Esta sexta-feira, 22 de outubro, passam 25 anos sobre a instituição do Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém-Torres Novas (Pedreira do Galinha) e o professor António Galopim de Carvalho, responsável pela classificação do maior trilho de pegadas existente na Europa, descoberto na Serra de Aire em 1994 pela Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia, volta ao local para uma cerimónia protocolar onde não deixará de lembrar a importância desta jazida paleontológica, e da sua preservação.
O local aguarda há vários anos pelo financiamento necessário para que se avance com um projeto digno de musealização e há muito que se alerta também para a necessidade de intervenções que protejam os mais de 20 trilhos de pegadas destes grande animais, com cerca de 30 metros de comprimento e várias toneladas de peso, que há 175 milhões de anos atravessavam estes territórios das Serras de Aire e de Candeeiros. Depois de vários adiamentos, decorrem neste momento trabalhos de geopreservação naquele Monumento Natural, que deverão estar concluídos até final do ano.
Nesta data simbólica, recordamos alguns momentos determinantes destes últimos 25 anos, recorrendo às memórias do professor Galopim de Carvalho, tal como as deixou registadas, para memória futura no livro “Fora de Portas – Memórias e Reflexões” (Ed. Âncora).
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– Está lá? Bom dia! Desejava falar com professor Galopim de Carvalho.
– Sou eu próprio. Diga, se faz favor.
– Fala João Carvalho. Estou a telefonar-lhe de Torres Novas. O senhor não me conhece, mas estou a ligar-lhe porque temos aqui algo que julgo lhe irá interessar bastante. Encontrámos pegadas de dinossáurios aqui, na serra. É numa pedreira de calcário para brita com intensa actividade e é preciso evitar a destruição desta maravilha. Venha ver e verá que não nos enganámos. Seria bom contarmos consigo para o anúncio público do achado que desejamos fazer imediatamente…
Tudo começou assim, com um telefonema pela manhã do dia 6 de Julho de 1994. Numa paisagem eminentemente calcária, no flanco oriental da Serra d’Aire, pedregoso, cinzento, marcado pela implantação espaçada de oliveiras, azinheiras e figueiras, João Carvalho e os seus companheiros da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia acabavam de descobrir, na Pedreira do Galinha, entre Torres Novas e Fátima, os mais longos e também os mais antigos trilhos de dinossáurios saurópodes de que havia conhecimento.
Foi no Bairro, um lugar da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, do concelho de Ourém, que “Alfredo Galinha, Lda.” iniciou, há décadas, a exploração da pedreira que trouxe à luz do dia a que se tornou uma das mais famosas jazidas com pegadas de dinossáurios do mundo. Exposta na imensa laje que constituía o fundo da pedreira, então ainda em plena laboração, cedo se tornou notícia entre a comunidade científica nacional e internacional. Ao mesmo tempo polarizávamos as atenções do grande público mercê de um tratamento insistente e interessado dos órgãos de comunicação social, desde as televisões e grande imprensa escrita de Lisboa e Porto, aos menos conhecidos jornais e rádios locais do interior.
Vários atributos fizeram desta jazida um caso único, não só do lado de dentro das nossas fronteiras, como à escala do planeta. Com efeito, a abundância e perfeição das pegadas, em número de muitas centenas, organizadas em duas dezenas de trilhos, dois dos quais com mais de 140 metros, constituíram, desde logo, um factor de enorme interesse para o achado. A grande pista de Pego Longo (Carenque), com os seus 138 metros, perdia aqui a sua “posição no Guiness”, mas Portugal reforçava a sua importância no domínio da Paleoicnologia.
Por outro lado, a idade da camada de calcário que conserva um tal testemunho da passagem destes animais, atribuída ao Jurássico médio, com cerca de 175 milhões de anos, representa outra novidade para a paleontologia. Provou-se aqui que este grupo de grandes herbívoros já existia bem representado nesta altura, isto é, uns 25 milhões de anos mais cedo do que o intervalo de tempo que era atribuído à sua passagem pela Terra.
As marcas aqui deixadas indicam alguns animais de grandes dimensões, na ordem dos 30 metros de comprimento e dezenas de toneladas de peso, o que constitui mais um elemento valorativo da ocorrência. Por outro lado, o grande número de trilhos é indicador de determinados comportamentos individuais e sociais. A nitidez e boa definição das pegadas forneceram elementos que ajudam a caracterizar a morfologia das extremidades dos membros. Finalmente, as dimensões invulgarmente grandes da superfície (250x250m) contendo os icnofósseis – uma única laje, levemente basculada para Norte, no sentido do escarpado (com 30 m de altura) deixado pela frente de exploração – dão à jazida invulgar espectacularidade, susceptível de ser apreciada a partir de diversos locais de observação, quais miradouros espalhados ao longo de um percurso pedonal coincidente com o contorno da pedreira.
Na sequência do achado, o senhor Rui Galinha, filho do anterior concessionário, interrompeu a exploração na zona das pegadas, o que permitiu limpar a imensa laje dos escombros que parcialmente a ocultavam. Após estudo preliminar realizado no nosso Museu, solicitei à Fundação Luso-Americana a vinda a Portugal do Prof. Martin Lockley, o mesmo cientista da Universidade do Colorado, em Denver, que viera, um ano antes, dar-nos o seu apoio na luta pela jazida de Pego Longo. Entusiasmado pelo interesse científico, grandiosidade e espectacularidade desta jazida, este colega elaborou um parecer altamente favorável à defesa de mais este importante património paleontológico, a fim de ser presente ao governo e às duas câmaras, Ourém e Torres Novas, que partilham entre si a área ocupada pela jazida.
Entretanto, organizou-se um grupo de trabalho coordenado pela Arqtª. Maria João Botelho, então directora do Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros (PNSAC), o Eng.º. Carlos Caxarias, em representação da Direcção Geral de Minas, o Dr. José Manuel Alho, da Quercus, o industrial Rui Galinha, o vereador David Catarino, da Câmara Municipal de Ourém, o vereador Pedro Ferreira, da Câmara Municipal de Torres Novas e uma representação do Museu Nacional de História Natural chefiada por mim. O local de reunião foi o escritório da própria pedreira e para ali se correu regularmente durante meses até se conseguir o objectivo final: salvar a jazida.
Estava-se em plena campanha eleitoral para as legislativas. Aproveitando a visita a Torres Novas do candidato do Partido Socialista, António Guterres, foi-lhe mostrada a jazida, que não deixou de o impressionar. Combinei então com um dos elementos da sua comitiva, o deputado Jorge Lacão, subir ao carro adaptado a palco, no comício que ali se realizou, na praça da República. Aí, questionei o candidato com a frase que levava bem ensaiada:
– Senhor engenheiro, se for eleito, qual será a sua decisão sobre a grande jazida da Pedreira do Galinha?
– Vamos salvá-la. – Foi a resposta.
Com efeito, uma vez eleito, o novo Primeiro-Ministro fez cumprir a sua palavra. Face a um tão vasto e importante conjunto de predicados, não foi difícil obter da nova administração central o total empenhamento na salvaguarda deste importante património. Assim, após conversações entre o governo e o industrial, foi acordado pôr fim à exploração, mediante uma indemnização de cerca de um milhão de contos ao concessionário, a que se seguiu a classificação da jazida como Monumento Natural (Dec. Reg. 12/96 de 22 de Outubro) e a entrega do sítio à administração do PNSAC.
Cabe aqui lembrar o papel significativo da Ministra do Ambiente, Prof.ª Elisa Ferreira, que deu todo o seu apoio a esta causa. Era Ministro das Finanças o Prof. Sousa Franco. Numa primeira fase e a par de um estudo mais aprofundado, no âmbito de um projecto de investigação do nosso museu e da minha responsabilidade científica, aquele organismo conseguiu abri-la ao público com um mínimo de equipamentos que permitissem uma visita satisfatória, antecedida de uma explicação prévia em vídeo, seguida de um percurso a pé, ao longo de um itinerário traçado, apoiado com vários painéis explicativos. Satisfazia-se, assim, ainda que provisoriamente, alguma pressão que se fazia sentir por parte da imprensa e de um público legitimamente curioso e sempre interessado.

A musealização da Pedreira do Galinha contempla esta jazida como local de interesse científico, pedagógico, cultural, recreativo e de lazer e, por todas estas razões, também, turístico. Científico, porque tem sido e continua a ser alvo de estudo; pedagógico, na perspectiva de prestar apoio ao ensino, dirigido a grupos escolares nas áreas da geologia regional (Maciço Calcário Estremenho), da paleontologia e da paleobiologia dos dinossáurios, da educação ambiental e, ainda, na reciclagem e na actualização de conhecimentos destinadas a educadores e professores. Cultural, na medida que tem preocupações de divulgação do saber científico, destinado ao público, não só no domínio da temática da jazida, como no das Ciências da Natureza e do Ambiente, em geral. O interesse recreativo e de lazer tem em conta as perspectivas pedagógicas e culturais. O aproveitamento turístico será função do investimento que aqui se venha a fazer e na perspectiva de que ali, mesmo ao lado, dez quilómetros a Norte, o Santuário de Fátima recebe milhões de visitantes por ano.
Em 1996 concebi, com o apoio do Arqtº. Mário Moutinho, um programa preliminar de musealização deste sítio, que submeti à apreciação de responsáveis, a diversos níveis, do Ambiente, da Educação, da Ciência e Tecnologia, da Cultura, da Juventude e do Turismo, constituindo um primeiro documento onde se propunha um plano de acção a curto, médio e longo prazos, visando a implantação, no local, de uma vasta estrutura museológica e demais equipamentos de apoio – um programa que se perdeu nas gavetas das administrações.
(…) Após este período excepcional pouco mais ali foi avançado, por falta de financiamento, não obstante a vontade e o esforço dos responsáveis directos pela gestão deste que é o mais grandioso geomonumento deste género conhecido na Europa. Houve, no entanto, aspectos que podiam ter sido e não foram contemplados, pelos quais me tenho empenhado sem conseguir a sua concretização. São eles, nomeadamente, a consolidação da laje, o sombreado das pegadas, a passadeira elevada, ladeando os trilhos, e a naturalização do lago.
O mais procurado dos monumentos naturais portugueses que, sem qualquer apoio publicitário, conta cerca de 50 000 visitantes por ano, está já a evidenciar aspectos preocupantes de abandono. O valor e a grandiosidade deste Monumento Natural justificam um investimento compatível.
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