No terreno desde novembro de 2021, o Projeto EVA – Equipa para uma Vida Ativa, promovido pela Câmara de Torres Novas em parceria com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS LVT), já visitou até ao momento 277 pessoas com mais de 70 anos, nomeadamente utentes sem médico de família. O foco são idosos com problemas cardiovasculares e nestes dois meses já foram detetados casos preocupantes de hipermedicação devido ao facto de, na ausência de médico de família, os utentes socorrerem-se de diferentes médicos no privado. Há ainda um especial cuidado deste projeto para combater os efeitos psicológicos da solidão e do isolamento propiciado pela pandemia.
A Dona Glória está preocupada. A ver terminarem as receitas de vários medicamentos, e depois de socorrer-se de outros recursos, vê com preocupação a falta de médico de família na sua localidade, em Parceiros de São João, na União de Freguesias de Brogueira, Parceiros de Igreja e Alcorochel.
Neste caso até existe médico atribuído à extensão de saúde local, mas a profissional de saúde encontra-se de baixa médica devido a problemas de saúde e não sabem quando poderá regressar. O marido, Manuel Correia, está a recuperar de uma hospitalização e toma bastantes medicamentos. O casal não tem filhos e passa boa parte dos seus dias sozinho, na companhia um do outro.

A visitar pela segunda vez o casal, a enfermeira Patrícia Batista, do Projeto EVA, quer saber como têm vivido os seus dias. Algumas perguntas iniciais procuram identificar sinais graves de sentimentos de solidão e isolamento que possam estar a afetar a saúde mental e física dos idosos, questionando-se se têm uma rede de suporte e amigos com quem conversar.
Glória e Manuel vão respondendo que “sim” às perguntas, mas explorando um pouco mais o seu quotidiano percebe-se que pouco convivem, têm poucos familiares e contactam sobretudo com um ou outro vizinho. Muitas conversas são por telefone, constata a Dona Glória, enquanto o Senhor Manuel é que tende a sair mais à rua. Televisão só vêem ao fim do dia, poucas horas, e não têm internet. Glória ainda faz algumas caminhadas, mas Manuel nem por isso.
A visita do Projeto EVA anima a tarde. A enfermeira Patrícia comenta com o mediotejo.net que a equipa médica é, no geral, bem recebida, embora em algumas situações haja reticências em abrir a porta devido a receios com estranhos.
A passagem por estas casas tem ajudado a despistar um conjunto de problemas gerados quer pela pandemia, quer pela falta de médicos, no concelho torrejano. Um deles, como salientou a profissional, é a duplicação de medicação. Sem médico de família e socorrendo-se de vários médicos no privado, em consultas pontuais que não conseguem explorar de maneira adequada o historial clínico e as condições de vida do utente, há uma tendência para tornar a prescrever a mesma medicação em formatos divergentes, que o paciente não consegue distinguir, o que pode provocar problemas graves de saúde.

No decorrer da visita, a enfermeira Patrícia constata inclusive que o senhor Manuel não está a responder à medicação receitada, com suspeitas que se estará a esquecer de tomar algum medicamento. A tensão de ambos os idosos está alta e não têm feito registos das últimas medições. A profissional deixa alguns conselhos e alerta para cuidados a ter no dia a dia.
Não é objetivo do Projeto EVA substituir os médicos de família, frisa a enfermeira, mas servir de complemento, com um apoio direto ao domicílio que pode identificar vários outros problemas que escapam às consultas em consultório e direcionar quem efetivamente precise de ser observado. Pode-se ainda analisar com mais rapidez casos que estejam a necessitar da ativação dos apoios sociais.
A falta de médicos de família são as principais queixas dos utentes, constata, uma vez que traz implicações para a renovação de receituário. Há ainda queixas com carência de transportes públicos.
As pessoas “estão mais sós, não saem por motivos de precaução” devido à pandemia e a equipa “é bem recebida”, cumprindo todos os protocolos de prevenção, frisa a enfermeira. Das 277 pessoas já visitadas só 55 tinham análises recentes, o que demonstra a importância destas visitas. “Gostaríamos de ajudar mais as pessoas”, admite.
Este projeto “é muito importante porque permite localizar as pessoas mais idosas e vulneráveis e trazê-las aos cuidados de saúde primários”, comenta a diretora executiva do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Médio Tejo, Diana Leiria.
Conforme reconhece a responsável, a saúde encontra-se sobrecarregada com a pandemia, pela além da carência de clínicos, o que permite ao Projeto EVA prestar um serviço complementar de grande relevância. Muitos utentes afastaram-se dos médicos com medo da infeção por covid-19, pelo que este serviço permite também recuperar casos cujo seguimento se tinha perdido.
Sobre a falta de médicos por toda a região, Diana Leiria constatou que “houve uma saída muito grande de médicos no nosso ACES, sobretudo por via da aposentação”, sendo que as novas “entradas não compensaram as saídas”. O problema é nacional, frisou, mas tem inibido o agrupamento de dar respostas a situações com a desta união de freguesias, onde a médica se encontra de baixa, por falta de recursos disponíveis. O Projeto EVA é portanto “uma ajuda” acrescida, reconheceu, neste tipo de cenário.
Já o presidente da Câmara de Torres Novas, Pedro Ferreira, mostra-se muito satisfeito com a concretização deste projeto piloto no seu território, direcionado para os cerca de 7 mil utentes acima dos 70 anos, muitos dos quais encontram-se sem médico de família. O desejo, frisou, é que o programa, resultado de um protocolo com a ARS LVT, possa continuar, mesmo com o município a continuar a suportar os 80 mil euros semestrais pela contratação dos recursos humanos que fazem estas visitas ao domicílio.

“Não está nas mãos dos autarcas as principais soluções”, frisou, mas o município aceitou a delegação de competências e quer renovar o Projeto EVA em 2022 e, se possível, a longo prazo.
“Este projeto não dá resposta a 100% como as pessoas querem”, admitiu o autarca, mas é a solução encontrada pelo município para um problema de carência de médicos que se sente a nível nacional, agravado pela situação pandémica. “Acho um projeto muito importante para a vida das pessoas, no meio rural sobretudo”, salientando que continuaria a ser relevante mesmo que todas as freguesias tivessem médico de família.
Pedro Ferreira considerou ainda que estas visitas são importantes para combater a solidão. No âmbito da Comunidade Intermunicipal Médio Tejo, o autarca adiantou que há pelo menos mais três municípios interessados em avançar também com um projeto semelhante, mas não avançou quais.
Na despedida, a Dona Glória ainda torna a frisar ao presidente da Câmara que, não obstante agradeça este programa de apoio ao domicílio, o problema mesmo é a falta de médico de família. Pedro Ferreira explica que esse é um problema de âmbito nacional, mas o município está fazer os possíveis para resolver a situação no concelho. A resposta não levanta grande entusiasmo. Manuel está doente e a esposa encara com alguma ansiedade a necessidade de ter que se deslocar a Riachos para ter uma consulta de medicina familiar.
A enfermeira Patrícia comenta que quer voltar para confirmar as estranhas medições de tensão, um pouco mais altas que ao que parece ser habitual. Ao sairmos, Glória e Manuel ficam, mais uma vez, sozinhos.