Remonta a 1788 o primeiro documento escrito que confirma a devoção à Senhora da Boa Viagem em Constância: uma provisão da rainha D. Maria I. Mas a história da fé do povo começa muito antes. Numa altura em que a vila ainda se chamava Punhete, era um porto fluvial estratégico no tráfego de mercadorias entre o interior do país e Lisboa. “Da navegação vieram também os perigos e os receios, as aflições e a necessidade de proteção que gerou a devoção à Senhora da Boa Viagem e a Festa em cada Páscoa, para abençoar os barcos e agradecer o amparo da Senhora”, explica o historiador António Matias Coelho.
E, mesmo já com poucos barcos e cada vez menos gente ligada aos rios, o ritual repete-se todos os anos. Agradecem-se as graças recebidas e renova-se o pedido de proteção até à Páscoa seguinte, numa “das manifestações religiosas e culturais provavelmente mais antigas de todo o Ribatejo”.

A imagem da Senhora da Boa Viagem, adquirida pelos próprios marítimos, data do séc. XVIII, numa altura em que já existiria a Confraria de Nª Srª da Boa Viagem. Segundo o historiador, a imagem teve altar próprio na igreja de S. João Baptista mas, quando esta ruiu, teve de ser transferida para a igreja Paroquial de S. Julião, situada no espaço onde atualmente se localiza a Praça. Aí, contudo, não dispunha de altar, permanecendo como “hóspede” à espera de mais adequada e condigna situação.
Além disso, a igreja de S. Julião, frequentemente assolada pelas cheias, estava também bastante degradada e havia muita gente na terra que gostaria de ver a Matriz mudada para a nova Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, situada na parte alta da vila.
A imagem da Senhora da Boa Viagem foi colocada, por indicação da rainha D. Maria I, no primeiro altar à esquerda do Evangelho da Igreja dos Mártires
Nessa altura, os responsáveis da Confraria e os marítimos em geral pensaram em construir um altar na igreja dos Mártires para colocarem nela a imagem e aí lhe prestarem culto. O problema é que esse templo pertencia a outra confraria e estava sob a direta proteção da rainha. Por isso tiveram de pedir autorização a uma e a outra para executarem a obra. Da parte da confraria a resposta foi positiva e a decisão da rainha é a que consta no tal documento de 1788.

D. Maria I colocou duas condições: a primeira era que o altar ficasse do lado do Evangelho, ou seja, do lado esquerdo de quem entra na Igreja; a segunda era que respeitasse o estilo dos altares já existentes, enquadrando-se na harmonia do conjunto.
O resultado final, 234 anos depois, pode constatar-se hoje na igreja Matriz. Lá está, no primeiro altar do lado esquerdo quando se entra na igreja, a imagem da sua devoção, que continua a sair todos os anos na procissão para abençoar os rios, os barcos e as pessoas.
A Santa em madeira, aparentemente bem conservada, está à guarda da igreja. Não há dados quanto ao peso e altura da peça.

“Vamos tentando proteger e preservar, dentro das nossas limitações financeiras”, garante o padre Nuno Miguel Lopes da Silva, que quando assumiu esta paróquia ficou emocionado com os “testemunhos dos homens de barba rija”, os marítimos que todos os anos se empenham a engalanar os seus barcos, para agradecer a proteção da Senhora da Boa Viagem.
A tradição permanece viva no concelho e, depois de dois anos de pandemia, o povo promete voltar a encher as ruas e os rios na segunda-feira após o domingo de Páscoa, dia feriado em Constância.