A rivalidade entre Tancos (Vila Nova da Barquinha) e Arripiado (Chamusca), esbatida pelo tempo, é ancestral, mas o 15 de agosto é um dia especial em que a fé une as populações das duas localidades separadas pelo rio Tejo.
Um rio, duas localidades, dois concelhos e duas santidades. A uni-los está apenas a fé, exacerbada em especial no dia da Assunção de Nª Srª Senhora, 15 de agosto, feriado religioso que nas aldeias de Tancos (Vila Nova da Barquinha) e Arripiado (Chamusca) é vivido de forma muito especial e intensa.
Do lado de Tancos é Nª Srª da Piedade que é venerada e na margem esquerda, no Arripiado, o santo é S. Marcos. Encontram-se apenas uma vez por ano, a 15 de agosto, após uma procissão fluvial no rio Tejo. De forma alternada, este ano foi “Tancos que veio ao Arripiado”, na expressão do povo, e no próximo ano será a imagem e a procissão de S. Marcos a atravessar o rio até à margem direita.
É assim desde meados do séc. XIX, conforme nos explica o Padre Paulo Marques, pároco no concelho de VN Barquinha. Até então a aldeia do Arripiado pertencia à Paróquia de Tancos, mas com a criação, por D. Maria II, do concelho de VN Barquinha em 1836 são extintos os concelhos de Tancos, de Paio de Pele (Praia do Ribatejo) e de Atalaia, criando-se novas paróquias.
Com a procissão do 15 de agosto, os dois povos mantêm a tradição “da visitação dos povos dos dois lados”, refere o jovem pároco. Para o padre Paulo Marques o rio “apenas coloca limitações geográficas” mas “continua a unir, sempre foi o rio que proporciona esta vivência dos povos outrora piscatórios. Era daqui que as pessoas tiravam o sustento e por isso tem de ser sempre fonte de união”.
É com orgulho que o presidente da Junta de Freguesia de Tancos, José Miguel Homem, fala da festa e da procissão, mostrando-se tranquilo quanto à continuidade desta tradição.
Opinião diferente tem Belmira Lopes, uma moradora de Tancos há mais de 40 anos que trabalha para que a tradição se mantenha. “Tenho medo que isto acabe. Vivo a procissão com muita fé. Sinto-me feliz a participar e a ajudar a fazer isto. É uma paróquia pequena, é preciso muito boa vontade para fazermos isto, mas vamos continuar”, garante.
De ano para ano parece haver cada vez menos adesão à procissão, por isso o receio de que a tradição se perca está presente. Mesmo assim, este ano, a missa celebrada no anfiteatro do Arripiado juntou mais de 200 pessoas, sobretudo mulheres.
De forma sincronizada e num ritual que se repete de ano para ano, os andores das duas imagens saem das respetivas capelas de um lado e do outro do rio.
A Banda dos Bombeiros Voluntários e Vila Nova da Barquinha, que acompanha a imagem da Senhora da Piedade, nas ruas de Tancos e depois para o Arripiado, não para de tocar mesmo durante a travessia de barco para a outra margem.
Do lado de Tancos são homens, de calções e t-shirt, que transportam o andor da Nª Srª da Piedade. Do lado de Arripiado são mulheres cobertas com uma opa vermelha que carregam o andor, mais leve, de S. Marcos. Quando se juntam no anfiteatro ribeirinho do Arripiado ficam posicionados lado a lado e se mantêm durante a missa este ano celebrada e pela primeira vez pelo Padre José Luís Borga. A acompanhá-lo, veio da margem direita o padre Paulo Marques, para uma missa num fim de tarde marcado pelo vento intenso que ia provocando estragos na estrutura que cobria o altar.
Durante a homília, o Padre José Luís Borga aproveitou para falar sobre aquela tradição que, na sua opinião, “não faz sentido ser feita apenas porque sempre se fez”. “Ainda não percebemos bem a riqueza que isto tem, mas quando começarmos a trabalhar… teremos de nos juntar um dia para percebermos as necessidades que estas terras têm deste momento, teremos de ser criativos, ousados e também, porque não dizer, termos confiança no que estamos a fazer”, desafiou o pároco que exerce há seis anos no concelho da Chamusca.
“Importa fazer com ousadia, querendo mais”, proclamou o padre que nessa noite atuava na festa do Arripiado espalhando a fé através das canções. Aliás, depois da missa, o palco esperava-o para fazer o teste de som.
Momento emocionante é o da despedida da imagem e da comunidade da outra margem, após a missa, com os devotos a dizer adeus no cais, numa despedida com o desejo de que dali a um ano se voltem a encontrar.
Se a procissão fluvial é o ponto alto da parte religiosa, a festa popular essa prolonga-se por várias dias tanto do lado de Tancos como do lado do Arripiado numa competição a lembrar os tempos em que havia uma autêntica batalha de foguetes “a ver quem é que deitava mais”, uma tradição que se perdeu nos anos 80 quando entrou em vigor a lei a proibir atividades pirotécnicas durante o verão por causa do perigo dos incêndios.
Seja na margem direita ou na margem esquerda há sempre um barco para fazer a travessia e para quem se quer divertir, até domingo promete-se festa popular com arraial, espetáculos, atividades náuticas e os habituais “comes e bebes”.