“Serões de Tancos, lenda e poesia de Almourol”, por Fernando Freire

A cercania da fortaleza de Almourol é testemunha de porfiados e sangrentos reencontros entre cristãos e infiéis. Certo dia Dom Ramiro regressava da batalha contra muçulmanos. No seu caminho, encontrou duas mouras, mãe e filha, que acabou por matar, sobrevivendo um jovem mouro que assistira ao ato. Diz a lenda que no castelo foi recolhido esse jovem mouro o qual para vingar o assassinato da mãe e da irmã por Dom Ramiro, envenenou a esposa do dono do castelo e seduziu a sua filha, D. Beatriz, única herdeira do senhorio de Almourol. A tradição oral ainda hoje assegura que o jovem mouro e a donzela, princesa, aparecem na noite de São João, na torre de menagem, renovando cada ano a maldição que perdurará até ao dia do juízo final. Quer a lenda quer o magnífico poema de F. Gomes de Amorim fazem parte do periódico literário e recreativo Serões de Tancos, revista que foi publicada entre janeiro de 1926 e junho de 1927.

O periódico literário e recreativo Serões de Tancos foi publicado entre janeiro de 1926 e junho de 1927. Existiu como um periódico literário, crítico e recreativo ou um “pequeno jornal” com 8 páginas dedicadas à região e aos militares do Polígono Militar Tancos tendo sido publicados 13 exemplares.

Todos os periódicos, desde o n.º 1 ao n.º 12, foram impressos na tipografia da Escola de Aplicação de Engenharia, do Polígino Militar. O n.º 13, e último, foi impresso na repristinada Escola Prática de Engenharia, criada por decreto 11856, de 5 de julho de 1926, em consequência do movimento militar chefiado pelo general Gomes da Costa que reorganizou o Exército e que recuperou a antiga designação da unidade. 

Não sabemos ao certo a que levou os autores a deixarem de publicar os seus artigos nos Serões de Tancos, mas não andaremos muito longe da verdade se referirmos motivações de contenção financeira.  Em 1928, António de Oliveira Salazar assume a pasta das Finanças e logo determinou uma grande contenção na despesa pelo que quaisquer obras requeriam especial informação, análise e autorização e restringiu que só seriam elaborados orçamentos para reparações essenciais, conforme circunscrevia a Ordem do Exército n.º 4, 1.ª série, de 16 de junho de 1928.

No 1.º número dos Serões de Tancos os colaboradores foram bem claros ao que vinham: “Advertência. É bem simples e bem modesto o fim deste periódico: proporcionar nos longos Serões de Tancos uma recreação intelectual.

Para isso, será organizado de forma que todos o possam ler e nele colaborar.

Todos os assuntos que não tenham um carácter pessoal terão nele cabimento, mas, naturalmente, os regionais terão preferência na sua colaboração.

A todos que para o conseguimento deste singelo programa nos auxiliarem, o nosso antecipado agradecimento”.

O primeiro artigo “Scenas da vida militar – Dois enterros” vem assinado por G.T. que assinaria também no mesmo número um artigo sobre “epigrafia localas pedras tumulares da Igreja Matriz de Tancos”. O seu autor era Francisco Augusto Garcez Teixeira, coronel que foi comandante da unidade de Engenharia entre 18-7-1925 e 12-9-1925. Já em 1898, como tenente de engenharia coordenou as escavações do Castelo de Almourol descobrindo elevado acervo arqueológico. Sobre as escavações do Castelo publica dois artigos nos Serões de Tancos, nos números 2 e 3.

Já antes, em 1908, publicara na revista Serões, da Livraria Ferreira, no n.º 41, no mês de novembro, um artigo sobre a Escola Prática de Engenharia e os exercícios militares, seu balão captativo, o pelourinho e a forca da vila de Tancos.  

Outrossim, em 15 de maio de 1918, Garcez Teixeira, com Vieira Guimarães, José Brak-Lami e Arruda Pereira, fundaram a União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo (UAMOC), organização que teve um papel importante na investigação e divulgação da história da Ordem de Cristo, bem como na recolha de objetos de grande valor histórico e arqueológico. Nos Anais da UAMOC, vol. I, tomo 1º, ano de 1919, publicou Garcez Teixeira vários artigos: “A Casa do Capítulo Incompleta do Convento de Cristo; Estudo sobre alguns dos quadros que pertenceram ao Convento de Cristo; Documentação Moderna da Pintura do Convento; As imagens do Interior da Charola; S. Sebastião, quadro de Gregório Lopes; O Tubo de Órgão da Charola”, etc.

Foi arqueólogo, publicista e investigador o que demonstra o seu grande gosto pela história da região de Tomar e de Vila Nova da Barquinha.

Outro grande colaborador dos Serões de Tancos foi Júlio de Sousa e Costa.

Chegou à Barquinha em 1899. Era um homem letrado com apetite pela história, certamente, estimulado pelo seu padrinho, o historiador general Cláudio de Chabby.

O seu trabalho sobre a Guerra Peninsular (invasões francesas) é ímpar mormente com a investigação que fez sobre a sua presença na nossa região. Importa relevar que há muitas histórias sobre as invasões francesas em Portugal. Todavia, narrativas de autêntica guerrilha organizada e contadas com tanto pormenor, remetendo para fontes autênticas conforme refere nos Serões de Tancos e no Jornal o Moitense [edição do nº1 ao nº 106 – originais do Arquivo Municipal da Barquinha, por doação, em 2018, dos irmãos Carlos Manuel Farinha Maia, Eugénio Farinha Maia], não existem em Portugal.

Para fundamentar os seus relatos ouviu a voz de muitos populares que são devidamente identificados nas suas crónicas e consultou os arquivos paroquias. Como outros grandes escritores, de que são exemplo: Alexandre Herculano; Almeida Garrett; Camilo Castelo Branco, etc., também Júlio de Sousa e Costa aquando mais novo, começou a escrever nas revistas e nos jornais regionais. Apesar de vasta obra publicada, Júlio de Sousa e Costa ainda pensou em publicar as crónicas “Nas terras do luto e do martírio”, todas elas dedicadas às invasões napoleónicas em Vila Nova da Barquinha, Entroncamento, Golegã e Torres Novas o que, infelizmente, ao que temos conhecimento, nunca veio a ocorrer. Recentemente, no pretérito dia 2 de maio de 2023, João Nunes Falcão Ferreira, familiar de Júlio de Sousa Costa, doou alguns dos seus livros que passam a enriquecer o Arquivo Municipal da Barquinha – António Roldão: Severa (Maria Severa Onofriana) 1820-1846, Editora: Bertrand, 1936, com dedicatória do autor ao seu sobrinho Manuel Falcão, de 6/12/1938, talvez a sua obra mais conhecida em Portugal; Memórias do Capelão dos Marialvas, Edição Romano Torres, Lisboa, 1940, com dedicatória do autor ao seu sobrinho Manuel Falcão, de 9/3/1940; Um Grande Amor, Biblioteca das Famílias – Augusta Falcão da Costa, A. Figueirinhas Lda, Porto, 1944; Ramalho Ortigão, Memórias do Seu Tempo, Edição Romano Torres, Lisboa, 1946; com dedicatória do autor ao seu sobrinho Manuel Falcão, de 10/8/1947.

Outro colaborador dos Serões de Tancos foi Henrique de Campos Ferreira de Lima (1882-1949), coronel, historiador, bibliógrafo e editor que nos deixou grandes trabalhos de cultura portuguesa variada, quer em monografias, quer em diferentes estudos.

Com este naipe de cronistas e investigadores de história regional os Serões de Tancos são uma excelente fonte histórica para compreender a nossa vida e as memórias dos nossos antepassados.  

A revista os Serões de Tancos continha nos seus exemplares, adivinhas, charadas, problemas, anagramas, etc. sendo, portanto, classificada como uma revista lúdica.

Em alguns dos artigos publicados nos Serões de Tancos é transcrito o verbo de Francisco Gomes de Amorim (que assinava como F. Gomes Amorim). Poeta, dramaturgo e romancista, foi ainda o autor das Memórias Biográficas de Almeida Garret.

Na presente narrativa pretendo repristinar a lenda de Dona Beatriz e do Moiro e a poesia de F. Gomes Amorim. Esta lenda ocorre no reinado de D. Ramiro que seria, naquele tempo, o senhor de Almourol. A cercania da fortaleza de Almourol é testemunha de porfiados e sangrentos reencontros entre cristãos e infiéis. Certo dia Dom Ramiro regressava da batalha contra muçulmanos. No seu caminho encontrou duas mouras, mãe e filha, que acabou por matar, sobrevivendo um jovem mouro que assistira ao ato. Diz a lenda que no castelo foi recolhido esse jovem mouro o qual para vingar o assassinato da mãe e da irmã, por Dom Ramiro, envenenou a esposa do dono do castelo e seduziu a sua filha, D. Beatriz, única herdeira do senhorio. A tradição oral ainda hoje assegura que o jovem mouro e a donzela, princesa, aparecem na noite de São João, na torre de menagem, renovando cada ano a maldição que perdurará até ao dia do juízo final.

Mas vejamos, então, o que nos conta o sublime poema de F. Gomes de Amorim, baseado em tal lenda:

“Rica terra é esta minha!

Tão rica de tradições!

Contos de fadas, de mouros,

Encantados castelões:

Feitiços de velhas bruxas;

Que tomam muitos serões;

Combates de cavaleiros,

Extremados campeões!

Rica terra é esta minha!

Tão rica de tradições!

Quero contar-vos a história

Do castelo de Almourol.

Vê-se de Tancos na frente

Ao descobrir do arrebol,

Bate nas velhas muralhas

D’aurora o primeiro sol.

Senta-se no meio do Tejo

Como se fosse um farol,

Quero contar-vos a história

Do castelo de Almourol.

I.

“Donde vais, oh! Dom Ramiro,

“No centro dos teus donzéis?”

Vou-me às terras africanas

“Combater os infiéis.”

“Não vades, meu Dom Ramiro; ”

“Não vades, que morrereis. ”

“Donde vais, oh! Dom Ramiro,

“No centro dos teus donzéis? ”

Já Dom Ramiro vai longe,

E Beatriz a chorar!

Beatriz, a linda filha,

Que vai dez anos contar;

Tão donzela, tão formosa,

Que se diria sem par:

Se Beatriz não tivesse

Uma mãe para o negar!

Já Dom Ramiro vai longe,

E Beatriz a chorar!

Entrou por essa mourama

Dom Ramiro a combater,

Cometendo atrocidades,

Orgulhoso por vencer.

Um dia, em bosque sombrio,

Se foi sozinho perder,

Sentindo-se devorado

De sede ardente morrer!

Entrou por essa mourama

Dom Ramiro a combater.

O cavaleiro perdido

Andou tanto que cansou,

Quando já desanimado

Duas mouras encontrou;

Uma delas, a mais linda

Que aquela terra criou,

Tinha um vazo cheio d’água

Que de assustada largou!

O cavaleiro perdido

Andou tanto que cansou.

“Dai-me água! tenho sede”:

“Dai-me água, ou morreis já!”

“Perdoai à minha filha,

“Perdoai-lhe por Alá!”

Dom Ramiro aponta a lança

À mais nova que ali está;

Quebrou-se o vazo na terra

E mais água ali não há.

“Dai-me água! tenho sede:

“Dai-me água, ou morreis já!”

Furioso Dom Ramiro,

De pronto cumpre o que diz!

Fere no peito a donzela,

Tão gentil entre as gentis.

“Maldito!” lhe diz a outra;

“Sejas tu vil entre os vis,

“Roubem-te assim os teus filhos,

“Os que vão ao teu pais!”

Furioso Dom Ramiro,

De pronto cumpre o que diz!

Morreu-se a pobre donzela

Nos braços de sua mãe,

E o cruel cavaleiro

Matou a esta também,

E cativa-lhe seu filho

Que nesse instante ali vem;

Cruezas de Dom Ramiro

Não lhas louvara ninguém.

Morreu-se a pobre donzela

Nos braços de sua mãe.

O jovem mouro cativo

Tem onze anos, não mais;

Órfão, escravo, inocente,

O seu futuro são ais;

Vai caminhar prisioneiro

Nos seus livres areais,

Tem por senhor o tirano

Que assassinara seus pais.

O jovem mouro cativo

Tem onze anos, não mais.

II.

Que tão gentil cavaleiro

Naquela estrada não vem!

Que lindo formoso pajem

Que o cavaleiro não tem!

Pajem mouro, mouro pajem

Tão crestado pela aragem

Da terra ardente d’além!

Escravo de Dom Ramiro

Quando dez anos contou,

Há cinco anos cativo,

Já pelos quinze passou, 

Irmão e filho das mouras

Que o cavaleiro matou.

Pobre mancebo, coitado, 

Quando dos seus apartados, 

No sangue – contra o malvado

Vingança eterna jurou!

Vingança – nessa inocência –

E sabe ele o que isso é?

Sabe – que dos seus o sangue

Dera-lhe ciência, e fé.

Aviva-lhe a inteligência

Na sua nova existência,

Ficar órfão, ficar só!

Ser escravo do tirano

Que arrancara, desumano,

Os seus ao mundo, sem dó.

Já mil vezes no ardor das batalhas

“Se poderá o cativo vingar!

Mas cobriram-no duas mortalhas,

Que uma só não poderá igualar!

Respeitou, pois, a vida infamada

Do cruel e tirano senhor;

Essa vida já tão desonrada

Com as manchas de vil matador!

Cinco anos longos, longos, 

Bem longos no seu esperar!

Esperou pela vingança

Com sede de se vingar!

Esperando vem à terra

Que de Dom Ramiro encerra,

O castelo feudal:

Já de Dom Ramiro ouvira 

Que filha, e mulher suspira 

Que ele volte a Portugal!

Mulher, e filha, ao sabê-lo 

O mouro riu de prazer.

Foi irmã, foi mãe que o escravo

Se lembrava de perder!

Tão suave era a lembrança 

Que lhe avivará a esperança 

De fazer a duas morrer!

Leva n’alma o camartelo

Para esmagar no castelo

Essas duas que vai ver!

Mancebo de quinze anos

Poderá ser tão cruel?

Poderá; que no seu peito

Verteram sanguento fel!

Poderá: jurou vingar-se

Pela crença d’Ismael!

Tem um amor a vingança.

Que não tinha tanta esp’rança

Jacob de alcançar Rachel!

Almourol vê-se ao longe

Com suas torres gentis, 

Em breve sobre as ameias

Se divisa Beatriz;

Que tem na face formosa

O colorido da rosa

O mimo da flor de Liz!

A filha de Dom Ramiro

Tem ao lado sua mãe;

Conhecem o cavaleiro

Que à pressa correndo vem!

No ar agitam seus lenços, 

Saúda-as ele também.

E o pajem espantado

Fica ali petrificado, 

Que se sentiu dominado

Do brilho que uns olhos tem!

Também Beatriz o vira, 

Também Beatriz suspira,

Porém, não sabe – o porquê!

Sentiu-se tão perturbada

Que não pôde dizer nada

Ante o pajem que ali vê!

Achou-se o mouro sozinho

Que os mais no castelo são,

Onde se fazem mil festas

À vinda do castelão!

“Cobarde! o pajem murmura;

“Minha mãe na sepultura,

“Minha irmã, que era tão pura!

“E ele ri! Maldição!

“Seduziu-me essa donzela,

“Perturbei-me à vista dela,

“Sou peão, e sou vilão!

“Vingança, vingança eterna,

“Dom Ramiro, Dom Traidor!

“Não me vence a tua filha, 

“Não me vence o seu amor!

“Das vítimas que imolaste

“Tens aqui o vingador!

“Dom Ramiro, Dom Malvado,

“Ao teu jardim mais amado

“Eu irei com braço armado

“Colher a mais linda flor! 

“Dom Assassino covarde,

“Dom Ramiro desleal!

“Hei de verter o teu sangue

“Na tua terra natal.

“Tu verás que o Africano

“Vence as iras do tirano,

“Calca aos pés teu solo insano,

“Vem vingar-se a Portugal!

“Tua esposa, tua filha,

“São lindas, que não tem par…

“E mesmo assim, tão formosa,

“Sem dó as hei de matar!

“Mãe e irmã, como eu tive

“Também na terra não vive 

“Se não a fé de as vingar!”

Entrou nos paços o mouro

Onde estava seu senhor!

Pouco tempo Dom Ramiro

Goza da paz o sabor!

De novo para a mourama

Do seu rei a guerra o chama:

Lá se vai a guerrear!

E deixa no seu castelo

O mouro pajem tão belo 

Que não quisera levar!

 “Beatriz, Beatriz, o que fazes!

“Beatriz, não te quero falar!

“Beatriz, os teus olhos falazes,

“Beatriz, me farão renegar!”

III

“Beatriz, Beatriz, o que fazes!

“Beatriz, não te quero falar!

“Beatriz, os teus olhos falazes,

“Beatriz, me farão renegar!”

“Oh! que nunca esses olhos te eu vira,

“Que de vê-los o braço me cai!

“Oh! que nunca eu tivera esta ira,

“Ou Ramiro não fora teu pai!

Dom Ramiro que te foste 

Lá tão longe a batalhar!

Deixando no teu castelo

O mouro pajem ficar!

Não sabias que esse pajem

Tinha no peito a voragem

Ardente de se vingar!

Não sabias que esse mouro

Não o desarmava o ouro, 

Que o seu mais rico tesouro 

Era em vingança sonhar!

A tua esposa, que é dela?

Deixou no mundo a donzela

“Foi-se à campa repousar!

Foi célebre aquela morte

Que ninguém soube entender,

Houve mesmo quem dissesse

Que era estranho assim morrer!

Aquela linda senhora,

Dos povos tão benfeitora, 

Em três dias se finou:

E então, sem estar doente,

Acabou tão de repente, 

Que, por fim, dizia a gente 

Que cousa ruim a levou!

Para falar a verdade, 

Não sei se tinham razão

Passavam-se tantas cousas

N’ausência do castelão;

O mouro sempre chorando, 

Noite, e dia suspirando;

E Beatriz, de quando em quando,

Pondo a mão, no coração!

Beatriz, essa donzela

Que foi linda a mais não ser;

Tão pálida agora, e triste,

Que até custa a conhecer!

Beatriz, porque suspiras?

Pajem, tu porque deliras?

Nenhum o pode dizer!

Mas de Beatriz, no peito,

Se alguém lho pudesse abrir;

Achara amor escondido;

Porém, n’alma do descrido,

O sábio mais entendido

Não soubera traduzir!

Passavam um pelo outro,

Olhavam-se a suspirar…

Paravam depois de olhar-se, 

E não se ousavam falar!

Mas una dia, de repente,

Se acaso a história não mente,

Foi noite de São João,

Falaram – mas em segredo,

Que ambos eles tinham medo 

De ouvir, um do outro – não.

“Beatriz, queres ser minha?”

E Beatriz disse: “Sim.

“Meu Dom Pajem, meu Dom Mouro

“Chega-te mais. para mim!

“Fala, Beatriz, não te cales;

“Fala, que por mais que fales

“Eu não me contentaria.”

“Dom Pajem, eu me calava

“Com medo, apenas sonhava!”

“Também eu, Beatriz, te amava,

“Sonhando, que nem um rei !…

“Sonhos de tantos amores

“Como eu os sonhei por ti!

“Eram sonhos que matavam,

“Não sei eu como vivi!

“Oh! minha Beatriz querida,

“Sê vida da minha vida,

“Não ames a mais ninguém.”

“Meu Dom Mouro, nos teus braços

“Eu quero apertar os laços

“Que d’alma por ti me vem!”

Ei-los, e tão abraçados, 

Como ninguém se abraçou;

Delícias daquele abraço

Quem é que assim as gozou?

Os sonhos daquelas almas

Ninguém na terra os sonhou!

Segredos dos seus amores

Em noite de São João, 

Foram segredos guardados,

Mas inda aos séculos ligados,

Sempre a viver condenados,

Os segredos lembrarão!

IV

Chegou hoje Dom Ramiro

Dessas terras d’além-mar,

Traz consigo um cavaleiro

A quem Beatriz quer dar;

Adeus, amores do mouro,

Que Beatriz vai casar.

Chegou hoje Dom Ramiro

Dessas terras d’além-mar!

O mouro encontra a donzela

E entra assim a falar:

“Beatriz, a minha vida 

“Aqui te quero contar:

“Quero: que tu hás de ouvir-me,

“Daqui quem te há de livrar?”

O mouro encontra a donzela

E entra assim a falar.

“De quanto amei neste mundo

“Tenho só hoje o chorar!

“Pois olha, nobre donzela,

“Não nasci para o penar;

“Tinha uma irmã que adorava,

“Mãe para a mim me adorar!

“De quanto amei neste mundo

“Tenho só hoje o chorar!

“Não sabes, Beatriz, não sabes

“Quem me fez órfão ficar?

“Quem, com dez anos de idade,

Me foi escravo tomar

“Depois de a quem eu amava

“Cruelmente assassinar?

“Não sabes, Beatriz, não sabes

“Quem me fez órfão ficar?

“Beatriz, foi Dom Ramiro

“Em quem me jurei vingar!

“Foi o nobre cavaleiro

“Que te vem hoje casar;

“Foi teu pai, nobre donzela, 

“Teu pai, que jurei matar! 

“Beatriz, foi Dom Ramiro

“Em quem me jurei vingar!

“Com teu amor esqueci-me

“Que mentia o meu jurar….

“Lembrei-me que amando a filha 

“Podia ao pai perdoar!

“Não tardou o meu castigo

“Por minha jura quebrar.

“Com teu amor esqueci-me

“Que mentia o meu jurar.

“Mas à fé, que é tempo ainda,

“Minha mãe vou-te vingar.

“Beatriz, este castelo

“Hás de comigo deixar.

“Dom Ramiro, Dom Infame,

“Já cuidavas d’escapar? …

“Mas á fé, que é tempo ainda, 

“Minha mãe, vou-te vingar!”

V
Dom Ramiro, no castelo

Sua filha em vão chamou,

Debalde, por toda a parte

O mouro pajem buscou:

O pajem tinha fugido;

Beatriz tinha-o seguido;

Nenhum deles mais se achou:

E passados poucos dias, 

Em negras melancolias, 

Dom Ramiro se finou.

Mas, não pensem já que o caso

Acabou sem mais razões,

Nem cuidem que este castelo

Deixou de ter castelões;

Se pensam, estão enganados,

Nem se quer foram mudados 

Das suas habitações:

Nem Beatriz, a donzela,

Cada vez mais branca e bela,

Deixou de vir aos balcões!

A gente das vizinhanças

Conta hoje ao seu serão

Que Beatriz, e o pajem,

Em noite de São João,

Sobre os muros elevados

Aparecem abraçados

Ao lado do castelão;

Do castelão, que aterrado, 

Ante o mouro ajoelhado, 

A face roça no chão!

O pajem Beatriz olhando, 

E sua jura recordando,

só repete: “Maldição!”

E a mulher de Ramiro

Responde com um suspiro

Ao cruel mouro: “Perdão”.

Assim o conto se conta, 

O castelo além se aponta 

Tão rico na tradição.”

Bibliografia:

Serões de Tancos, 1926 -1927, Arquivo Municipal António Roldão, V.N. Barquinha

O Jardim literário – Semanário de Instrução e Recreio, Vol. 4, Lisboa, Imprensa Nacional, 1849

Fernando Freire é Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova da Barquinha e investigador da História Local

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