A festa entrava-lhe pela casa a dentro. José Lúcio Mendes, meiaviense, sentia-a na pele e na alma. Vivia-a. E na memória, foi guardando os rostos, as estórias e a história daquele que era o grande acontecimento da terra. A Festa do Divino Espirito Santo da Meia Veia, no concelho de Torres Novas. A tão amada festa dos meiavienses. Foi desses, que bebeu o “sangue da festa”, foi a esses que recorreu quando sentiu necessidade de saber mais sobre as memórias da Meia Via.
José Lúcio fez entrevistas, pesquisou, coligiu fotografias antigas e foi juntando contos e pontos. Até que, chegou ao livro do Compromisso do Espírito Santo da Meia Via, datado de 1668 e transcreveu a relíquia “num português que todos percebessem”. Tarefa difícil, que o levou a passar muitas horas na Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, em Torres Novas.
Era preciso decifrar signos e interpretar “palavras usadas noutro tempo”. Grande parte, “conseguia lá chegar pela intuição”. Mas, nem sempre era assim.
“As letras têm configurações, são desenhadas, algumas frases não são completas e outras têm significados que só um especialista consegue perceber. A mim, passava-me adiante. Cheguei a pedir ajuda à doutora Margarida Trindade [diretora da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes], mas aquilo foi passando”. Até ao dia em que Paulo Renato Gregório – meiaviense, investigador e professor de História – o convidou para “fazer um livro a quatro mãos”, que acabaria por ser, afinal, “um livro a seis mãos”.


“Do divino, um compromisso e uma capela na Meia Via”, editado pela Câmara Municipal de Torres Novas, – no âmbito da programação cultural em rede “Em nome do Espírito Santo”, que envolveu os municípios de Alenquer, Torres Novas e Vagos – cruza as vivências e as emoções, com o rigor histórico e a análise documental. Uma obra com a coordenação científica de Paulo Renato Gregório, autor das fotografias mais recentes, que assumiu também a investigação e o texto, com a análise técnica de Joana Rosa e a transcrição paleográfica e fotografias antigas de José Lúcio Mendes.
O livro foi apresentado na Igreja da Meia Via, repleta de gente, no dia 21 de janeiro, ao final da tarde, em ambiente de festa e comoção. E a comunidade abraçou a obra.
“Muitos meiavienses, mas também muita gente que veio de fora”, constatou José Lúcio, revelando o seu estado de espírito: “Estou muito satisfeito. Era uma coisa que eu queria. Como se diz, se a gente não conhecer o nosso passado, o nosso presente pode ser realmente uma coisa amorfa, e o nosso futuro, sem memória, não será coisa boa. É preciso deixar a história escrita para conhecimento das próximas gerações, que já não vão vivenciar a festa como nós a vivenciámos. A festa entrava-me pela casa adentro. O meu pai era pessoa muito ligada a estas coisas, então, tudo quanto era preciso ele fazia. Às vezes, até dispensava a luz e a casa para acolher os artistas que vinham de fora. E eu, passava ali o tempo, a ver os homens a trabalhar, a irem à procura dos ramos de eucalipto, vivia aquilo e tomei-lhe o gosto. A Meia Via merece que se conte a sua história, merece este livro, merece tudo.”

Sobre a obra editada, Paulo Renato Gregório, o autor, explicou ao mediotejo.net que se trata de um livro “sobre o passado, sobre o presente e, que se espera, ser também sobre o futuro da Meia Via, no que diz respeito ao Espírito Santo e à Festa do Divino Espírito Santo”, da qual guarda bonitas memórias e que espera ver perdurar, não só por uma questão identitária, mas sobretudo, pela sua relevância histórica.
“A Festa acontece porque em 1668 um grupo de homens faz a Confraria do Divino Espírito Santo, que é ereta na Capela de Nossa Senhora de Monserrate. E estabelecem como é que vão viver os seus dias. Porque, a Confraria acaba por regular a vida das pessoas do ponto de vista religioso, cultural, económico e social. A festa em honra do Divino Espírito Santo é uma âncora a essa comunidade e é à volta dessa âncora, que é a Confraria e a Capela (demolida já no século XX), que a comunidade se organiza, que vai prosperando e chega ao que é hoje”, explica Paulo Renato.
“A Meia Via não tinha nenhum livro. Este é o livro de uma comunidade, é um livro identitário e isso é muito importante. As comunidades precisam de qualquer coisa que as agregue. Isso é muito importante, porque é isso que torna as comunidades mais fortes, é o conhecimento do seu passado. Para que percebam, que o presente tem uma raiz, e se querem caminhar para o futuro, têm de caminhar com as raízes que têm”.
E se este livro surge agora, a verdade é que em tempos, houve alguém que o vaticinou. “É uma história engraçada”, partilha Paulo Renato entre risos: “A coroa esteve em casa dos meus pais durante um ano, porque o meu pai foi juiz da Festa e os juízes ficam com o encargo de guardar a coroa desde o último dia da festa do ano anterior, até à entrega da coroa no ano seguinte. Eu achava a coroa interessantíssima e de vez em quando ia lá espreitá-la. Numa dessas vezes, pensei, ‘um dia, eu vou ter de escrever sobre a coroa’. E escrevi. Escrevi sobre a coroa e sobre o Divino Espírito Santo, numa composição livre para a disciplina de Português. E o professor, na altura, disse que aquilo dava um livro e que eu devia de escrever sobre o assunto. Ficou-me. E, realmente, 46 anos depois, acabou mesmo por dar um livro”.
Um livro para fixar a memória. Um livro para a comunidade. “Penso que a comunidade também precisa disto. A Meia Via não tinha nenhum livro. Este é o livro de uma comunidade, é um livro identitário e isso é muito importante. As comunidades precisam de qualquer coisa que as agregue. Este livro vai trazer memórias, vai fazer com que as pessoas conversem sobre ele. E isso vai fazer com que as memórias também se reavivem e que as pessoas revivam essas memórias. Isso é muito importante, porque é isso que torna as comunidades mais fortes, é o conhecimento do seu passado. Para que percebam, que o seu presente tem uma raiz, e se querem caminhar para o futuro, têm de caminhar com aquelas raízes que têm”.
“O livro fala sobre o Compromisso. Há uma caracterização do Compromisso nos diversos aspetos. Depois, tem uma recriação escrita da Capela de Nossa Senhora de Monserrate. Tem uma parte dedicada à Santíssima Trindade, que na Meia Via, uns chamavam Padre Eterno e outros chamavam Pai Santo. Uma escultura magnífica que está no Museu Municipal Carlos Reis e que vem regularmente à Igreja nas Festas do Divino Espírito Santo. E tem outra parte, sobre a toponímia da Meia Via, que tem sido muito debatida (Meia Via ou Espargal?). Então, levanto uma ponta do véu, sobre onde é que começaria a Meia Via. E o caminho vai-se fazendo entre o Espargal e a Meia Via, no mesmo espaço. Embora o Espargal, muito mais alargado geograficamente. Depois, tem a transcrição do documento, do Compromisso, feita pelo José Lúcio. Uma atualização para qualquer pessoa poder ler. Tem também a análise do fólio, feita pela Joana Rosa. Um trabalho excelente, espetacular mesmo. As letras de abertura, que ela salienta, e a forma como torna visível o desenho por detrás das capitulares, que quando se vê o livro não se nota, mas há aves, há animais, há pormenores de flores, de folhas, extremamente interessantes. E no fim, tem uma coisa muito importante, que é uma edição Fac-símile [cópia] do Compromisso, em condições de leitura”, sintetizou o autor.
A Joana Rosa coube a tarefa de olhar para o “Lado B” do livro. “Não é olhar para a informação que nos transmite através da sua leitura, mas sim enquanto objeto, que nós podemos ver até sem saber ler. O meu artigo fala sobre a caracterização física e química do livro. Coisas em que normalmente não pensamos quando estamos com um livro na mão, o livro enquanto objeto”, clarificou.
E sobre o livro objeto, a arquivista evidenciou: “É um livro completamente dentro da data em que foi criado, 1668. No entanto, através da sua análise, é possível ver que houve acrescentos ao mesmo, através das marcas de água, através do tipo de letra, que muda, e através da própria tinta utilizada na parte manuscrita. A encadernação, em princípio, não será a original, mas estará muito perto do original. A própria lombada permite-nos ver que, como teve acrescentos, está esticada. E por isso, conseguimos verificar que houve ali acrescentos e que a capa seria anterior aos acrescentos. É um livro do sec. XVII e é bastante importante, não só pela informação, mas por toda a caracterização física.”
A encerrar a sessão de apresentação do livro, Elvira Sequeira, vereadora da Cultura da CMTN, destacou o papel do Município na salvaguarda do património imaterial local e da memória coletiva: “Esta é uma memória que não se pode perder, também para a continuidade da festa. São mais de 350 anos deste culto, nesta terra, que fazem parte do desenvolvimento deste território.”