Pedro Barroso foi feito em Riachos, nasceu em 1950, e, aos 69 anos, é uma das míticas vozes da música de contestação do período do 25 de abril. Quase meio século volvido após a revolução dos cravos, retirado do meio mediático e com a saúde a declinar, permanecem em Pedro Barroso as canções com história e as memórias daquele tempo em que se levou a arma da cantiga às massas isoladas e sem instrução. Este sábado, Pedro Barroso assinala 50 anos de trovador no Teatro Virgínia, em Torres Novas, o mesmo palco que o abraçou aos 25 anos de carreira.

Colega de Zeca Afonso e de tantos outros que o acompanharam, resistiu à mudança dos tempos e de mentalidades, ao declínio da música ligeira e dos versos com subtexto em prol da superficialidade do espetáculo. A viver em Riachos, Torres Novas, Pedro Barroso tem mantido os concertos e a edição de discos, tendo inclusive publicado um livro de memórias. Reconhece-se, porém, no crepúsculo da vida.

*Entrevista realizada em abril de 2018, republicada em dezembro de 2019

O encontro não durou muito mais que uma hora. Agendas preenchidas de ambos os lados não inibiram porém as palavras, as memórias e uma narrativa tão preenchida que dificilmente caberia em meia dúzia de parágrafos. Pedro Barroso não assistiu à revolução de abril, viveu-a. Não com armas, tanques e fardas de camuflado, em terras africanas ou avenidas lisboetas, mas com a guitarra, o piano, a voz, desbravando um país esquecido e ensinando através da música o que era a liberdade.

Talvez por isso se tenha também apagado quando explodiu o showbusiness, onde as prioridades nem sempre são a música e as letras que o acompanham. O percurso de Pedro Barroso e o momento em que se encontra lembram a dado instante os versos de uma velha música de Simon & Garfunkel, “The Sound of Silence”. Dizendo olá à escuridão para uma conversa íntima, pois as palavras perdem-se entre as multidões que falam sem comunicar, ouvem sem escutar, escrevendo canções que ninguém ousa partilhar. Sussurrando apenas os sons do silêncio.

Pedro Barroso com Zeca Afonso, nas campanhas culturais do MFA. Foto: Arquivo Pedro Barroso

Em Pedro Barroso não há silêncio. Conforme afirmava na música, “cantarei, cantarei, à chuva, ao sol, ao vento, ao mar”. Gosta de lembrar a juventude, os nomes, as músicas, as guerras. Alguma inconsciência que ditava a força da sua geração para lutar através da música, numa aventura que, para ele, começou no ecrã da televisão. “A história já é muito grande”, salienta quando se fala em “entrevista de vida”, com muitos episódios para contar.

“Tudo muda”, constata, evidenciando que frequentemente a sabedoria chega quando se começam a perder as capacidades físicas ou psicológicas.

Em Pedro Barroso não há silêncio. E a cantiga “será sempre” uma arma

Nasceu em Lisboa em 1950, António Pedro da Silva Chora Barroso, filho de um professor que dá hoje nome à EB 2/3 em Riachos, próximo da casa onde hoje vive. “Fui feito aqui ao lado”, constata, mas “fui nascer a Lisboa porque havia mais condições” sanitárias.

Os pais, ambos professores, “foram essenciais na minha educação”, sobretudo o pai por ser “permanentemente professor”.

Pedro Barroso lembra que mesmo as férias grandes eram uma oportunidade de adquirir conhecimento, com o pai a transformar qualquer visita a um local histórico numa lição.

“Nós estávamos a aprender a sociologia, a economia, a história, a aritmética, a geografia”, com os pormenores das viagens em família. “Ora ter um pai assim é evidente que nos desperta para os privilégios do conhecimento e para as vicissitudes”.

Em 2019 Pedro Barroso completa 50 anos de carreira. A sua estreia foi no programa da RTP Zip Zip Foto: Arquivo Pedro Barroso

A infância é vivida em Lisboa, para onde o pai é transferido, com longas passagens por Riachos, sobretudo nas férias. Pensou seguir Direito, mas, antevendo já estar na lista da PIDE, optou por uma carreira na Educação Física, que equacionou ser mais útil em caso de ter que procurar trabalho na Europa. O pai não gostou, recorda, tendo até deixado de lhe falar alguns meses.

Pedro Barroso tirou posteriormente uma pós-graduação em psicoterapia comportamental (“procurei entender o outro lado do eu”), tendo sido professor durante mais de 20 anos, até ter condições de se dedicar apenas à música.

O interesse pela música teve início em criança, mas desenvolveu-se já na idade adulta, com um esforço pessoal por aprender e desenvolver as suas aptidões. A carreira musical começou antes da revolução, no palco do programa da RTP “Zip Zip”.

“Eu fazia canções desde os meus 14 anos, comecei até por fazer em francês”, recorda, tendo surgido a oportunidade dos “baladeiros – chamavam-nos baladeiros na altura porque consideravam tudo como baladas” irem ao programa.

Os seus temas eram de intervenção, salienta, tendo chegado a ter problemas com a letra de algumas músicas. Não obstante, a primavera marcelista foi permitindo que muitas canções passassem os limites da censura. E é com orgulho que Pedro Barroso sabe-se elemento integrante da geração da revolução.

Afinal, a revolução foi também preparada pela opinião, pela poesia, pelos discos lançados, sublinha.

“Foi essa geração. Tivemos a coragem que tivemos, sabe-se lá como. Um pouco inconscientes, digamos assim, éramos uma geração muito jovem, que lutávamos pelo multipartidarismo, que hoje para nós é tão simples”, recorda. “Tenho um orgulho muito grande de ter pertencido a essa geração”.

Pedro Barroso esteve envolvido nas campanhas de dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas (MFA). “Chegávamos a sítios onde nunca tinham visto um microfone, em que não havia eletricidade”, e onde por vezes o pagamento era a refeição.

“Isto foi uma militância para lá de todas as militâncias”, constata, uma militância pela cultura, espontânea, realizada pelas e em prol das populações locais. “Estivemos lá”, frisa, um facto histórico que não pode ser negado.

Na memória do cantor ficaram assim os abraços e as dúvidas daquele tempo, questionando-se pelo futuro de Portugal. “Íamos explicar às pessoas a luta pelo multipartidarismo, a luta pela liberdade”, pelo fim do analfabetismo e da ditadura. “Todos esses abraços são a memória maior que levo desta vida”.

Pedro Barroso esteve envolvido nas campanhas de dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas. Na memória do cantor ficaram os abraços e as dúvidas daquele tempo, questionando-se pelo futuro de Portugal. “Íamos explicar às pessoas a luta pelo multipartidarismo, a luta pela liberdade”, pelo fim do analfabetismo e da ditadura. “Todos esses abraços são a memória maior que levo desta vida”

Lembra Zeca Afonso, Carlos Paredes, Ary dos Santos, Mário Viegas, António Macedo e muitos outros que o acompanharam. Um dia, confessa, pretende deixar escritas todas as “historietas” desse tempo.

“Custa-me muito relembrar os que já partiram, como é evidente, mas estão presentes”, salienta. “Nós fizemos coisas para estádios por causas”, nunca para enriquecimento pessoal. “Quantas vezes fui cantar para a ajudar à ambulância dos bombeiros…”

Há alguns anos que se debate com um problema oncológico, sobre o qual não tem qualquer receio em falar. Reconhece que reflete sobre a efemeridade da vida.

“Quando somos jovens estamos convencidos da nossa eternidade. Não há horizonte, é planetário. Nunca vamos acabar, vamos ter sempre o tempo todo do mundo. E ao mesmo tempo saber que não temos todo o tempo do mundo catalisa-nos para uma seleção de prioridades, que é útil. Com a idade aprendemos a aligeirar a carga dos inúteis”, observa.

“Quando somos jovens estamos convencidos da nossa eternidade. Nunca vamos acabar, vamos ter sempre o tempo todo do mundo”

A notícia da doença foi recebida de forma abrupta, recorda. “É a bofetada maior que qualquer pessoa pode receber.” Tem sido uma luta, nem sempre com as melhores notícias. “É uma corrida que espero que seja de longa duração”, afirma, mas “nunca sabemos”. A música, a pintura, o “lado criativo” têm sido o seu refúgio, levando-o novamente aos concertos e à arte e fazendo-o sentir que “valeu a pena”.

Pedro Barroso fez 450 canções ao longo da vida – talvez mais… – contabiliza. A criatividade, reflete, vem da junção da “interioridade” com as diversas “circunstâncias”.

A música “Menina dos Olhos de Água”, por exemplo, nasceu de uma pescaria no Tejo, debaixo da ponte da Chamusca, que não estava a correr bem. O “Cantarei” já existia, tendo sido lançado logo depois da revolução de abril. Tem uma música dedicada ao Salgueiro Maia, outra dedicada à neta.

“Há pequenas emoções, pequenos gestos, pequenas realidades tiradas da nossa circunstância que um autor processa de forma diferente”, constata.

Por tal, a cantiga “será sempre” uma arma. Mesmo tendo desaparecido dos meios mediáticos, as suas músicas, menos populares e mais filosóficas, continuam a encher salas. O poema musicado “Agora nunca é tarde”, cantado numa atuação ao vivo no teatro Rivoli, tornou-se recentemente viral nas redes sociais.

“As pessoas revêem-se naquilo de forma extraordinária”, constata, reconhecendo que ficou surpreendido com o número de visualizações que o tema, com seis minutos, alcançou (148.758, a 20 de dezembro de 2019).

Tem dois filhos, um professor universitário na Austrália. O outro é Nuno Barroso, que também seguiu a carreira musical. “Está a descobrir agora que é difícil viver da música”, dá conta. “Ele foi o responsável pela criação dos Além Mar, fez tudo o que os Além Mar tiveram de grandes êxitos. Era a voz, o porta-voz, o solista, o compositor”, recorda, vivendo ainda hoje da nostalgia dessas canções.

“É um enorme pianista, um enorme compositor, tem uma grande facilidade de composição e sobretudo de interpretação, porque ele teve escola de música, como eu próprio se calhar não tive. E tenho um orgulho muito grande que ele obviamente siga uma carreira, só que é muito difícil” o mundo atual do pop-rock.

Constata que para um artista também é necessário saber “seduzir”, mas tem que ser pela “densidade” do que se consegue transmitir às pessoas, não pelo físico. “Tem que ser pelo valor intrínseco” da criação, não pela embalagem. “Importante, importante mesmo é o recado que trazemos”.

A sofrer de uma doença oncológica, Pedro Barroso admite que se tem refugiado na música Foto: mediotejo.net

A terminar, questionamos como gostaria de ser lembrado. Pedro Barroso, que este ano 2019 completa 50 anos de carreira, ri-se. Anteriormente já lembrara que em meio século se faz muita asneira, mas também coisas bonitas. Sobre Deus, constatara que estivera já em coma 15 dias, mas que tal não afetara as suas crenças. A sua religiosidade “é profundamente interior, mas não está registada em nenhum dos catálogos existentes por aí”.

“Espero que me lembrem pelas coisas profundas e sérias e poeticamente mais perfeitas que fiz”, comenta, reconhecendo o receio de que a memória se agarre apenas a partes avulsas da sua obra. “A obra é sempre muito mais importante que o autor. A obra fica. A obra é que é importante”.

“Espero que me lembrem pelas coisas profundas e sérias e poeticamente mais perfeitas que fiz. A obra é sempre muito mais importante que o autor. A obra fica.”

E é um Teatro Virgínia completamente esgotado que celebrará a sua obra, este sábado,21 de dezembro, a partir das 21:30. Neste concerto recordará alguns dos seus maiores êxitos, entre tantas canções criadas ao longo de uma vida cheia. E também não faltarão convidados e amigos. Uma noite para lembrar em festa tantos anos dedicados à música e às palavras. Uma noite também, decerto, para viver muitas emoções.

A escolha do local para fazer esta celebração não podia ser outra: “Daqui sempre saí e aqui voltei. Esta é a minha terra. Aqui pertenço.”

Cláudia Gameiro

Cláudia Gameiro, 32 anos, há nove a tentar entender o mundo com o olhar de jornalista. Navegando entre dois distritos, sempre com Fátima no horizonte, à descoberta de novos lugares. Não lhe peçam que fale, desenrasca-se melhor na escrita

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