Na última semana muito se falou da situação das quatro crianças retiradas aos pais no Algarve. Especulações, comentários, críticas positivas e negativas à atuação dos profissionais e à atitude dos pais.
Decorre uma onda de solidariedade agora para apoiar estes pais a “recuperarem” os filhos. Mas, a situação que aconteceu é bastante para retirar os filhos aos pais? Se por cada comportamento das crianças que foge ao controlo dos pais se retirassem crianças, não existiam instituições para as acolherem. Vou então tentar explicar o que deveria acontecer para apoiar os pais e não para os penalizar e, como funcionam as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens.
Antes de mais, e não conhecendo o caso, não vou tecer considerações sobre o mesmo, nem criticar a atuação dos profissionais que tomaram estas medidas ou dos pais que “deixaram” as crianças sair de casa. Quero antes ajudar a esclarecer a atuação destas entidades.
No desenvolvimento da minha atividade profissional, várias vezes os pais me colocam questões sobre a intervenção das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Na maioria das vezes as questões prendem-se com o consentimento para a intervenção e o receio de se não concordarem com a atuação daquela comissão, poderem ficar afastados das suas crianças.
Estes receios são legítimos, embora muitos sejam facilmente desmistificados com um simples esclarecimento. Por outro lado, a comunicação social e o “diz que disse” sem fundamentos leva a que a imagem negativa das Comissões seja alimentada. As Comissões não são um “bicho papão” dos tempos modernos. Existem para ajudar os pais. Os bons e maus profissionais existem em todo lado e não podemos generalizar, nem é isso que deve manchar a imagem destas Instiuições. Por outro lado, as metodologias e os procedimentos de atuação por vezes são complexos e isso leva a confusões de quem é leigo na matéria.
Mas então vejamos:
– É obrigatório o consentimento para a intervenção da CPCJ ser prestado pelos pais ou representante legal? Sim. Quando uma situação suscetível de colocar em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento das crianças e jovens chega ao conhecimento da CPCJ e, esse perigo resulte da ação ou omissão dos pais/ representantes legais ou da ação ou omissão de terceiros ou da própria criança/ jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo, há lugar à intervenção da CPCJ. Para que esta intervenção aconteça, é necessário o consentimento dos pais/ representantes legais, e não oposição da criança com mais de 12 anos. Sem este consentimento as CPCJ não poderão averiguar a alegada situação de perigo e intervir de modo a proteger a criança/ jovem.
– Mas o que acontece se este consentimento não for prestado, ou a criança/ jovem se opuser? A CPCJ terá de comunicar os factos ao Ministério Publico para que os mesmos possam ser avaliados e se confirme ou não existir perigo para a criança/ jovem.
– Dando consentimento o que pode acontecer? A prestação do consentimento para a intervenção, vai permitir aos técnicos da CPCJ recolherem um conjunto de informações que ajudem a perceber a situação de perigo a que a criança/ jovem está exposta. O porquê dessa situação, os fatores associados, o que poderá ajudar a remover esse perigo e o eventual encaminhamento para uma entidade adequada a ajudar a família. O que se pretende é que os pais sejam ajudados a ultrapassar a situação, desenvolvendo-se um conjunto de ações nesse sentido. Muitas vezes as crianças estão em perigo por ações não intencionais dos pais. Há portanto que ajuda-los a ultrapassar os desafios da parentalidade.
– Se não prestarem o consentimento, retiram-lhes os (as) filhos(as)? Este é um mito associado à intervenção destas entidades. As CPCJ, tal como outras entidades com intervenção em matéria de infância e juventude (escolas, serviços de saúde, IPSS’s, etc) apenas podem retirar crianças, se existir perigo atual e eminente para a vida ou integridade física ou psíquica da criança/ jovem e haja oposição dos pais/ representantes legais para que a criança seja colocada em segurança.
– Se prestarem consentimento, têm de concordar com tudo o que a CPCJ decidir? Não. A intervenção das CPCJ deve ser feita por acordo com os pais/ representantes legais. Mesmo que seja prestado o consentimento para a intervenção, terá de prestar novamente consentimento para aplicação de uma medida de apoio. Caso não concordem com a medida sugerida pela CPCJ podem não assinar o acordo, seguindo neste caso o processo para o Ministério Publico.
– Se o processo for para Tribunal, implica que afastem as crianças dos pais? Não. A Intervenção do Tribunal é de certo modo semelhante à da CPCJ. Neste caso, não presta consentimento para a intervenção, pois ela terá mesmo de ocorrer. De qualquer forma, as medidas a aplicar para proteger a criança/ jovem serão também negociadas com a família. Apenas nos casos em que não seja possível proteger a criança junto dos pais, se aplicam outro tipo de medidas embora isso não implique necessariamente uma retirada da criança/ jovem do seu meio natural de vida, ou uma impossibilidade de contactar com os pais.
– Quando é que a Comissão contacta os pais? A lógica é que sejam em primeira instância as entidades de primeira linha a tentar ajudar os pais a ultrapassar a situação de risco, nomeadamente a escola, os serviços de saúde, as associações/ Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental, etc. Estas entidade atuam de modo consensual com os pais, e apenas quando esgotados os seus recursos, ou quando for necessária a aplicação de uma medida de promoção e proteção é que é contactada a CPCJ. Só aí os pais devem ser contactados pela CPCJ.
Resta então dizer que hoje em dia não se retiram (ou não deviam retirar-se) crianças aos pais pelas condições económicas ou pelas condições habitacionais. Os serviços sociais devem apoiar estas famílias e apenas retirar as crianças se de facto não existirem condições e se os pais não se esforçarem por alterar essa situação. Por outro lado, antes de se colocar uma criança numa instituição, devem ser exploradas outras alternativas.
Nomeadamente familiares ou próximas da família que possam assegurar os cuidados ou apoiar os pais a assegurar esses mesmos cuidados. Salientar ainda que a comunidade tem também uma responsabilidade nesta matéria. É fácil apontar o dedo aos pais que estão a “falhar” com as suas crianças, mas quem ajuda? Cabe-nos a todos fazer a nossa parte.
Podemos não mudar o mundo, mas devemos fazer a nossa parte.