Os tapetes de flores nas capelas são uma tradição única no País e das mais emblemáticas das celebrações da Páscoa. É na união da comunidade sardoalense que se garante o perpetuar deste património imaterial. O mediotejo.net foi ao campo apanhar flores com o grupo responsável pelo tapete na Capela de Sant’Ana, na quarta-feira, 5 de abril. Depois, na quinta-feira, acompanhou a visita a sete templos com todos os tapetes já finalizados no seu interior – muitos foram feitos pela madrugada fora e estarão em exposição até ao domingo de Páscoa.

O campo espera-nos e o sol colabora e acompanha-nos naquelas que serão três horas a apanhar flores, a manhã perfeita para Carolina, a pequena filha de Susana Passarinho responsável pelo desenho que este ano está exposto e composto em pétalas e materiais diversos na Capela de Sant’Ana. A menina integra o grupo, tal como Diogo de 10 anos, neto de Fernanda Pombo, a zeladora da Capela, seguindo os passos da mãe e da madrinha, um compromisso que tem passado de geração em geração. Aguarda-a o filho, César Grácio, habituado às tarefas a que os tapetes de flores obrigam na Semana Santa de Sardoal desde os seis anos, há 40 anos, portanto.
“É importante que as crianças participem na realização dos tapetes de flores, para interiorizarem a tradição e a mantenham quando forem adultos”, diz César. A tradição, com características únicas no País, sabendo-se que já existia com grande esplendor no século XIX, é levada a efeito na noite de quarta-feira, prolongando-se em alguns casos pela madrugada dentro, por grupos de moradores e entidades associativas.




Este ano o grupo responsável por ir ao campo apanhar flores, na manhã desse dia – as pétalas têm de estar o mais frescas possível para não murcharem e aguentarem desde quinta-feira Santa a domingo de Páscoa -, conta com seis pessoas, entre elas Inês Aparício que apesar de jovem também não é uma novata nestas andanças. Mas habitualmente o grupo une 20 pessoas nos afazeres , incluindo na execução do tapete.
Compor um tapete de flores, apreciado por milhares de pessoas durante a Semana Santa de Sardoal, não é tarefa fácil, é preciso tempo, dedicação e amor pela preservação da tradição. Primeiro criar o desenho com motivos alusivos à Quadra Pascal, que possa ser composto e definido com pétalas de flores, depois iniciar os preparativos “normalmente no domingo [antes da Páscoa]” , como a aplicação do desenho no chão da Capela, explica Susana.


Portanto, a noite é passada nessa tarefa de composição artística, embora aquando da nossa reportagem muito trabalho já estivesse feito, ou seja, o desenho passou do papel, da maquete, para o chão. Aliás, as novas tecnologias permitem que tenham criado um grupo no WhatsApp, por norma residentes nas proximidades da Capela, dedicado aos tapetes de flores e um dossier de arquivo cheio de desenhos, muitos da autoria de Susana, embora este ano tenham optado por um registo “mais simples” e apenas um desenho. Normalmente cada ano são apresentadas três opções.
César explica que na opção pela “simplicidade” pesou a “falta de flores” campestres. “As flores floriram este ano mais tarde” e como o trabalho tem de ser iniciado com bastante antecedência, temeram o pior e portanto acautelaram.
Recorda “os imensos jardins na quintas à volta de Sardoal. Para a apanha das flores, as pessoas iam com o itinerário traçado. Nunca havia falta de flores, agora já não é bem assim. O despovoamento do interior, a perda de população, contribuiu para isso”. Agora conta-se basicamente com natureza.
“No tempo da minha avó, ela pedia as flores aos proprietários das quintas e era também uma forma de visitar as pessoas. Isso vai-se perdendo”, lamenta.

Susana conta que iniciou a participar na composição dos tapetes de flores aos 17 anos, “era colega do César na escola e desafiada por ele vim”. Depois parou durante uma década – devido à tenra idade dos filhos e regressou no ano passado.
Para a Capela de Sant’Ana, pensou num desenho para o tapete com uma cruz com três círculos com as diferentes fases da paixão de Cristo: a última ceia, a crucificação e a ressurreição. Nessa sequência decidiu-se por cores acompanhando as procissões de Sardoal; primeiro o roxo e por fim o vermelho, utilizando pétalas de flor roxas, amarelas, brancas, vermelhas e rolhas de cortiça que foram pedir aos restaurantes, introduzindo no tapete a preocupação com a preservação do ambiente e com a reciclagem. Em outros anos utilizaram carrasca de pinheiro e pedra cascalho.
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No campo procuram glicínias, urze, rosmaninho, malmequeres amarelos e giestas. Também flores com pétalas vermelhas, mas não podem ser de papoila, que por estas dias começa a desabrochar na natureza, devido à fragilidade das suas pétalas. A experiência orienta o grupo para a recolha das flores que mais se adequam aos tapetes.
Na procura foi necessário passar pelos campos de Entrevinhas, junto aos moinhos, onde encontramos sardoalenses a apanhar flores para a capela local e para a de Valhascos. Um ritual que se cumpre todos os anos, e se as flores colhidas não bastarem para a composição, volta-se ao campo até haver pétalas em número suficiente. Dependendo da flor, algumas precisam de reforço durante os quatro dias de exposição, que decorre entre quinta-feira e o Domingo de Páscoa.
Fernanda Pombo começou com sete anos, hoje tem 77. Recorda que antigamente a Capela de Sant’Ana todos os anos tinha um tapete com o mesmo formato: uma estrela e uma cruz, um molde que ainda resiste ao tempo numa arrecadação da família.
“Ficava uma maravilha, a estrela, cada ponta com uma cor”, recorda Fernanda, que desde sempre se lembra desta tradição e que “mais ou menos têm-se mantido, com uma diferença: “agora também se utilizam flores da florista e antigamente eram só do campo e das casas das pessoas porque não havia outra coisa”.

Trata-se de uma capela privada do século XVIII, doada ao cónego Silva Martins que a veio a oferecer à paróquia de Sardoal. Apresenta uma arquitetura rebuscada, com frontão triangular sobre a porta. No retábulo da capela-mor, de estilo Rococó, de madeira dourada e marmoreada, encontramos uma imagem muito particular de Santa Ana com a Virgem ao colo e esta, por seu lado, com o Menino Jesus ao colo. Protetora das grávidas, Santa Ana é conhecida como a imagem das ‘Santas Mães’.
Depois da colheita, o trabalho passa por desfolhar as pétalas, ou “depenicar” como dizem os sardoalenses “embora algumas margaridas fiquem intactas” fazendo um contraste que Susana considera “interessante”.
Mas a conceção do tapete não é a única preocupação do grupo. As luzes e a sua instalação para uma melhor iluminação da obra também preocupa. Fernanda recorda que antigamente era mais fácil. “Usavam-se as latas de graxa dos sapatos, com lamparinas dentro, azeite e era assim que funcionava. Acendia-se” a luz.
Como já foi referido, a tradição dos tapetes de flores nas igrejas e capelas de Sardoal, durante a Páscoa, já existia com grande esplendor no século XIX. O facto da Páscoa ser para os católicos a festa mais importante da fé cristã, porque celebra a “Salvação”, essa verdade não escapa nem aos sardoalenses nem a quem os visita na fé e na curiosidade de conhecer as tradições partilhadas. Enfeitar o interior das Igrejas e Capelas com tapetes de flores é uma das mais emblemáticas cerimónias da Semana Santa de Sardoal.

Há uma teoria sugestiva sobre a criação dos tapetes de flores, que atualmente são instalações de arte que saem da mente criativa e das mãos habilidosas dos populares inspirados pelo tema da Semana Santa, contendo símbolos eucarísticos, como a cruz, ou as velas, ou o sol, ou o pão, ou mesmo a figura de Cristo. Conta-se que, em 1303, aquando de uma vista da Rainha Santa Isabel a Sardoal, na pobreza e sem tapetes persas para receber condignamente a rainha consorte de Portugal, fizeram-se tapetes de flores.
Especulação ou suposição, facto é que a tradição dos tapetes feitos à base de pétalas de flores e verduras naturais veio para ficar, mantendo-se não só em Sardoal como se estendeu, desde há nove anos, a 10 capelas e igrejas do concelho fora da vila, para apreciação de todos no sábado de Páscoa, com visita guiada.
A visita inaugural na quinta-feira começou pela Igreja da Matriz, uma visita guiada por João Soares, técnico de Conservação e Restauro da Câmara Municipal de Sardoal. O templo é o elemento patrimonial mais importante do concelho. Foi construída nos finais do século XIV ou século XV. Possui elementos de várias épocas, Gótico, Renascimento, Barroco até ao Neoclássico. Do século XVI os elementos mais importantes são seguramente as tábuas do Mestre do Sardoal. O altar-mor em talha dourada, do período Barroco Joanino, e os painéis de azulejos de Gabriel del Barco são outros elementos a destacar.
Mas nesta quinta-feira 6 de abril, na vista à Igreja Matriz, o presidente da Câmara Municipal voltou a referir a necessidade urgente de recuperação daquele património dos finais do século XIV, com graves problemas de conservação não só do edifício como do património integrado e móvel. Mas Miguel Borges está otimista e acredita que, ultrapassada a questão da classificação da Igreja – não sendo património classificado nacional – o próximo quadro comunitário abrirá caminho ao financiamento para a recuperação da igreja.

Recorda-se que há três anos o Turismo de Portugal rejeitou a candidatura da Fábrica da Igreja Paroquial da freguesia de Sardoal ao Programa “Valorizar”, no âmbito da requalificação da Igreja Matriz, por considerar não ser património do interesse turístico nacional.
A Igreja Matriz da Paróquia de São Tiago e São Mateus que possui três naves, rosácea e do lado esquerdo, a Capela lateral dedicada ao Sagrado Coração de Jesus onde estão as Tábuas do Mestre Sardoal, deixadas por Vicente Gil e Manuel Vicente, é uma das mais importantes heranças culturais e artísticas do concelho.
A importância da oficina do Mestre do Sardoal para a História da Arte Portuguesa centra-se na transição do estilo gótico para o renascentista, designados por “Primitivos Portugueses”.
Nessa igreja, com cortinas e passadeiras em tom carmim, um retábulo para onde é transladado o “Santíssimo” após a cerimónia do lava pés – já se pode observar as toalhas em repouso nas cadeiras enfileiradas – , não se instalou um tapete de flores. A tradição passa pela ornamentação do altar com mais de 30 vasos de trigo germinado no escuro, adquirindo por isso uma tonalidade amarela. Ali será adorada a hóstia consagrada. Todos os anos a decoração é a mesma, simbolizando a ressurreição depois da primeira Eucaristia; a consagração do pão.
Do lado direito, retábulo da Nossa Senhora da Conceição e outras esculturas cenográficas na tentativa de aproximação do real. A estátua, tal como uma outra representando a Senhora das Dores, veste-se de cabelo verdadeiro para dar sentido de realidade a quem a observa, à semelhança do que se fez em Sevilha, na vizinha Espanha. São imagens que guardam grande carga emocional.

Seguiu-se a Igreja da Misericórdia, marco da arquitetura da Renascença na região, uma Igreja do século XVI com decoração típica da renascentismo, cujo ícone é uma Nossa Senhora que carrega um manto num simbolismo de proteção de todos os povos.
No corredor em repouso, aguardando mais à noite a Procissão do Senhor da Misericórdia (ou Fogaréus), painéis representando Cenas da Paixão de Cristo, pertença da Misericórdia. Mais à frente a primeira instalação que vimos, o tapete de flores onde está representada uma pomba e uma cruz remetendo-nos para o Calvário mas também para a Ressurreição.
Os materiais que o compõem são de origem natural. Flores silvestres e carrasca de pinheiro. Estão também presentes cinco cores diferentes com diferentes significados: roxo (paixão de Cristo), castanho (terra, renascimento e ressurreição); verde (esperança, cura e caridade) e branco (luz divina paz e redenção).
A Igreja da Misericórdia situa-se nas proximidades da Igreja Matriz, constituindo-se como um dos principais e mais belos monumentos da vila de Sardoal.
Remonta à década de 1370, quando o rei D. Fernando I e a rainha D. Leonor aqui se refugiaram da peste que grassava em Lisboa, mandando erigir uma pequena Ermida. No entanto, trata-se de um templo do século XVI, possivelmente reconstruido e ampliado, conforme inscrição epigráfica numa das pilastras do pórtico (1551).
Os magníficos ornamentos renascentistas nos pórticos e numa janela atestam a feitura quinhentista deste equipamento, para além dos testemunhos documentais que revelam uma segunda remodelação no início da segunda metade da centúria de quinhentos.
Realce ainda para esta síntese cronológica, para a confirmação da Misericórdia de Sardoal pelo Papa Inocêncio IV (1554), como o título de Confraria de Santa Maria do Hospital.
Curiosamente esta Igreja não segue as normas de orientação clássicas, sendo a sua Capela-Mor orientada para poente.
Na Capela do Espírito Santo a instalação de arte floral desenhando uma cruz no centro. A representação na Capela é Pentecostes em celebração da descida do Espírito Santo. Vê-se uma pomba debaixo da barba do ‘Pai’, insinuando o sopro de Deus.

Entrou-se depois na capela de Nossa Senhora do Carmo, na Casa Grande, habitação do bispo do Brasil e primaz da rainha Dom Gaspar Barata Moura Mendonça. A Capela na qual foi instalado o Centro de Interpretação da Semana Santa com o objetivo de combater a sazonalidade turística e onde a Semana Santa passou a ser recriada e visitada durante os 365 dias do ano. Um tapete floral em tons de roxo, amarelo e branco.
A Capela de Santa Catarina tal como a de Sant’Ana foram em tempos capelas particulares de famílias que as doaram à paróquia de Sardoal. Naquela capela um tapete de flores elaborado pelo GETAS – Grupo Experimental de Teatro Amador de Sardoal, com elementos naturais, uma cruz em madeira e pétalas de flores espalhadas num conjunto com alguma inovação.
Também um tapete aromático à entrada, exala fragrâncias de alfazema, de rosmaninho, de alecrim, de bucho e camélia. O objetivo é dotar o ambiente de aromas que “inebriem o Senhor”.
Na Capela do Senhor dos Remédios, encontra-se o tapete elaborado por Leonor Carmo, aluna que venceu a edição 2023 do Projeto Capela. E ao lado na igreja conventual de Santa Maria da Caridade, no mosteiro, um tapete da autoria da Santa Casa da Misericórdia com um desenho inspirado num motivo esculpido em talha dourada, que compõe o altar-mor da Igreja de Santa Maria da Caridade.
Uma igreja com dois retábulos, relicário, maneirista com transição para o barroco, vindo de Nagazaki, Japão, obra dos jesuítas, um oratório de arte namban, arte produzida pelos nativos japoneses de Nagazaki para a Europa. Sendo que existem 25 em todo o mundo e apenas dois com aquele tamanho, explicou João Soares.
Trata-se de uma pintura a óleo sobre cobre com a figura da Virgem. Toda a decoração prende-se com temas nipónicos como a laranjeira e o pessegueiro que representam a pureza e a família. A sacristia do convento, onde se guardam os paramentos e as alfaias litúrgicas, é de 1720, em talha gorda com pinturas de óleo sobre tábua onde também está presente o gosto nipónico com desenhos de folhas de pessegueiro e pagodes.
Um amituário para guardar o amitos, uma espécie de golas que fazem parte dos paramentos, e uma credência (mesa) do século XVIII em mármore português. A peça mais rara da sacristia é uma caldeirinha de água benta em bronze. Os freixos plantados à volta do convento vieram na nau de Vasco da Gama de Nagazaki há 500 anos.
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Pelo nono ano, as aldeias do concelho juntam-se à iniciativa no adorno das Igrejas e Capelas fora do centro da vila. Presa, Panascos, Vale das Onegas, Santiago de Montalegre (igreja antiga junto ao cemitério), Mivaqueiro, Valhascos (S. Bartolomeu e Igreja), Venda Nova, São Simão, Entrevinhas e Andreus também embelezaram os seus templos religiosos na edição de 2023 da Semana Santa de Sardoal, podendo ser visitados sábado das 14h30 às 18h00. O Município disponibiliza transporte para a visita a estas capelas e igrejas, com partida às 10h00 junto ao Centro Cultural Gil Vicente.
Os tapetes nos templos refletem o empenho com que a comunidade sardoalense trabalha e se envolve na Semana Santa. É um trabalho minucioso que se prolonga durante dias e uma noite madrugada fora, nas vésperas das celebrações da Semana Santa. Dezenas de pessoas dedicam-se aos desenhos a recriar, à imaginação da paleta de cores, à escolha das flores certas a combinar. As gerações mais velhas ensinam as mais novas e assim se passam os segredos da tradição e da arte de fazer os tapetes de flores que decoram as capelas durante a Páscoa.
Sempre relacionados com símbolos pascais e religiosos, os tradicionais tapetes floridos colocam crentes e descrentes de olhos postos no chão, os mesmos que se levantam na contemplação obrigatória do património histórico, religioso e nas peças de arte sacra.