Começou na Antiga Grécia, passou para a teoria da Origem das Espécies e terminou com um crime perpetuado por duas irmãs. Foi assim a primeira temporada da Rede Eunice no Centro Cultural Gil Vicente, que disse “até breve” este sábado, dia 14, com as peça “As Criadas”. O público assistiu à conspiração e voltou a provar que no projeto de descentralização cultural do Teatro Nacional D. Maria II a baixa densidade dos territórios envolvidos contrasta com a alta densidade da plateia.
A estreia da Rede Eunice no Centro Cultural Gil Vicente deu-se em novembro do ano passado com o desespero de um pai, dividido entre salvar a sua filha ou a filha de Zeus, Helena. Os ventos de “Ifigénia”, personagem principal da tragédia grega escrita por Eurípedes, sopraram favoravelmente porque a plateia encheu e os navios de guerra zarparam do porto de Áulis rumo a Tróia.

Dois meses condensaram dois mil anos e, em janeiro, o mesmo palco recebeu Charles Darwin e a “Origem das Espécies”, baseada na obra publicada pelo biólogo e naturalista inglês em 1959 depois de também se fazer ao mar, mas a bordo do H.M.S. Beagle. As tempestades da expedição foram prenúncio da que viria a gerar nas mentalidades do século XIX com a “Árvore da Vida” e a teoria da evolução dos seres vivos a partir de um ancestral comum.
Também nesta viagem os ventos foram favoráveis para o Sardoal e a lotação voltou a esgotar, desta vez a serem a famílias do Médio Tejo a assistir a uma coprodução do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM) num território de baixa densidade. Como companhia tiveram Eunice Muñoz, a grande dama do teatro cuja carreira o TNDM homenageia com este projeto de descentralização cultural, e Tiago Rodrigues, diretor artístico do TNDM e encenador das duas peças.

O objetivo delineado pelo TNDM para a criação da Rede Eunice estava cumprido e os ventos de bonança voltaram a soprar este sábado com mais um espetáculo em que a densidade do público foi alta. A plateia esteve vazia e foi nas bancadas colocadas no palco que se assistiu à conspiração das irmãs Clara e Solange, encenada por Marco Martins a partir do texto do escritor, poeta e dramaturgo Jean Genet.
A escolha para o fecho da primeira de três temporadas que passam pelo Centro Cultural Gil Vicente foi “As Criadas”, baseado em Christine e Léa Papin que assassinaram a patroa e a filha em 1933. A vítima mais nova foi “poupada” na história interpretada por Beatriz Batarda, Luísa Cruz e Sara Carinhas, restando duas empregadas saturadas da vida que levam e uma patroa que nunca chegamos a descobrir se é tão ignóbil quanto nos mostram as irmãs.
Um homicídio que vai sendo desenhado a giz no chão de ardósia, tal como os móveis Luís XV, o despertador de cozinha que alerta para o regresso da senhora, a chave do toucador fora do sítio e muitas flores. No ar ganham forma o ódio, a vergonha, a lascividade, a raiva e o medo durante os jogos que Clara e Solange repetem vezes sem conta, trocando identidades entre quem manda e quem obedece, entre quem mata e quem é assassinado.

Nos pés da senhora os sapatos de verniz com brilho puxado à custa da saliva, nas mãos da criada as luvas vermelhas que não deixam entrar o detergente da loiça, nem sair as impressões digitais. O cenário sai do quadrado, mas é dentro de um quadrado a fazer lembrar um ringue de boxe que o enredo se desenrola. Ali, dá-se a luta entre classes, usada por muitos para justificar o crime no século XX. Ali, cruza-se a linha entre o querer e o fazer.
O brilho da loucura no olhar acende e apaga como as luzes fluorescentes penduradas. Uma intermitência que gera desconforto, envolvendo o público na cumplicidade que une irmãs e assassinas no crime que não chegamos a ver, mas do qual tomamos conhecimento pouco antes das atrizes regressarem ao quadrado para receber os aplausos no encore.
O pano do Centro Cultural Gil Vicente desceu, mas volta a subir brevemente para a Rede Eunice no arranque da temporada 2017/18, ainda sem data definida. Não se sabe se os ventos voltarão a soprar favoravelmente, mas sabe-se que até 2019, a sala de espetáculos do concelho que integra a rota cultural do TNDM juntamente com o Teatro Municipal de Vila Real e o Teatro Municipal Baltazar Dias (Funchal, Madeira), recebe seis novos espetáculos.