O lema de vida de Maria Lamas "Sempre mais alto" dá nome à peça do grupo de teatro Pó da Terra. Foto: DR

O auditório da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes foi o local onde um estudante ávido de respostas se cruzou de forma inesperada com o tema da sua investigação, Maria Lamas, figura incontornável da cultura e política nacionais. O encontro aconteceu esta terça-feira, dia 6, durante a peça “Maria Lamas – Sempre Mais Alto”, e partilhou de forma simples a vida e a luta da torrejana que, segundo um dos netos, corre o risco de ser esquecida.

É Zeca Afonso que recebe o público pouco antes da música dar lugar ao silêncio no quarto escuro de um estudante ávido de respostas sobre o tema da sua investigação: Maria Lamas. Entre os papéis vasculhados à luz da lanterna surge a carta que esta escreveu à filha e na qual refere a misteriosa obra inédita que seria publicada 30 anos depois da sua morte e que continua desaparecida. A leitura solitária do investigador passa a recordação contada na primeira pessoa pelo objeto de estudo e o presente cruza-se com o passado.

Um encontro inesperado que o grupo de teatro Pó da Terra provocou no auditório da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes esta terça-feira com o espetáculo “Maria Lamas – Sempre Mais Alto”. A primeira produção da companhia criada em Sintra no ano passado teve estreia mundial a 24 de agosto no Yacaiste Festival, em Berlim, e subiu ao palco na terra natal da mulher que a inspirou no dia em que se assinalaram os 33 anos da sua morte.

O espetáculo realizou-se no auditório da esteve no auditório da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes. Fotos: mediotejo.net
O espetáculo realizou-se no auditório da esteve no auditório da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes. Fotos: mediotejo.net

O texto foi criado com base nas palavras da torrejana nascida em 1893 que, seguindo o lema de vida “sempre mais alto”, se destacou como escritora, tradutora, editora, jornalista e ativista política. A fidelidade das memórias interpretadas por Ana Estêvão e Diogo Gil Morgado foi assegurada pelo contributo do filho da filha mais velha de Maria Lamas, José Gabriel Pereira Bastos, para a criação da peça teatral.

O casamento aos 17 anos com o tenente Ribeiro da Fonseca, a passagem por Angola, o divórcio nove anos depois, o segundo matrimónio em 1920 com o jornalista Alfredo da Cunha Lamas e as três filhas marcaram a vida pessoal de Maria Lamas. As obras literárias de poesia, romance, contos infantis e etnologia e os artigos da Agência Americana de Notícias, d’A Capital, da Civilização e d’O Século marcaram os leitores. A luta pelos direitos das mulheres, pela paz e pela democracia marcaram gerações.

A vida de Maria Lamas é contada num cenário simples. Fotos: mediotejo.net
A vida de Maria Lamas é contada num cenário simples. Fotos: mediotejo.net

A história de vida da “Tia Filomena” que aconselhava as jovens através da revista Modas & Bordados e autora dos 15 fascículos mensais intitulados “As Mulheres do Meu País” cruza-se com a história de Portugal desde a monarquia à democracia, passando pela Primeira República e o Estado Novo. Esteve lá em cada momento, tal como no Maio de 68 em França, e não se limitou a assistir.

Tentou mudar o país e o mundo através do Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas, do Movimento de Unidade Democrática e em eventos icónicos como o Congresso Mundial da Paz em Ceilão, entre outros. Os valores em que acreditava levaram-na aos quatro cantos do mundo e às quatro paredes das celas quando foi presa pela PIDE. Defendeu as suas causas a partir do exílio, em Paris, e até ao último dia de vida, em Lisboa, no ano de 1983.

O exílio em Paris fez parte da vida desta torrejana. Fotos: mediotejo.net
O exílio em Paris fez parte da vida desta torrejana. Fotos: mediotejo.net

Uma vida longa e intensa contada num cenário simples e através de palavras simples que recordam esta figura proeminente cujo legado se arrisca a desaparecer. O alerta foi feito por José Gabriel Pereira Bastos, que assistiu ao espetáculo acompanhado pelo irmão e o filho. Segundo o neto de Maria Lamas, é comum que a memória coletiva sobre “escritores e militantes” se desvaneça com o passar dos anos, mas salienta o “descaso” por parte de entidades responsáveis como “o município”, “as organizações de mulheres” ou “os partidos políticos”.

Um exemplo apontado é a falta de resposta ao pedido de transladação do corpo de Maria Lamas para o Panteão Nacional, entregue pelo Movimento Democrático de Mulheres na Assembleia da República no dia em que se assinalaram os 30 anos da morte da torrejana, ou seja, há três anos. A causa para “ninguém falar nisso”, acusa, é o facto do monumento ser uma “casa de grandes homens, de machos” onde a inclusão de Amália Rodrigues e Sophia de Mello Breyner Andresen não atenuou o desequilíbrio.

Maria Lamas viveu a clausura do Estado Novo e a liberdade do 25 de Abril. Fotos: mediotejo.net
Maria Lamas viveu a clausura do Estado Novo e a liberdade do 25 de Abril. Fotos: mediotejo.net

José Gabriel Pereira Bastos diz que “se nada for feito agora”, o legado desta figura proeminente a nível nacional e internacional morrerá com os netos pois o tempo “apaga tudo se não lutarmos”. Entre os esforços desenvolvidos para contrariar o vaticínio são referidos a futura publicação da peça teatral a que assistimos esta terça-feira e da biografia de Maria Lamas pelo município, assim como o lançamento do primeiro volume da obra “O Diário Íntimo de Maria Lamas”, em março de 2017, com base no espólio referente aos anos de Torres Novas e Angola.

A publicação da biografia pelo município não foi confirmada por Elvira Sequeira, vereadora da Câmara Municipal de Torres Novas, que também esteve na plateia. A responsável pela Cultura na autarquia não colocou de parte este apoio “à família” de Maria Lamas e salientou a edição fac-similada de “A Lenda da Borboleta”, inédito escrito sob o pseudónimo “Rosa Silvestre” encontrado no espólio de uma das netas.

Elementos da família de Maria Lamas e da Câmara Municipal estiveram na plateia. Fotos: mediotejo.net
Familiares de Maria Lamas e elementos da Câmara Municipal estiveram na plateia e juntaram-se aos atores no final. Fotos: mediotejo.net

A obra foi lançada por ocasião da exposição comemorativa dos 120 anos do nascimento de Maria Lamas, “Sempre mais alto, Maria Lamas”, inaugurada na biblioteca municipal a 6 de outubro de 2013, e, segundo a vereadora – que assume uma “ligação muito forte” à escritora, tradutora, editora, jornalista e ativista política – está prevista uma criação de uma exposição temática que ficará patente na Assembleia da República no último trimestre de 2017.

Sónia Leitão

Nasceu em Vila Nova da Barquinha, fez os primeiros trabalhos jornalísticos antes de poder votar e nunca perdeu o gosto de escrever sobre a atualidade. Regressou ao Médio Tejo após uma década de vida em Lisboa. Gosta de ler, de conversas estimulantes (daquelas que duram noite dentro), de saborear paisagens e silêncios e do sorriso da filha quando acorda. Não gosta de palavras ocas, saltos altos e atestados de burrice.

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