A população merece ter uma palavra a dizer sobre o destino a dar à antiga fábrica de Fiação e Tecidos e a Câmara Municipal (CMTN) deve avançar, o quanto antes, com um processo de auscultação pública. É o que advoga a Associação de Defesa do Património de Torres Novas (ADPTN), que no dia 7 de janeiro promoveu um debate sobre o património industrial e a importância da sua preservação para manter viva a memória coletiva das comunidades.
“Esta fábrica faz parte da vida e da memória de muitas famílias de Torres Novas. Muita gente trabalhou ali uma vida inteira. Foram essas pessoas que construíram aquele património. Por isso, merecem todo o respeito. E merecem ser ouvidas. Isso ficou muito claro neste encontro. O que se espera é que seja dado algum tempo para que as pessoas refletirem sobre o que precisam e sobre o que ali pode ser instalado. Importa trabalhar em conjunto com a Câmara Municipal num projeto coletivo e torná-lo sustentável do ponto de vista social e económico. No fundo, que seja um projeto, uma construção, que responda às necessidades da cidade e que a melhore. Com certeza que ninguém gostaria de ver a Câmara Municipal transformada numa verdadeira agência imobiliária e a vender aquele património às postas. Transformar aquilo num enorme investimento imobiliário parece-me a pior ideia para respeitar quem trabalhou na Fiação e Tecidos”, disse Ana Sofia Ligeiro ao mediotejo.net, à margem do encontro que juntou cerca de trinta pessoas na Galeria Maria Lamas, em Torres Novas.
“Com certeza que ninguém gostaria de ver a Câmara Municipal transformada numa verdadeira agência imobiliária e a vender aquele património às postas. Transformar aquilo num enorme investimento imobiliário parece-me a pior ideia para respeitar quem trabalhou na Fiação e Tecidos.”
Ana Sofia Ligeiro, presidente da ADPTN
O que a associação pretende saber, primeiramente, é que intenções existem por parte do Município quanto à gestão daquele empreendimento: “Aquilo que nós queremos saber tem a ver com a questão da herança do património, o que é relevante manter, como será feita a gestão do ponto de vista das infraestruturas e como será feita a questão ao nível da propriedade”, ou seja, “se vai haver ou não uma divisão daquela propriedade”, explicou Ana Sofia Ligeiro.

Recorde-se que aquando da aquisição daquele espaço histórico (31 mil metros quadrados), a CMTN apresentou um estudo prévio para a sua reabilitação que sugeria uma intervenção modelar, com a possibilidade de os edifícios virem a ser reabilitados faseadamente. A ideia seria transformar a antiga fábrica num espaço multifacetado, com núcleos museológicos, zonas de restauração e lazer, equipamentos de saúde, espaços desportivos e empresariais, entre outros.
No entanto, o projeto está em aberto e Ana Sofia Ligeiro espera ver cumprida a palavra do presidente da autarquia torrejana, que se comprometeu a ouvir a população: “O que existe é um estudo indicativo. O senhor presidente da Câmara assumiu publicamente que iria abrir uma discussão pública sobre o que irá acontecer naquele espaço. E, o que eu espero, é que essa afirmação não seja uma ambiguidade ou uma ideia circunstancial. Que seja realmente um desígnio formal por parte da Câmara Municipal de promover a consulta pública, de ter um devido mediador, para que as pessoas compreendam como é o espaço e o que se pode lá fazer, para que depois, essa construção coletiva do projeto efetivamente aconteça. A Câmara Municipal tem um papel determinante no respeito pela vontade coletiva”, defendeu.

Se assim não acontecer, assegura Ana Sofia Ligeiro, a ADPNT partirá para o terreno: “Se a Câmara não fizer esta discussão pública proactivamente, é nossa obrigação sermos nós a fazê-la, até para respeitarmos o nosso legado enquanto associação de defesa do património de Torres Novas. Fazemos nós os contactos com a população e faremos chegar à Câmara as vontades que conseguirmos apurar e compilar. Ficou aqui muito vincado que todos nós temos responsabilidades nesta pressão sobre a administração pública.”
“Se a Câmara não fizer essa discussão pública proactivamente, é nossa obrigação sermos nós a fazê-la, até para respeitarmos o nosso legado enquanto associação de defesa do património de Torres Novas. Fazemos nós os contactos com a população e, posteriormente, faremos chegar à Câmara as vontades que conseguirmos apurar e compilar. Ficou aqui muito vincado que todos nós temos responsabilidades nesta pressão sobre a administração pública.”
Ana Sofia Ligeiro, presidente da ADPTN
“Mapa do Tesouro” e participação da população são ponto de partida para projeto de sucesso diz Bárbara Buser
No leque de oradores convidados a participar na sessão, esteve a arquiteta holandesa Bárbara Buser, responsável por vários projetos de reabilitação patrimonial na Suíça. Para ilustrar a importância da auscultação pública no âmbito destas intervenções, Barbara Buser deu o exemplo de uma antiga fábrica de têxteis, em Liestal, que considerou ter muitas semelhanças com a Companhia Nacional de Fiação e Tecidos.
“Foi uma fábrica fundada em 1884 e que teve muito sucesso até 1990. Um dia, um grupo de pessoas chegou perto de mim e pediu-me ajuda. A fábrica ia ser vendida e demolida para ali serem construídos apartamentos. Fizemos um plano para salvar a fábrica”.

Esse plano, explicou, começou com a realização de um referendo e com a auscultação da população, para se perceber quais seriam as suas vontades e necessidades: “Fizemos uma grande assembleia, convidámos toda a população e também as entidades… e perguntámos, ‘o que falta neste bairro?’ e ‘o que querem ver aqui?’. Apareceram muitas ideias, em várias áreas. Dessas ideias todas, selecionámos as mais fortes e as que melhor se adequavam aos espaços existentes, para que se destruísse o menos possível. Hoje, temos ali uma área multifacetada, que responde ao que a população queria, num lugar em que se construiu o menos possível e onde existem 40 instalações.” .
“Devemos valorizar o que existe. Ver o que há e trabalhar a partir daí. Não é fazer tábua rasa e construir tudo de novo.”
Bárbara Buser, arquiteta
Quanto ao processo de reabilitação da Fiação e Tecidos de Torres Novas, Bárbara Buser deixou alguns conselhos: “Em primeiro lugar, deve ser feito um ‘mapa de tesouros’, descobrir o património que pode ser preservado. Depois, chamar as pessoas a participar, porque aquele património é da população. Começar a ocupar o espaço o mais rápido possível, com usos intermédios, para que não se degrade ainda mais. E, começar com projetos pequenos, desenvolvidos passo a passo, para se perceber se têm sucesso, sem haver grandes prejuízos se falharem. Devemos valorizar o que existe. Ver o que há e trabalhar a partir daí. Não é fazer tábua rasa e construir tudo de novo”.
Rui Lobo propõe concurso de ideias e concurso de arquitetura com caderno de encargos “bem definido, com a participação e consulta a associações de Torres Novas”
A questão da participação foi também levantada por Rui Lobo, arquiteto e professor de arquitetura, também orador convidado no encontro promovido pela ADPTN. “A Companhia Nacional de Fiação e Tecidos tem uma localização privilegiada e isso aumenta o seu o potencial de reabilitação. Ainda por cima, tem ali uma várzea, uma zona verde que pode ser uma zona de lazer. Mas o mais importante está no conjunto, pela sua história, pela evolução do seu processo industrial e produtivo. É importante para a história da arquitetura em Portugal, sobretudo, para a história da ciência da técnica, para a história social e económica, em particular para a cidade de Torres Novas. Se o Município tomou conta, é fazer fé de que possa desenvolver-se um caderno de encargos com a participação e consulta a associações de Torres Novas. Eu defenderia a organização de um concurso de ideias ou de um concurso de arquitetura com um caderno de encargos bem definido, com um bom júri. Essa é a melhor maneira para o projeto ser um bom projeto, é fundamental… e faz toda a diferença para a sua continuação”, defendeu.
José Lopes Cordeiro defende que Torres Novas tem condições de entrar na Rota do Turismo Industrial
José Lopes Cordeiro, sociólogo e membro da Associação Portuguesa do Património Industrial, começou a sua intervenção a reforçar a ideia de que é inquestionável a importância da salvaguarda do património industrial, pelo legado a deixar às gerações futuras e pela fixação da memória identitária das comunidades.
“A grande questão que se coloca é salvaguardar ou não o património industrial, salvaguardar ou não essa herança do passado. Uma herança que caracteriza a nossa sociedade ao longo destes últimos 200 anos, sob o risco de, se não o fizermos, de certa maneira, estamos a cavar um hiato em termos patrimoniais, entre o final do século XVIII e o século XXI ou o século XXII. Ou seja, se não houver a preocupação de salvaguardar testemunhos materiais considerados importantes e significativos desse período e desse processo, não há qualquer possibilidade de, mais tarde, haver uma visão concreta do que representou todo esse processo e todo o contributo que foi dado para a construção da sociedade que a revolução industrial proporcionou. A resposta que me parece óbvia a essa questão é que, sim, de facto temos de salvaguardar os testemunhos mais significativos de todo esse processo, por todo um conjunto de razões”.
Uma dessas razões, apontou, “tem a ver com a memória, porque a sociedade tem que ter memória. Uma memória que acaba por contribuir para fundamentar a identidade de uma localidade, de uma região, de um país.”

Sobre o património industrial de Torres Novas, José Lopes Cordeiro começou por recordar o acervo do Museu de Etnografia e Arqueologia Industrial, que considerou “de grande significado e importância”, fazendo notar que “merecia de facto ser acomodado em instalações adequadas, ser tratado, conservado, explorado e explicado”.
Falou na musealização da Central do Caldeirão (a decorrer), enquanto “iniciativa muito meritória” e lembrou a turbina John Praça que lá existe, fabricada por uma fundição do Porto. “Ninguém acredita, existem poucas, e uma está em Torres Novas, na Central do Caldeirão: ‘John Praça, 1937’, está lá a inscrição. Com a preservação da Central do Caldeirão está a prestar-se também um contributo importantíssimo para a salvaguarda de uma imagem que nós não temos, que foi a nossa industrialização. As pessoas desconfiam, mas existiu e uma das provas está em Torres Novas.”
“Como toda a gente sabe, nós estamos a jogar a cartada do turismo, que é extremamente importante em termos de receita. A criação de um museu industrial na Companhia Nacional de Fiação e Tecidos, seguramente, colocará Torres Novas na rota do Turismo Industrial, com os benefícios que daí advêm.”
José Lopes Cordeiro, Associação Portuguesa do Património Industrial
Quanto ao tema em agenda, a Fiação e Tecidos, José Lopes Cordeiro defendeu, além das múltiplas possibilidade que possam existir, a criação de um Museu Industrial que dignifique a história e a identidade local, o que na sua opinião, seria um passo importante para colocar Torres Novas da rota do Turismo Industrial.
“Nunca esperei que o Turismo de Portugal definisse como objetivo estratégico o desenvolvimento do turismo industrial em Portugal. Efetivamente deu passos concretos nesse sentido e está a trabalhar continuamente na criação de uma rede nacional de turismo industrial, que tem tido a adesão de todas as regiões de turismo do país, de inúmeras câmaras e entidades privadas. É algo que começa a ter uma importância significativa. E como toda a gente sabe, nós estamos a jogar a cartada do turismo, que é extremamente importante em termos de receita. A criação de um museu industrial na Companhia Nacional de Fiação e Tecidos, seguramente, colocará Torres Novas na rota do Turismo Industrial, com os benefícios que daí advêm”.

“Não é um turismo massivo, não é um turismo predador. É um turismo que relaciona segmentos da sociedade que tem interesses culturais, que tem um certo poder aquisitivo, provavelmente o melhor público em termos turísticos, de que uma localidade pode beneficiar.”