Igreja do Crucifixo. Foto: mediotejo.net

Tramagal celebra 30 anos de Elevação a Vila. Quando nasci já esta Vila o era há pouco mais de um ano. Fui desafiada a falar da minha terra, o lugar onde cresci, onde vivo e constituí família. Aceitei e espero não defraudar ninguém.

Não vou falar-vos do Tramagal. Mas vou falar-vos de um lugar que também é Tramagal. É um pequeno lugar. Pequeno em tamanho e em número de pessoas, mas um lugar grande em memórias, afetos, valores e união.

Esse lugar é o Crucifixo. Sou “carina”. Sou da “ilha”. Sou crucifixense. Sou tramagalense e sou também abrantina. Sou a soma de todas estas realidades e das suas vivências.

Sempre nos habituámos a que nos chamassem “índios” ou “ilhéus” e isso desperta em nós sentimentos ambivalentes. Se por um lado nos sentimos renegados, por outro sentimo-nos orgulhosos.

Estas designações devem-se ao facto de este povoado estar rodeado de um mar verde de árvores. Nunca estivemos isolados. São poucas centenas de metros que nos separam da Vila e sede de Freguesia de Tramagal, mas de facto somos algo sui generis.

Coelheira

Antigamente as animosidades eram muitas. Lembro-me bem de a minha avó contar as peripécias que aconteciam nos bailes ou nos jogos de futebol, em que os rapazes de Tramagal e de outras terras das redondezas, mas claro, principalmente de Tramagal, vinham catrapiscar as raparigas e eram corridos de cá à pedrada e vice-versa. Longe vão esses tempos de inimizades que nunca o foram verdadeiramente.

Todos temos muito orgulho em ser carinos. Este é um dos nossos apelidos e não sei bem de onde surgiu ou que significa… Não é nada depreciativo para nós e usamo-lo com vaidade.

Esta minha terra tem apenas uma associação – a Sociedade União Crucifixense (SUC). É ela que promove os festejos anuais pelos quais sempre ansiava em criança e que ainda hoje são motivo de euforia e aguardados com expectativa por toda a população. É esta associação que também teima, felizmente, em não deixar morrer algumas das nossas tradições culturais. O teatro (geralmente comédias ou revistas, que a malta de cá é danada para a brincadeira e tristezas não pagam dívidas); o torneio de chinquilho; o baile da velha (em que toda a comunidade se empenha em doar bens que irão constituir o corpo da velha que será leiloada mais tarde com direito a crianças carpideiras e testamento satírico com a realidade política nacional e local e com algumas figuras ilustres e peculiares da terra – quais cantigas de escárnio e mal dizer – e cuja receita é muito importante para o quotidiano da SUC); o torneio de futebol salão inter-ruas (em que jovens rapazes e raparigas se organizam por ruas e disputam uns divertidos mas sérios jogos de bola!); noites de fados; entre outras atividades mais antigas ou mais modernas. Nem sempre é fácil e muitas vezes é invisível o trabalho que as direções põem ao serviço da população por pura carolice e dedicação às suas raízes, por isso considero muito importante ressalvar e valorizar esta associação que conta já com 71 anos de existência. Bem-haja a todos!

Contudo, no Crucifixo sempre houve uma união que nos fez e faz fazer coisas. Sempre gostámos muito de conviver e de nos divertir. Com coisas simples, mas que eram e continuam a ser verdadeiros acontecimentos para todos nós.

Lembro-me, por exemplo, das noites dos Santos Populares, em que em muitas ruas se acendiam fogueiras com rosmaninho apanhado no mato pelos mais jovens e que davam lugar a pequenas grandes festas de rua. Cada um dava o que podia para o petisco, colocava-se o rádio ou a aparelhagem na rua e dançava-se, brincava-se, convivia-se e saltava-se à fogueira noite dentro.

Lembro-me também dos passeios da descida da Ribeira de Alcolobre, promovidos só para homens inicialmente, mas que depois foram emancipados por mulheres. Logo depois fazia-se a festa da despedida do Verão, também na Ribeira.

Ribeira de Alcolobre que é a menina dos nossos olhos e que recentemente nos foi devolvida, fruto do trabalho de limpeza das suas margens levado a cabo pela (nossa) Junta de Freguesia de Tramagal.

Alcolobre sempre alimentou o imaginário coletivo e estou convencida que a ideia de mouros e princesas encantadas, potes de ouro ou de maldições, de certo modo moldou a nossa maneira de ser enquanto comunidade. Somos unidos. Somos aventureiros. Somos sonhadores. Somos boa gente.

Outro acontecimento anual é o convívio dos “Solteiros/Casados” que recentemente teve o acrescento de “Solteiros/Casados e Outros” porque não gostamos de deixar ninguém de fora. Há o habitual torneio de futebol no ringue da SUC pela manhã e depois festa rija tarde fora. As mulheres também tiveram direito ao seu convívio, mas infelizmente este durou menos tempo, há alguns anos que não se faz… Infelizmente algumas destas tradições foram-se perdendo ao longo dos anos, mas outras surgiram ou hão-de surgir.

E obviamente que não somos só festa! Sempre que necessário unimo-nos e metemos mãos ao trabalho.

Foi assim que foi feita a casa mortuária. Com muito apoio e empenho dos crucifixenses, quer em mão de obra, quer em contribuições monetárias. A própria SUC foi feita com apoio e suor de carinos.

O relógio da torre da nossa humilde igreja, devota a Nª Sra. da Conceição, é também disso exemplo. Uma vitória para todos nós, pois foi algo que demorou algum tempo, mas com o empenho de toda a população lá se conseguiu arranjar o dinheiro necessário para comprar o relógio. Hoje todos regozijamos com as suas badaladas.

Nós queremos. Nós unimo-nos. Nós conseguimos.

E sempre que algum concidadão necessita de algum apoio ou socorro, nós cá estamos uns para os outros. Foi assim por exemplo nos terríveis incêndios de 2003. Isto de ser uma ilha verde não é lá muito favorável quando existem psicopatas que resolvem pegar fogo a um país inteiro. O inferno que foi esse verão… Os bombeiros não tinham mãos a medir e a verdade é que foi muito graças à população que algumas casas ou bens não arderam. Muitas pessoas deixaram as suas próprias casas por considerarem que estavam mais seguras e foram em socorro de outros em maior perigo. Também somos altruístas!

Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas não vêm ao caso, por se preservar a vida privada.

Infelizmente, também nos faz doer o coração esta nossa adorada aldeia. Muitas veze sentimos-nos isolados numa verdadeira ilha… Não seria correto da minha parte, ainda que acredite ou saiba que tudo se resolverá em breve, só falar de coisas boas.

Muito nos custa, amargamente, vermos vazio o local onde outrora gerações brincaram, se divertiram, sentiram o primeiro amor, deram o primeiro beijo, fumaram o primeiro cigarro às escondidas (tudo faz parte do crescimento) – o jardim e parque infantil. Hoje é um local vazio e silencioso. Uma ferida aberta no meio do nosso lugar e que, quer queiramos quer não, todos os dias vemos, por todos os dias por ele passarmos.

Muito nos custa, literalmente, percorrer a estrada principal que liga este belo lugar à Vila e ao resto do mundo. Está velha, gasta e acidentada.

Todavia, parece que para isto há “luz ao fundo do túnel”. O poder local parece querer dizer-nos que somos tramagalenses e abrantinos e não se esqueceram de nós. Nós e as gerações vindouras agradeceremos.

Mais nos custa ainda o silêncio ensurdecedor que vem das nossas escolas… O jardim de infância e a escola primária, de 4 salas, antes cheias de alunos que descobriam todo um “admirável mundo novo”, que davam os primeiros passos de cidadania e moldavam as suas personalidades e identidades são agora (e ao que parece para sempre), apenas lugares de memória. Vazios de risos, de sons, de ensinamentos e aprendizagens, de descobertas, de pessoas…

Pessoas. As pessoas são na verdade a nossa maior riqueza. São elas o nosso maior potencial. É de pessoas que se fazem as nossas memórias e são elas que nos fazem identificar com o lugar onde nascemos e ou vivemos. É das pessoas que surge o sentimento de pertença, é através delas que se perpetua memória por tempos e gerações que hão-de vir e é por elas que se constrói o futuro.

O futuro do Crucifixo, do também nosso (crucifixenses) Tramagal e da também nossa Abrantes, faz-se connosco, por nós e para nós. Todos e cada um de nós, enquanto comunidade ou indivíduo, tem o seu papel no desenrolar da nossa História, do nosso futuro individual e coletivo.

Eu sou carina. Sou tramagalense. Sou abrantina. E tenho muito orgulho nisso!

Museóloga da Câmara Municipal de Abrantes

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