Percorrendo a antiga Estrada Nacional 2 – ou mesmo a variante se seguirmos a sinalética -, o concelho de Sardoal atesta a importância de São Tiago na toponímia portuguesa. Falamos de Santiago de Montalegre, freguesia desde 1928, que ainda reflete as características de um “Portugal profundo” nas suas 15 localidades.
Este é um lugar de muitas histórias, ocupado pelo Império Romano e depois pelos Mouros. Onde foram travadas batalhas durante as Invasões Francesas, um lugar de lendas que nasceram de muitas dessas histórias e, estando em Sardoal, obviamente um lugar de religiosidade. Curiosamente nenhuma foi batizada com o nome do santo.
No entanto, São Tiago é o orago ou o padroeiro da paróquia de Santiago de Montalegre, tendo sido erigida uma capela em sua honra, na serra com o seu nome. Embora a igreja paroquial tenha sido construída, em 1934, no lugar de Montalegre – sede da freguesia – vindo então a substituir a velha igreja que existia no alto de São Tiago, e que serviu durante muitos anos de igreja matriz, tendo sido então demolida.

Nesse mesmo local, foi inaugurada junto ao cemitério, a capela de São Tiago, em 1957. “Raramente funciona e, praticamente, só é aberta quando há algum funeral. É onde normalmente são celebradas as missas de corpo presente”, escreveu Francisco da Silva António no livro ‘Santiago de Montalegre – A história, as lendas, as gentes’.
Dessa capela, segundo o autor, “no final dos anos 60 do século passado, foi roubada a célebre imagem de São Tiago, cujo acontecimento foi alvo das mais diversas suposições, fazendo ainda levantar um coro de lamentações, recriminações e até acusações sem que até hoje se tenha percebido o que realmente aconteceu. Conta-se que a imagem de São Tiago era feita de madeira de oliveira e com elevado valor”.

Explica que de acordo com algumas escrituras, “junto à antiga igreja, local onde está situada esta capela, passava a estrada que ligava o Alentejo às Beiras e que fazia parte dos caminhos de São Tiago. Ainda hoje existe na capela uma pia de água-benta que se diz ser do tempo de D. Sancho II.
Consta-se que El Rei D. Dinis e sua esposa, a Rainha Santa Isabel, e toda a comitiva real indo de viagem para Coimbra, aqui chegaram e acamparam debaixo dos frondosos freixos. A Rainha fez as suas orações na igreja e dedicou-a a São Tiago, por estar na rota do Apóstolo.
Olhando a paisagem, achou-a tão bela e deslumbrante que disse: – ‘Que montes tão alegres!’ Daí ter nascido o nome de Montalegre, que é a povoação que fica mais próxima da igreja. Claro que existem outras versões lendárias sobre a criação do nome Montalegre (Monte-alegre), mas esta será talvez a mais concreta.

Existe também, na memória do povo, a lenda de São Tiago: segundo se consta, no alto do monte apareceu uma imagem de São Tiago. O povo, muito devoto, pegou na imagem e levou-a para a então chamada igrejinha, uma pequena capela existente na localidade de São Domingos.
A imagem, entretanto, desaparecia da capela onde havia sido colocada e voltava a aparecer no alto do monte, onde o povo a recolhia de novo levando-a para São Domingos, de onde voltava a desaparecer. Isto repetiu-se várias vezes até que o povo se convenceu a construir, no alto do monte, uma igreja onde pudesse colocar a imagem do santo, segundo o que parecia ser a sua própria vontade. Deitaram mãos à obra e fizeram uma igreja simples, em honra de São Tiago, colocando no altar a sua imagem, que nunca mais dali saiu, e ao monte também foi dado o nome do santo”, escreveu ainda Francisco António na mesma obra.
A Capela permanece no monte, de portas fechadas, isolada e solitária, tendo como companhia os que já partiram e os muitos pinheiros que pintam a paisagem de verde. A estrada para lá chegar é estreita e ingreme, mas as vistas lá do alto valem a subida, particularmente se for percorrida de carro. A Festa religiosa em honra de São Tiago tem lugar em Santiago de Montalegre, anualmente, a 26 de agosto.

Mas quando nos referimos a São Tiago temos de ter presente que existiram dois apóstolos de Cristo com esse nome; São Tiago Maior, assim designado por ser o primeiro, e São Tiago Menor, o último a ser chamado. O primeiro domina, quer ao nível de fieis quer na importância no seio da Igreja Católica. Era um homem de personalidade forte o que levou Jesus a chamá-lo de “filho do trovão”. Acabou degolado em Jerusalém, por ordem de Herodas Agripa, no ano 42 da nossa era.
A nível iconográfico é muitas vezes representado a cavalo, brandindo uma espada, tendo diante de si um mouro prostrado.
“Também aparecem, como atributos, a concha ou vieira, a sacola, o chapeirão e a cabeça de peregrino, que se tornou figura quase obrigatória entre os fiéis que se deslocam, anualmente, a Santiago de Compostela. Embora a sua importância esteja bem patente em todo o mundo cristão, na Península Ibérica assume um papel avassalador porque, segundo a tradição, terá evangelizado Espanha, estando o seu túmulo em Santiago de Compostela. É por tudo isso um dos grandes dinamizadores da Reconquista”.
“Não é por acaso que ‘Santiago!’ era o grito de guerra proferido pelos castelhanos quando estavam em combate” tendo sido fundada, em Leão, por volta de 1170, uma ordem de monges guerreiros; a Ordem de Santiago, lembra o autor.

Quando se trata de nomes de lugares – topónimos -, a língua portuguesa recomenda Santiago, o que não quer dizer que, por tradição ou por registo oficial, não haja casos em prevaleceu a grafia São Tiago. Santiago é a forma toponímica que o nome de santo (hagiónimo) Sant’Iago ou Santo Iago assume. Na tradição peninsular, este hagiónimo refere-se geralmente a Sant’Iago, o Maior.
Data de 1 de março de 1928 o Decreto nº 15132 que determinou a criação da freguesia de Santiago de Montalegre, no concelho de Sardoal.
Assinado pelo Presidente da República, António Óscar de Fragoso Carmona, o diploma deu resposta às pretensões da população local, que reivindicava a saída da freguesia de Sardoal, porquanto “ a distância era grande e servida de maus caminhos”.

Mas a vintena de Montalegre aparece referenciada no Censo Geral do Reino de 1527, como tendo 76 moradores. À vintena de Montalegre refere-se também a Carta do Termo do Concelho, de 10 de agosto de 1532. Giraldo Costa no seu ‘Esboço Corográfico do Sardoal’ (1882) refere-se-lhe nestes termos: “Ainda hoje faz um bodo em igual festividade do Espírito Santo, menos aparatoso porém, na capela de S. Tiago pertencente a um grupo de povoações denominado os Mógãos e componente da freguesia”.
Sobre as potencialidades da freguesia, transcreve-se parte de um texto, publicado num suplemento do jornal ‘A Hora’, sobre o distrito de Santarém, em julho de 1940: “Constitue uma riqueza deveras notável para a freguesia a exploração das madeiras de pinho. Quase todos os terrenos incultos, senão todos, se encontram cobertos de pinheiros, cuja madeira e resina representam a primeira exportação de Santiago de Montalegre”.
Freguesia do concelho de Sardoal com 17km², constituída por Amieira, Brescovo, Casal dos Pombos, Cerro, Codes, Lameiras, Lobata, Lomba, Mivaqueiro, Mogão Cimeiro, Mogão Fundeiro, Montalegre, Portela Selada, Salgueira e S. Domingos (que pertence a mais de uma freguesia e concelho), para além de algumas habitações isoladas, com uma população residente, segundo os Censos de 2021, de 208 indivíduos.
Uma reduzida população, provavelmente resultado da sua localização geográfica, de histórico rural, com um passado recente marcado por fluxos migratórios que transformaram, de forma transversal, todos os territórios do interior.

Já passou o tempo dos resineiros, apesar da paisagem da freguesia de Santiago de Montalegre ser fortemente marcada por pinheiros e eucaliptos. “Desencarrascavam os pinheiros, mais tarde alisavam, metiam os bicos, e as cavilhas e, sobre estas, assentavam os canecos. Para abrir e para renovar as sangrias usavam uma enxó, o ferro francês ou americano, tiravam a casca e injetavam ácido sulfúrico. Na recolha da resina era usado o texto ou telhador (os homens) e a espátula (as mulheres) com os caldeiros em que levavam a resina para a barrica. No fim dos trabalho fazia-se a desmontagem e procedia-se à recolha da raspa”, explicou ainda Francisco da Silva António no mesmo livro.
Portugal já foi um dos líderes mundiais de produção de resina, tendo chegado a produzir 140 mil toneladas em 1984, alguma de território sardoalense, contrastando com a produção mais recente, em 2012, de seis mil toneladas.
Existiram, ao que se recorda o povo, duas resineiras artesanais em Santiago de Montalegre; uma no Alto da Lomba e outra no Vale da Moucha “demolida para aí ser construída uma serração. Também fabricavam aqui carvão. Este tipo de resineiras, também chamadas de recuperadoras de pêz, utilizavam os tocos ou cepos dos pinheiros e, através do calor, extraíam a resina. Ainda hoje existem restos da que funcionou no Alto da Lomba e que trabalhou muito anos”, acrescenta o autor.

Desses tempos recorda-se bem Aida Lucas, de 82 anos, que encontramos no seu estabelecimento comercial, em São Domingos, à beira da Estrada Nacional 2, junto a um mural intitulado ‘O caminhante – Santiago peregrino’ pintado por Francisco Camilo, tendo essa pintura contado com a colaboração da Associação dos Amigos de Santiago de Montalegre.
Aida, cujo estabelecimento está na fronteira com o concelho de Abrantes, é a última das taberneiras e fala de um passado, um tempo de “muito movimento”, uma vez que por aquela Estrada “passavam carros vindos de Vila de Rei, da Sertã, com resinas e madeira”. Portanto, o seu estabelecimento de “comércio misto” – taberna, mercearia, café – era um ponto de paragem, junto ao quilómetros 380.
São Domingos, que já se chamou São Domingos da Roda, é uma aldeia que, “por uma aberração administrativa metade pertence ao concelho de Sardoal e a outra metade ao concelho de Abrantes. Quanto à parte religiosa, São Domingos pertence na sua totalidade à Paróquia de Santiago de Montalegre”, dá conta igualmente Francisco António.

Aquela será sempre a taberna do Mateus (Mateus Lucas, pai de Aida), fundada em 1946 e cuja filha passou toda a vida “atrás do balcão”, vendendo de tudo um pouco, desde louças, roupas, mercearias a cereais. Atualmente vende, basicamente, bebidas e rações para animais. A sua mãe, Clara de Jesus, faleceu no ano passado com 106 anos, sendo uma figura conhecida por todos em São Domingos. Era então a pessoas mais idosa da freguesia de Santiago de Montalegre.
Aida reconhece que, nos dias que correm, os habitantes são em menor número, e preferem comprar nas grandes superfícies comerciais. Talvez porque “hoje as pessoas têm mais dinheiro”, considera. Ainda assim, a loja mantém-se aberta para “os clientes certos que gostam de comprar”, nota, falando do negócio familiar do qual tomou as rédeas por ser a única filha de Mateus Lucas. “Tive um irmão mas faleceu aos 16 anos. E tive de ficar porque o meu pai gostava disto”.

Hoje sente aquele lugar, onde ainda se pode comprar tripas para encher chouriços ou feijão a granel, como “um entretém para mim. Um sítio para conversar, de convívio”, com os vizinhos ou com quem possa passar pela taberna. “Até que possa vou manter isto aberto”, garante. Depois, o destino mais certo será encerrar as portas porque “a vida dos meus filhos não é aqui”, antevê.
Em Montalegre, logo à entrada para quem vem de Mogão Cimeiro, encontramos a rua da Escola e por lá, para resgate e reconstrução do passado, com preservação e divulgação das gentes, dos usos e dos costumes de Santiago de Montalegre, Vasco Navalho e Cláudia Luís decidiram implementar o conceito de ‘Lugar de Memória’ na antiga escola primária daquela aldeia.

Na antiga escola de Montalegre funciona, há já algum tempo, mediante protocolo com o Município de Sardoal, a sede da Associação dos Amigos de Santiago de Montalegre.
Um projeto idealizado para ser um pequeno núcleo museológico dos suportes culturais de usos e costumes daquela freguesia do concelho de Sardoal, designadamente os utensílios caseiros e de lavoura, as antigas explorações de minérios e a paleontologia, e os fósseis (trilobites e cruzianas) que em Santiago de Montalegre, diz-se, “parecem nascer das pedras”.
O ‘Lugar de Memória’ conta já com mais de 500 peças, sendo que Vasco, noutros dois museus privados, arrisca uma contabilidade na ordem das 40 mil peças, e pode ser visitado por quem tiver interesse.
Na outra escola, no Codes, o Município criou um centro de férias que tem vindo a ser utilizado por jovens, designadamente por escuteiros. Pelas escolas de Montalegre passou, durante dezenas de anos, toda a infância da freguesia.

A freguesia guarda ainda outras curiosidades como a batalha da ‘Oliveira da Freira’ por altura das Invasões Francesas, uma batalha que a história esqueceu mas que permanece viva na memória do povo.
Derivado aos rigores do forte inverno de 1807, diz que foram muitas as dificuldades encontradas pelo exercito francês, comandando pelo general Junot, na sua passagem por toda a Beira Baixa e Alto Ribatejo “já que as fortes cheias dos rios Ocreza e Zêzere não deram facilidades nas suas travessias”, explica também Francisco António no livro ‘Santiago de Montalegre – A história, as lendas, as gentes’.
“Foi feita então por Junot, uma divisão de tropas em Cardigos em três grupos. Um dos grupos passaria a Barca do Codes, em direção à Matagoza, seguindo para São Domingos. Um segundo grupo entraria pela Foz da Amieira seguindo depois para o Codes também com destino a São Domingos. O terceiro grupo passaria pela Tojeira, seguindo depois por Amieira e Malhadal, juntando-se também aos outros grupos em São Domingos.

Chegados ao concelho de Vila de Rei, os soldados franceses foram valentemente batidos pelas populações que eles tentaram saquear, tendo, por exemplo, na aldeia de Milreu, sido mortos vários soldados de Junot.
Mas se os rios Ocreza e Zêzere ainda dispunham de alguns rudimentares locais de passagem, o pior estava ainda para vir, com a passagem pela ribeira do Codes, uma das mais fragosas de Portugal, e onde a força das águas tinha levado consigo tudo o que desse passagem para a outra margem.
Junot tinha conhecimento disso, e daí ter ordenado a divisão do exército em três, para que a passagem na ribeira do Codes fosse feita com mais segurança”, acrescenta o autor na mesma obra.

Já Rogério Pires, natural de Casal dos Pombos, conta assim a história da batalha da ‘Oliveira da Freira’:
Segundo consta “alguns militares portugueses, apoiados pelas milícias populares envolveram-se numa dura batalha com os franceses no local chamado ‘Oliveira da Freira’. A ser verdade, a escaramuça aconteceu por certo entre portugueses e um dos grupos de militares franceses que procuravam garantir alimentação para o grosso do exército que se encontrava estacionado nos arredores, mais propriamente em Chão da Armada.
Este local (hoje um pinhal cerrado) era uma quinta com olival. Na dureza do combate morreram muitos franceses e os sobreviventes puseram-se em fuga em direção a Aldeia do Mato e Souto onde aguardaram a chegada do grosso das tropas do exército invasor”.
Diz que ouviu alguns idosos de Santiago de Montalegre referirem-se a esse local como “Tapada dos franceses” ou “Cova dos franceses” por ali terem sido enterrados os corpos dos que tombaram em combate.
“Uma certeza é que a memória do povo transportou ao longo dos tempos, muitas histórias relacionadas com a passagem devastadora das tropas francesas” pelas aldeias de Sardoal. “Este facto leva-nos a acreditar na veracidade da história da batalha da ‘Oliveira da Freira’, nos seus contornos e nos bizarros acontecimentos que se lhe seguiram”, conta ainda.
Muitos séculos antes, Romanos e Mouros habitaram aquele território. Estes últimos por ali viveram durante quatrocentos anos existindo na freguesia de Santiago de Montalegre evidentes vestígios da sua passagem, nomeadamente os célebres poços dos Mouros, de exploração de minérios, como o ouro. Esses poços, que resistiram à passagem do tempo, dariam ligação a umas minas que desembocavam na Horta Velha, perto de Montalegre.

Mas muitos outros povos passaram por estas terras, antes e depois dos Romanos, que deixaram vestígios. A própria ribeira do Codes tem um nome derivado do latim: cos, cotis, que significa seixo ralado ou pedra de afiar. Como se sabe, ainda hoje, é uma grande ribeira de seixos moldados, pelas tantas vezes que a água por lá passou. Quanto a nós, por certo, voltaremos a passar por Santiago de Montalegre.
Bom dia,
O artigo tem um erro… o mural junto à taberna da Ti Aida, não é alusivo a Santiago de Compostela, mas sim a São Tiago, o padroeiro de Santiago de Montalegre…
Apenas há um São Tiago (Maior, claro), tem é mais que uma designação. Cumprimentos.