejo. Bebíamos e não fazia mal nenhum. É verdade, ainda me lembro dessas cenas.

Conhece o Tejo como a palma das suas mãos?

Sim, conheço o Tejo desde lá de cima, da Barragem de Belver, até Vila Franca. Já fiz esse percurso de barco, lá de cima, a fazer perfis no Tejo, até Vila Franca.

Hoje não é navegável?

Não, há certas zonas que é muito difícil de navegar.

Até porque depois há a irregularidade dos caudais. Ora está em baixo, ora está em cima…

Sim, é verdade. Pode estar muito cheio e vazar de repente. É verdade. É muito difícil uma pessoa agora que não conheça pelo menos o Tejo, tem que ter muito cuidado, pelo menos nas cascalheiras.

Luís Grilo, uma vida no rio e um ano sem lampreia. Foto: mediotejo.net

E como é que era antes aqui o Tejo?

O Tejo batia borda a borda. Lembro-me dos barcos das fábricas estarem aqui em cima, não sei se se lembra. Dos barcos do povo que trabalhava na Metalúrgica [MDF] estarem aqui em cima, para passarem para aquele lado. Agora não, nota-se 15/20 metros para lá e é só pedras. Alguma vez a gente via aqui pedras? Não se via pedras nenhumas, nada. Era só água.

Água e fartura de peixe?

Água e fartura de peixe, muito peixe, muito Barbo, boga… a boga também acabou no Tejo, não há bogas. Saboga, Sável, ainda me lembro de ter os meus 10/11 anos e os pescadores juntavam-se naquela praia daquele lado para pescar à varina. A gente éramos pequenitos e gostávamos. Eles largavam a rede e começávamos todos a puxar a rede e vinha lá uma carrada de sável grande e todo o tipo de peixe. Agora nada disso acontece.

E a lampreia também vinha na rede? Mas curiosamente, naquela altura, pouca gente apreciava?

Sim, naquela altura não apreciavam lampreia. O meu pai apanhava carrada delas e atirava-as para dentro de água, porque ninguém as queria. Ninguém as queria, para que é que ele levava aquilo para casa? Até diziam que tinha a veia venenosa dentro dela que não se podia comer. O meu pai atirava aquilo tudo para dentro de água. Só havia duas pessoas que compravam lampreia ao meu pai, que eram dois sargentos da tropa ali de Santa Margarida. Mais nada, ninguém comprava. Ninguém gostava de lampreia, a partir daí, depois do 25 de abril… ainda havia, nessa altura havia bastante lampreia, a partir daí é que ela começou a evoluir para as pessoas comerem. Em restaurantes começaram a apreciar um bom petisco, um prato de ricos e passaram a ser vendidas mais caras. Este ano não há nada, só de Espanha ou de França é que eles podem comer alguma lampreia, essas pessoas que gostam de lampreia. Já não há aquela excursão ali para Belver, do comboio, vinham lá de baixo de Lisboa para irem comer. Este ano não têm hipótese, não há nada.

Casas de pescadores junto ao rio, em Tramagal. Foto: mediotejo.net

Luís Grilo, uma vida dedicada ao Tejo, depois de nascer aqui no Porto da Barca e de ajudar os seus pais na faina, o seu trabalho foi também ligado ao rio, na antiga hidráulica- ARH Tejo, na vigilância e controlo da atividade desenvolvida, poluição e etc. Hojede que sente mais saudades? E, se pudesse pedir um desejo, qual era?

Saudades da pesca de noite com o meu pai e com a minha mãe, andar dentro do barco a pescar. Tenho muita saudade disso. Eu e de juntarmos a família dos pescadores… o casamento dos pescadores era uma semana, era pior que os ciganos. A malta juntava-se toda, a família toda. Eram os ciganos do ria. Juntavam-se e estávamos aquela semana toda ali juntos, era uma grande festa. Tenho muitas saudades desse tempo e de andar no Tejo, de pescar. Sempre adorei andar no Tejo à pesca. Gostava que o Tejo voltasse a ser como antigamente, bastante água, bastante peixe… hoje em dia já não há pescadores, há meia dúzia deles que vivem do Tejo, o resto ninguém vive. E que o Tejo trouxesse peixe com fartura e menos poluição. Muitas vezes aparece poluição, muita poluição.

Há alguma solução, no seu entender, que se possa aplicar para resolver estes problemas?

Acho que sim… as fábricas, as descargas que fazem nessas fábricas ali para cima, a montante… eles hoje em dia já fazem muita coisa, mas mesmo assim, às escondidas largam muita coisa para dentro do Tejo. De noite, e quando as pessoas não estão lá, largam muita porcaria.

Tem a ver com a qualidade da água e em termos da quantidade e da oscilação dos caudais?

O problema é Espanha, eles é que mandam no Tejo. Eles acho que também não têm água nenhuma lá para o sul. Por causa disso é que o Tejo está assim ultimamente, não enche. Parece que estão a tirá-la para o sul, não a mandam para o Tejo, é natural. Se calhar eles têm as barragens lá por cima da gente, só a largam quando querem. Como é que a gente há-de fazer? Eles agora fala-se em trazer do Cabril para o Tejo, fala-se nisso, mas o Zêzere também não tem muita água, tem pouca. Eu conheço o Zêzere também até lá acima à nascente. Fiz aquele trabalho todo também até lá acima. O Zêzere, o Tejo, o da Barragem da Pracana, que é o Ocreza, também fazia essas recolhas lá de cima, onde ele nasce, até ali à Pracana.

Na falta de lampreia, o prato favorito, Luís Grilo aponta a umas bogas fritas. Se as houver. Foto: mediotejo.net

Se pudesse agora escolher um prato de peixe para o seu almoço, qual é aquele que mais gosta, mais saboroso no seu entender?

Agora nesta altura era a lampreia. Lá em casa toda a gente gosta de lampreia. Já quando o meu pai fazia, toda a gente também comia lampreia. Não há, não se come este ano.

E, na falta de lampreia, qual é a opção?

A opção é outros peixes, peixes do rio, barbo… olhe, umas bogas fritas. Maravilhoso. Nunca mais comi uma boga, feitas pelo meu pai. Fritinhas, aquilo era uma maravilha. Não há nada, não se come. Come-se barbo, barbo há muito, mas não são pequenos, o barbo que anda aí é tudo grande, por causa do peixe gato e dos corvos marinhos, comem tudo. Os corvos marinhos dão cabo de tudo também.

A experiência de trabalho nas rádios locais despertaram-no para a importância do exercício de um jornalismo de proximidade, qual espírito irrequieto que se apazigua ao dar voz às histórias das gentes, a dar conta dos seus receios e derrotas, mas também das suas alegrias e vitórias. A vida tem outro sentido a ver e a perguntar, a querer saber, ouvir e informar, levando o microfone até ao último habitante da aldeia que resiste.

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