A tradição dos tapetes de flores nas igrejas e capelas de Sardoal, durante a Páscoa, já existia com grande esplendor no século XIX. Créditos: Paulo Jorge de Sousa/CMS

Além do perfume das pétalas de flores e das verduras que enfeitam as igrejas e capelas de Sardoal, a Semana Santa também envolve amêndoas e ovos da Páscoa, mas este ano tem um sabor ainda mais doce; o do reconhecimento, chegado da Direção-Geral do Património Cultural. A inclusão da Semana Santa e da Festa do Espírito Santo no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial é considerado “justo” pelo trabalho desenvolvido no Concelho no âmbito da preservação das tradições. Um trabalho que vai muito além da autarquia ou das crenças religiosas e que envolve toda uma comunidade.

“A Semana Santa para o Sardoal é um tempo único, que envolve toda a comunidade sem exceção, é um momento em que todos os caminhos vão dar a Sardoal. Este ano com a novidade acrescida que a classificação de Património Cultural Imaterial com publicação em Diário da República no dia 28 de dezembro de 2023. Uma honra dos sardoalenses que têm sabido manter esta tradição ao longo de séculos”, começou por dizer o presidente da Câmara Municipal de Sardoal na quinta-feira, aquando da visita aos templos da vila decorados com tapetes de flores com desenhos alusivos à época.

O trabalho para a elaboração dos tapetes de flores começa sempre na quarta-feira que antecede a Páscoa, prolongando-se pela noite dentro, envolvendo toda a comunidade, com as capelas e igrejas a abrirem ao público no dia seguinte.

ÁUDIO | PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE SARDOAL, MIGUEL BORGES

Trata-se de uma tradição que se julga única no País, sabendo-se que já existia com grande esplendor no século XIX. O facto da Páscoa ser para os católicos a festa mais importante da fé cristã, porque celebra a “Salvação”, essa verdade não escapa nem aos sardoalenses nem a quem os visita, na fé e na curiosidade de conhecer as tradições partilhadas.

E se a Semana Santa do Sardoal encerra em si uma riqueza ancestral que, anos após ano, é renovada com alegria e muita dedicação, é certo que os tapetes de flores são uma das iniciativas mais emblemáticas das celebrações pascais, em Sardoal, atraindo milhares de visitantes.

Há uma teoria sugestiva sobre a criação dos tapetes de flores, que atualmente são instalações de arte que saem da mente criativa e das mãos habilidosas dos populares inspirados pelo tema da Semana Santa. Conta-se que, em 1303, aquando de uma vista da Rainha Santa Isabel a Sardoal, na pobreza e sem tapetes persas para receber condignamente a rainha consorte de Portugal, fizeram-se tapetes de flores.

Especulação ou suposição, facto é que a tradição dos tapetes feitos à base de pétalas de flores e verduras naturais veio para ficar, mantendo-se não só em Sardoal como se estendeu, desde há uma dúzia de anos, a capelas e igrejas de fora da vila, neste momento são 13, para apreciação de todos até domingo de Páscoa.

A visita começou pela Igreja da Matriz, uma visita guiada por João Soares, técnico de Conservação e Restauro da Câmara Municipal de Sardoal. O templo é o elemento patrimonial mais importante do concelho. Foi construída nos finais do século XIV ou século XV. Possui elementos de várias épocas, Gótico, Renascimento, Barroco até ao Neoclássico. Do século XVI os elementos mais importantes são seguramente as tábuas do Mestre do Sardoal. O altar-mor em talha dourada, do período Barroco Joanino, e os painéis de azulejos de Gabriel del Barco são outros elementos a destacar.

A Igreja Matriz da Paróquia de São Tiago e São Mateus, que possui três naves, rosáceas, e do lado esquerdo a Capela lateral dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, onde estão as Tábuas do Mestre Sardoal deixadas por Vicente Gil e Manuel Vicente, é uma das mais importantes heranças culturais e artísticas do concelho.

A importância da oficina do Mestre do Sardoal para a História da Arte Portuguesa centra-se na transição do estilo gótico para o renascentista, designados por “Primitivos Portugueses”.

Nessa igreja, com cortinas e passadeiras em tom carmim, um retábulo para onde é transladado o “Santíssimo” após a cerimónia do lava pés, não se instalou um tapete de flores. A tradição passa pela ornamentação do altar com mais de 30 vasos de trigo germinado no escuro, adquirindo por isso uma tonalidade amarela, da responsabilidade do sardoalense José Martins. Ali será adorada a hóstia consagrada. Todos os anos a decoração é a mesma, simbolizando a ressurreição depois da primeira Eucaristia com a consagração do pão.

Do lado direito, está o retábulo da Nossa Senhora da Conceição e outras esculturas cenográficas na tentativa de aproximação do real. A estátua, tal como uma outra representando a Senhora das Dores, veste-se de cabelo verdadeiro para dar sentido de realidade a quem a observa, à semelhança do que se fez em Sevilha, na vizinha Espanha. São imagens que guardam grande carga emocional.

Seguiu-se a Igreja da Misericórdia, marco da arquitetura da Renascença na região, uma Igreja do século XVI com decoração típica da renascentismo, cujo ícone é uma Nossa Senhora que carrega um manto num simbolismo de proteção de todos os povos. Mas remonta a 1370, quando os reis D. Fernando e D. Leonor Teles visitaram a vila de Sardoal, tendo a rainha pedido para ser erguida uma pequena ermida. A atual igreja remonta ao ano de 1551, com um portal renascentista de autoria de João de Castilho, em pedra Ançã.

No corredor em repouso, aguardando mais à noite a Procissão do Senhor da Misericórdia (ou Fogaréus), painéis representando Cenas da Paixão de Cristo, pertença da Misericórdia. Mais à frente a primeira instalação que vimos, o tapete de flores cujo desenho transporta o visitante para o vitral, técnica muito presente na arte sacra. Nele surge representada a cruz, com a particularidade de se encontrar iluminada por um holofote.

Visita aos tapetes de flores nas igrejas e capelas durante a Semana Santa de Sardoal. Créditos: mediotejo.net

Os materiais que o compõem são de origem natural. Flores silvestres e verdura. Estão também presentes quatro cores diferentes com diferentes significados: roxo (paixão de Cristo); verde (esperança, cura e caridade); branco (luz divina, paz e redenção); e amarelo (luz divina).

Já a Capela do Espírito Santo apresenta linhas arquitetónicas simples, data do século XVI, tendo no pórtico a data de 1603, correspondente a obras. Contudo, conhecem-se referências mais antigas, de 1470, no reinado de D. Afonso V, referências essas relacionadas com as Festado do Bodo (Espírito Santo).

Este ano, a instalação de arte floral desenha a cruz e o sagrado coração de Jesus com um espaço central para ser pisado pelos visitantes. É aromático, exala fragrâncias de rosas, de alfazema, de rosmaninho e camélia.

O objetivo é dotar o ambiente de aromas que “inebriem o Senhor”. Entre o tapete e esse corredor florido uma salva de prata, assente em alecrim, recolhe dádivas em dinheiro que os mais caridosos queiram deixar. A representação é Pentecostes em celebração da descida do Espírito Santo. Vê-se uma pomba debaixo da barba do ‘Pai’, insinuando o sopro de Deus.

Entrou-se depois na Capela da Nossa Senhora do Carmo, com fachadas do século XVIII, restaurada em 2021, e em termos decorativos uma das mais belas de Sardoal, onde está situado o Centro de Interpretação da Semana Santa e do Património Religioso. Neste espaço o visitante pode conhecer os elementos mais significativos da Semana Santa do Sardoal, bem como o vasto património religioso e arquitetónico do Concelho. O tapete floral acompanha o estilo rococó com curvas e arcos em tons de roxo, amarelo, vermelho e branco.

A Capela de Santa Catarina tal como a de Sant’Ana foram em tempos capelas particulares de famílias que as doaram à paróquia de Sardoal. Naquela capela um tapete de flores elaborado pelo GETAS – Grupo Experimental de Teatro Amador de Sardoal, com elementos naturais, em vermelho, roxo e branco. Um tapete de flores da Pietà, criado por Sílvia Gil do GETAS.

É uma obra de arte que transcende a mera reprodução, inspirado na icónica escultura de Michelangelo, o tapete torna-se uma expressão profunda de fé e devoção.

Na Capela de Sant’Ana, o desenho do tapete apresenta a simbologia da Páscoa, com o cálice, a hóstia e as três cruzes do calvário que utiliza pétalas de flor roxas, rosa, amarelas, brancas, algum verde e bolotas castanhas de um jacarandá que floresce numa das avenidas da vila.

“É isto que os tapetes fazem; é também conhecer novos elementos, é estar na natureza e unir a comunidade”, disse João Soares durante a visita.

Na Capela do Senhor dos Remédios, encontra-se o tapete elaborado por Laura Sousa, aluna que venceu a edição 2024 do Projeto Capela, com um desenho que sugere a Procissão dos Fogaréus. E ao lado, na igreja conventual de Santa Maria da Caridade, no mosteiro, um tapete da autoria da Santa Casa da Misericórdia em tons de verde, rosa, branco e amarelo inspirado num dos símbolos presentes na igreja.

Uma igreja com dois retábulos, relicário, maneirista com transição para o barroco, vindo de Nagazaki, Japão, obra dos jesuítas, um oratório de arte namban, arte produzida pelos nativos japoneses de Nagazaki para a Europa. Sendo que existem 25 em todo o mundo e apenas dois com aquele tamanho, explicou João Soares.

Trata-se de uma pintura a óleo sobre cobre com a figura da Virgem. Toda a decoração prende-se com temas nipónicos como a laranjeira e o pessegueiro que representam a pureza e a família. O original que pode ser visto na exposição “Expressões do Sardoal Sagrado – Arte Sacra”, patente até 7 de abril, no Centro Cultural Gil Vicente.

O Oratório de Arte Namban (Japão), uma das peças mais importantes do concelho e do país, doada ao Convento de Santa Maria da Caridade, em 1670, por D. Jerónima de Parada. Trata-se de uma peça de madeira lacada de negro, com decoração a pó de ouro, prata e cobre, sobre a marcação a laca vermelha, sendo incrustada de madrepérolas. Com ferragens de cobre trabalhado e douradas, a pintura é de óleo sobre cobre e representa Nossa Senhora da Esperança.

O Seigan, do século XVII, pertence ao período Momoyama “um período onde a arte expande bastante, é exuberante, onde os japoneses utilizam, nos templos e nos palácios, o ouro como fundo, e este oratório retrata uma história de amor. Era de um sardoalense, de Valhascos, que estava em Nagazaki, Tiago Lacerda, que ofereceu este Oratório à sua esposa – daí uma prova de amor – Jerónima de Parada”, indicou o técnico do Município.

“E ela, em testamento, doou aos frades do Convento de Santa Maria da Caridade na condição de ficar sepultada ao pé do retábulo de Nossa Senhora da Esperança, na condição do retábulo estar sempre restaurado e embelezado”, explica João Soares.

A sacristia do convento, onde se guardam os paramentos e as alfaias litúrgicas, é de 1720, em talha gorda com pinturas de óleo sobre tábua onde também está presente o gosto nipónico com desenhos de folhas de pessegueiro e pagodes.

Um amituário para guardar o amitos, uma espécie de golas que fazem parte dos paramentos, e uma credência (mesa) do século XVIII em mármore português. A peça mais rara da sacristia é uma caldeirinha de água benta em bronze. Os freixos plantados à volta do convento vieram na nau de Vasco da Gama de Nagazaki há 500 anos.

A visita às capelas e igrejas da vila contou com vários convidados, entre eles autarcas e outras pessoas ilustres, como o ex-presidente do Turismo do Centro, Pedro Machado, e a atual vice-presidente do Turismo do Centro, Anabela Freitas.

Pelo 12º ano consecutivo, as aldeias do concelho juntam-se à iniciativa no adorno das igrejas e capelas fora do centro da vila. Andreus, Cabeça das Mós, Entrevinhas, Igreja de Valhascos, Mivaqueiro, Monte Cimeiro, Panascos, Presa, Santiago de Montalegre, São Bartolomeu – Valhascos , São Simão, Vale de Onegas e Venda Nova também embelezaram os seus templos religiosos na edição de 2024 da Semana Santa de Sardoal, podendo ser visitados no sábado, 30 de março, das 14h30 às 18h00.

O Município de Sardoal disponibiliza transporte para a visita a estas capelas e igrejas, às 10h00, de sábado, com partida junto ao Centro Cultural Gil Vicente.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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