Um homem residente na vila de Sardoal e funcionário judicial em Abrantes recebeu no Tribunal onde trabalha há vários anos uma sentença que pretendia ser “exemplar”, punindo dois crimes de condução em estado de embriaguez. Para escapar à prisão (15 meses em cúmulo jurídico), teria de fazer um tratamento de alcoolismo e comparecer a consultas mensais de psiquiatria para “combater personalidade de características narcisistas”, ficando também proibido de frequentar cafés ou restaurantes, bem como de ter álcool em casa, entre outras sanções que, em sede de recurso, os juízes do Tribunal da Relação de Évora decidiram anular, por unanimidade.
A decisão foi proferida a 12 de julho mas noticiada apenas esta terça-feira, 22 de agosto, pelo jornal Público.
O acordão assinado por três juízes, a que o mediotejo.net teve acesso, analisa a sentença de condenação pelo Tribunal de Abrantes de dois crimes de “condução de veículo em estado de embriaguez” ocorridos na vila de Sardoal em 20 de fevereiro de 2020 (um sábado, às 17h00) e em 15 de agosto de 2021 (um domingo e feriado, às 19h00). Foi dado como provado que o homem estava sozinho nas duas ocasiões e não esteve envolvido em acidentes rodoviários, tendo sido abordado pela GNR para realizar testes de alcoolemia, revelando nessas ocasiões taxas de 2,79g/l e de 2,59 g/l, respectivamente (o limite legal permitido é de 0,5 g/l e, quando igual ou superior a 1,2 g/l, é considerado crime e punido com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias).
Sem antecedentes criminais, divorciado e com dois filhos adultos, o homem explicou que morando sozinho ia por vezes almoçar fora ao fim de semana, passando depois as tardes com os amigos num café, a beber cerveja. Tinha noção de que não estaria em condições para conduzir, mas ainda assim, pegou no carro. Num caso, para estacionar noutro local, a 100 metros; noutro, para ir para casa, a cerca de 2 km.

A juíza de Abrantes entendeu que o arguido, ao afirmar em tribunal que consumia bebidas alcoólicas “de forma moderada”, não reconhecia “as problemáticas associadas, minimizando efeitos decorrentes do comportamento aditivo e desconsiderando o resultado da perícia” que o identificou como dependente de álcool. “Urge, pois, desincentivar este tipo de sentimento (isto é, o arguido não considerar que tem um problema de saúde grave)”, sancionando “com pena que seja suscetível de educá-lo para o direito”, afirmou.
Na sentença aludiu ainda ao facto de “o arguido conduzir cerca de 20 km por dia para se deslocar para o trabalho, colocando em risco os demais condutores e peões que com ele se cruzem”, para justificar que “a aplicação de uma pena de multa não irá satisfazer as necessidades de prevenção geral quer especial” e que, sendo o homem “associado na comunidade ao consumo de bebidas alcoólicas”, a aplicação de uma pena de multa também “mereceria o repudio da comunidade onde está inserido”.
Entendeu assim esta juíza, colocada há 8 anos em Abrantes, que “as finalidades da punição” só se mostrariam “devidamente asseguradas” com a aplicação de pena de prisão, condenando-o a 10 meses por cada crime. Para a suspensão da execução da pena de prisão efetiva, e uma vez que recusava a substituição por multa, determinou um conjunto de sanções “sui generis”, tais como “frequentar tratamento e consultas (no mínimo mensais) de psiquiatria e psicologia de modo a trabalhar as suas competências pessoais e combater personalidade de características narcisistas e o sentimento de prejudicado, com desconfiança e ressentimento; receber visitas de um técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; não frequentar cafés, bares e outros estabelecimentos que vendam bebidas alcoólicas; não possuir quaisquer tipos de bebidas alcoólicas dentro da sua residência, cuja verificação será a efetuar pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), permitindo o arguido a entrada desta entidade na sua habitação; efetuar testes de despiste de ingestão de bebidas alcoólicas pela DGRSP ou pela equipa médica de tratamento, de forma aleatória”.
Miguel Gonçalves, presidente do Sindicato dos Técnicos da DGRSP, explicou ao Público que estes não têm “formação ou autoridade para inspecionar residências privadas” e descreveu as sanções impostas na sentença como “um autêntico disparate”.

Os juízes do Tribunal da Relação entenderam ser de “nítida desproporção” a imposição destas regras de conduta, “algumas delas que se reputam de bondade e admissibilidade questionáveis”, além de “duvidosa concretização e até compreensão”.
Também o Ministério Público comunicou à Relação de Évora entender que “a aplicação das regras de conduta referidas (…) carecem de razoabilidade podendo até invadirem de forma desproporcionada/desrazoável a liberdade de movimento e reserva da intimidade privada que o arguido, enquanto titular de direitos, não deixou de ter”.
O acordão da Relação frisa que “toda a narrativa factual que sustentou a opção decisória não merece qualquer reparo” mas que a pena decidida pela juíza de 1ª instância “exulta de manifesto exagero”, ao aplicar 10 meses de prisão por cada crime e “não equacionar a sua substituição por pena de multa, nos termos do que reza o artigo 45.º do Código Penal”.
Assim, os juízes de Évora decidiram anular todas as exigências da primeira sentença, determinando uma pena única de 11 meses de prisão substituída por multa no valor de 2 970 euros, e inibição de conduzir por um período de 10 meses.
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