Seria difícil escolher um tema mais penoso: falar da guerra que há um ano cobre de morte e destruição o seu país. No dia que a Rússia invadiu a Ucrânia, Tatiana Belousko, de 58 anos, estava com a sua família na cidade de Zhytomyr, perto de Kiev, a 180 quilómetros de Irpin e Bucha, um dos principais palcos do conflito no início de uma guerra que continua sem fim à vista.
Eram quatro da madrugada, inverno, todos dormiam, talvez a hora certa para bombardeamentos.
“Estava em casa. Não sabíamos o que fazer, só ouvíamos explosões. De manhã soubemos que a guerra havia começado. As explosões ocorreram no Aeródromo Militar localizado perto de Zhytomyr”, começa por contar ao mediotejo.net.
Tatiana é uma mulher de semblante tranquilo mas melancólico. O cabelo louro emoldura-lhe um rosto com olhos claros, incapazes de não espelhar a dor. Ao mesmo tempo revela determinação, imensa força de vontade assumindo o papel de matriarca. Conta ter iniciado, pouco tempo antes do início da guerra, a construção de uma casa suficientemente grande para possibilitar a vida conjunta da sua família – a própria, a sua mãe, o seu filho, o genro, a sua filha Iryna Ivanenko, a sua neta Ivanna Ivanenko e a outra neta Nikol Ishcenko.
A casa, até ver, permanece intacta, tal como o apartamento onde a família tem residência, aguardando um regresso que tarda em acontecer. Apesar da vontade, Tatiana diz ser necessário “olhar pelos netos e criá-los”, refere gostar de viver em Vila de Rei e, sem paz, não demonstra pretensão de regressar à Ucrânia.
Refugiados acolhidos em todos os concelhos do Médio Tejo
Começaram a chegar em março de 2022, depois de milhares de quilómetros de viagem, num quadro de emergência. Era preciso dar abrigo aos milhares de ucranianos que cruzavam as fronteiras fugindo da guerra iniciada com a Rússia, e a Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo disponibilizou de imediato habitações nos vários concelhos da região, financiando também autocarros que partiram de Tomar, Torres Novas e Mação para ir resgatar refugiados à Polónia. Um ano depois, muitos seguiram para outras paragens, para junto de familiares ou conhecidos que já estavam em Portugal. Mas cerca de 600 refugiados permaneceram no Médio Tejo e, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, estão hoje distribuídos por todos os concelhos, com as comunidades maiores centradas em Ourém e no Entroncamento. A maioria são mulheres e crianças – os homens ficaram na Ucrânia, na frente de guerra. P.F.
Tal como no dia anterior, a 24 de fevereiro de 2022 o céu estava límpido e frio e assim persistiu a meteorologia. Tatiana foi para o trabalho, os dois netos estavam em casa. Trabalhava numa grande empresa como diretora do departamento de contabilidade. Depois o céu começou a ser rasgado por mísseis.
Na empresa não sabiam o que fazer. “Lá fomos informados da invasão russa”, conta, e foram todos para casa. “À noite as primeiras sirenes começaram a tocar, as crianças estavam com medo, não sabíamos para onde correr, o que fazer”, recorda.
As noites tornaram-se tão perigosas como os dias. Pela manhã as explosões foram novamente ouvidas, fora de casa o frio, gélido, mostrava-se impiedoso. Sentia-se demasiado exposta sempre que saía à rua, sendo inverno, com baixas temperaturas, e a mãe com dificuldades em caminhar, ainda mais com neve, e uma bebé de 10 meses. “Ao menos em Portugal não nos sobrevoam a cabeça e as bombas não caem do céu sobre nós”, desabafa.
A filha, de 32 anos, chegava a casa e contava as histórias que ouvia de violações, pelos soldados russos, a meninas e mulheres. Mãe de duas meninas, o medo agudizou. “Era muito assustador, especialmente por vivermos perto de Kiev. Os soldados apareceram lá.” Decidiram por isso sair do país, cerca de um mês depois.
“Primeiro tentei enviar os meus filhos para a Polónia enquanto a minha mãe e eu ficámos em Zhytomyr. A Iryna e as crianças partiram dois domingos mais cedo”, relata.
Para trás, na Ucrânia, Tatiana deixou o filho de 35 anos, que “foi trabalhar como pedreiro numa unidade militar”, e o genro, que “está na frente de batalha em Donetsk”. Não os vê desde que abandonou o país, a não ser pelo telemóvel, via videochamada.
Por falta de um lugar seguro na Ucrânia, a escolha por Portugal após a fuga deveu-se essencialmente com uma irmã de Tatiana, a viver em Lisboa. Disse-lhes para virem, embora a Polónia tenha sido o primeiro porto de abrigo após atravessarem a fronteira da Ucrânia de autocarro.
As duas meninas (uma de 12 e outra de um ano) e a mãe vivem atualmente com a avó em Vila de Rei. A mãe de Tatiana ficou em Lisboa com a sua irmã. Chegaram a este concelho do Pinhal Interior em agosto de 2022, embora tenham desembarcado em Portugal a 19 março do ano passado, no Aeroporto Militar de Lisboa.
Tatiana Belousko encontra-se integrada em contexto de trabalho na Santa Casa da Misericórdia de Vila de Rei e Iryna na Câmara Municipal de Vila de Rei. Por sua vez, Ivanna encontra-se a frequentar o 6.º ano de escolaridade na E.B.S do Centro de Portugal e Nikol a Creche Municipal. Estão a residir na Casa Paroquial, sendo as despesas com luz e água suportadas pela Câmara Municipal de Vila de Rei.
Para trás, na Ucrânia, Tatiana deixou o filho de 35 anos, que “foi trabalhar como pedreiro numa unidade militar”, e o genro, que “está na frente de batalha em Donetsk”. Não os vê desde que abandonou o país, a não ser pelo telemóvel, via videochamada.
Confessa que o mais difícil desde o início da guerra foi ver o medo nos olhos dos seus filhos. Ao chegar a Portugal sentiu ter segurança para a sua mãe, para a filha e netos. “Só depois comecei a entender o que tinha acontecido, onde estava e que acontecera comigo”, desabafa.
Após um ano de guerra na Ucrânia, “por esta altura já esperava paz”. Afirma sentir-se calma mas dorida. As imagens que passam nas televisões levam-na às lágrimas. Prefere recordar a versão antiga do seu país porque “é muito difícil assistir ao que está a acontecer”. Apesar da tragédia, há que seguir em frente. “Temos de criar os filhos.”

Em Portugal, Tatiana Belousko e o seu agregado familiar contam com número de utente da Saúde, da Segurança Social e com número de identificação fiscal. Sandra Silva, psicóloga do serviço de Ação Social da Câmara Municipal de Vila de Rei, explica a obrigatoriedade desse acompanhamento por parte dos serviços municipais, “para que os refugiados tenham exatamente os mesmos direitos que qualquer cidadão nascido e criado em território português”.
Segundo Tatiana, a integração na comunidade de Vila de Rei “correu bem”, diz. “Não sou uma pessoa conflituosa, entendi o que devo fazer para criar as crianças, para que possamos viver aqui, e estou muito grata.”
O seu agregado familiar, à semelhança de outros refugiados ucranianos que se encontram a viver no concelho, encontra-se a frequentar o curso de Português de Língua Não Materna, ministrado pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional. São três aulas por semana, para as quais têm dispensa da entidade profissional.
Tal como a sua família refugiada em Vila de Rei, Tatiana só fala ucraniano e admite que tem sido complicado aprender português, embora já entenda e articule algumas palavras. Sendo autónoma, para lidar com a comunidade portuguesa – quer no trabalho, quer no comércio ou numa consulta médica – recorre às novas tecnologias e ao tradutor instalado no seu telemóvel, tal como fez para falar connosco no decorrer desta entrevista.
Ao longo destes meses, aprendeu algumas palavras em português também com os colegas de trabalho, mas “para um ucraniano a situação é emocionalmente pesada”, por isso “é difícil” aprender português, que exige concentração, “particularmente por causa da gramática”, justifica. A barreira linguística apresenta-se assim como a maior dificuldade que encontrou em Portugal. “Se falasse português seria capaz de trabalhar na minha profissão”, lamenta.
Outra dificuldade apontada passa por “suportar o inverno” em Portugal, ironicamente. “É mais difícil para mim do que suportar as geadas ucranianas. Nunca fiquei doente na Ucrânia… bem, uma vez em cinco anos. Aqui já é a terceira vez que me constipo”, enumera.
A psicóloga Sandra explica que também as outras famílias ucranianas se queixam do mesmo, apesar de serem pessoas habituadas a temperaturas negativas. Na Ucrânia “as casas estão preparadas, os sapatos, o vestuário”, uma realidade diferente daquela que encontraram em Portugal, onde o inverno é mais húmido, e mesmo vivendo em casas com aquecimento disponível.
Tatiana revela que gostava de regressar à Ucrânia, mas neste momento não tem perspectivas. “Logo se vê o que acontecerá a seguir”. Uma coisa é certa, entre os seus maiores desejos: “A paz.”
Acrescenta a essa lista “a vitória” e que todos os que ama “estejam bem e saudáveis”. O seu maior medo é perder alguém da família. “Por agora, graças a Deus, todos permanecem vivos.”
A maior crise de refugiados na Europa desde a II Guerra Mundial
A ofensiva militar lançada em 24 de fevereiro de 2022 pela Rússia na Ucrânia causou até agora a fuga de mais de 14 milhões de pessoas – 6,5 milhões de deslocados internos e mais de oito milhões para países europeus –, de acordo com os mais recentes dados das Nações Unidas (ONU), que classificam esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Neste momento, pelo menos 17,7 milhões de ucranianos precisam de ajuda humanitária e 9,3 milhões necessitam de ajuda alimentar e alojamento. A ONU apresentou como confirmados, desde o início da guerra, 7.155 civis mortos e 11.662 feridos, sublinhando que estes números estão muito aquém dos reais.