Pedro Barroso despediu-se dos palcos em dezembro de 2019, numa noite de grandes emoções. O espetáculo de 2020 em sua homenagem vai transmitido pela CM de Torres Novas. Foto: DR

Foram duas horas e meia de partilha de histórias mas sobretudo de canções que marcaram uma geração e continuam a ser uma referência na música portuguesa. Ao fim de 50 anos de carreira, o músico riachense Pedro Barroso despediu-se dos palcos num espetáculo memorável que decorreu no sábado num lotado Teatro Virgínia, em Torres Novas.

E não foi por acaso que os cerca de 600 lugares daquela sala de espetáculos já estavam esgotados um mês antes do concerto. Fragilizado pelo seu estado de saúde, Pedro Barroso rodeou-se de amigos e de um excelente naipe de músicos numa noite de emoções e recordações que ficará para a história.

Numa incrível coincidência cronológica, como realçou o músico de Riachos, este concerto de despedida aconteceu exatamente 50 anos depois da sua primeira apresentação pública, no mítico programa Zip-Zip da RTP, no Teatro Villaret, em Lisboa, a 21 de dezembro de 1969, também um sábado.

‘Viva quem Canta’ e ‘Cantarei’, dois dos temas mais conhecidos de Pedro Barroso, a par de ‘Pedra Filososal’ e ‘Canta, amigo canta’, foram os dois últimos que interpretou, com vários músicos amigos e toda a plateia a entoar os refrões, a que se seguiram longas salvas de palmas.

Ao fim de 50 anos de carreira, Pedro Barroso despediu-se dos palcos. Foto: mediotejo.net

O concerto começou com a introdução pelo radialista Armando Carvalhêda que fez as honras da casa e foi apresentando os temas de Pedro Barroso, contextualizando com histórias e aventuras partilhadas.

E o homenageado fez questão de convidar, para o acompanhar nalguns temas, Luciano Jesus e José Duarte, amigos de Pedro Barroso desde os 15 anos que, como músicos, o acompanharam nos primeiros tempos de carreira, incluindo naquela atuação há 50 anos no programa apresentado por Fialho Gouveia, Carlos Cruz e Raul Solnado.

Estávamos nos anos 60 e a censura fazia-se sentir de forma esmagadora. Num tema que escreveu sobre a guerra colonial, teve de alterar a letra para que pudesse ser interpretada publicamente: mina foi substituída por menina e matar por amar. Ou seja, como ironizou Pedro Barroso, uma canção sobre a guerra passou a ser uma canção de amor. Estas e muitas outras histórias foram sendo partilhadas ao longo das duas e meia que durou o concerto. O que deu jeito ao cantautor uma vez que, devido ao seu estado de saúde, se cansa facilmente e não consegue interpretar vários temas sem paragens.

Pedro Barroso despediu-se dos palcos em noite de grandes emoções em Torres Novas. Foto: DR

Mas o “vozeirão” de Pedro Barroso, esse mantém-se inalterável e marca a história da música portuguesa. Alguns dos depoimentos gravados pelos seus amigos e colegas que foram sendo transmitidos ao longo da noite apelavam para que nunca deixasse de cantar.

Os fadistas ribatejanos João Chora e Teresa Tapadas interpretaram alguns temas mais regionalistas escritos por Pedro Barroso, que orientava os instrumentistas como um maestro.

Mais uma pausa nas canções, uma historieta, uma mensagem política, e sobe ao palco Francisco Fanhais, outro músico de referência dos anos 70.

Na ausência de Manuel Freire, outro nome marcante entre os cantores de intervenção, Pedro Barroso interpretou a “Pedra Filosofal”, a que se seguiu o refrão de “Canta, amigo canta”, um tema de 1969 da autoria de António Macedo, músico já falecido e injustamente ignorado, como lamentou.

Neste autêntico “ir ao fundo da arca”, o cantautor assim o caracterizou, passaram ainda pelo palco o Choral Phydellius e um par do Rancho Folclórico de Riachos, que acompanharam alguns temas.

“Homem da música e da palavra”, Pedro Barroso cantou, tocou guitarra, tocou piano e recitou poemas. Partilhou o palco com os músicos Miguel Carreira (acordeão), Rodrigo Serrão (contrabaixo), David Zagalo (teclados), Luís Sá Pessoa e Susana Santos (violoncelo), Manuel Rocha (violino), Pedro Fragoso (guitarras, viola braguesa e piano) e Ricardo Parreira (guitarra portuguesa), Nuno Barroso (voz e piano) e António Laranjeira (voz), além dos nomes que referimos anteriormente.

No início do concerto, Pedro Barroso pediu a todos para que não se fizesse daquela noite “uma tristeza, mas sim uma festa” em ambiente descontraído.

“Se até o Phil Collins já entra em palco com uma bengala porque é que eu não hei-de fazer o mesmo?”, perguntou com ironia, brincando com o seu frágil estado de saúde.

Foi em apoteose e com longos aplausos de pé – depois de interpretar “Viva quem Canta” e “Cantarei” – que o concerto terminou, não sem antes receber vários ramos de flores e beijar a sua guitarra.

Foi por um rasgo de voz, de Pedro Barroso
(Longe d’aqui – 1990)

Foi por um rasgo de voz
Que um dia quis começar
Foi por um rasgo de voz
Que comecei a cantar

Era tão jovem tão jovem
E já tinha tanta idade
Queria-me explicar o mundo
Saber a fundo a verdade

E fui ardendo
E fui crescendo
Dentro de mim
Fui descobrindo
E fui sabendo

Foi por um rasgo de voz
Que mudei a minha vida
Das cordas de uma guitarra
Fiz uma pátria convivida

Foi por um rasgo de voz
De uma voz já sem idade
Que eu aprendi com o tempo
Indo ao fundo da cidade

E fui ardendo
E fui crescendo
Dentro de mim
Fui descobrindo
Lá fui sabendo

Foi por um rasgo de voz
Que comecei a brincar
Bebia o mundo com os olhos
E procurava alcançar

Mas quando pisava um palco
Julgava nascer de novo
Não estava ali por acaso
Sentia cá dentro um fogo

E fui ardendo
E fui crescendo
Dentro de mim
Fui descobrindo
Lá fui sabendo

Foi por um rasgo de voz
Coincidências de nada
Que troquei pompas discursos
Pelas guitarras na estrada

Foi por um rasgo de voz
E o mal foi começar
Que é na pátria da memória
Que esta voz se há-de acabar

José Gaio

Ganhou o “bichinho” do jornalismo quando, no início dos anos 80, começou a trabalhar como compositor numa tipografia em Tomar. Caractere a caractere, manualmente ou na velha Linotype, alinhavava palavras que davam corpo a jornais e livros. Desde então e em vários projetos esteve sempre ligado ao jornalismo, paixão que lhe corre nas veias.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *