Ifigénia esgotou o auditório do Centro Cultural Gil Vicente. Foto: Paulo Jorge de Sousa

A Rede Eunice estreou-se no Sardoal este sábado, dia 26, com a assinatura do protocolo entre o município e o Teatro Nacional D. Maria II e a apresentação do espetáculo “Ifigénia”, baseado na personagem principal da obra do poeta Eurípedes. A tragédia grega sobre um homem dividido entre o dever de rei e o amor de pai acabou por gerar a tragédia sardoalense da lotação esgotada que levou pessoas a assistirem ao espetáculo nos degraus do auditório do Centro Cultural Gil Vicente.

“Se querem vento sacrifiquem as filhas!”. A frase é dita de uma ponta para a outra da plateia enquanto as luzes ainda estão acesas. Os que confirmam o número do lugar para ocuparem as últimas cadeiras vazias no auditório olham para quem se mantém de pé e tentam perceber o que se passa. Junto da plateia estão os atores da peça “Ifigénia” levada ao palco do Centro Cultural Gil Vicente na noite deste sábado, ainda no balcão, as pessoas que aguardam desistências de última hora para conseguir bilhete, pois a lotação da sala esgotou a meio da tarde.

O espetáculo começou fora do palco e a tragédia sobre Ifigénia, imortalizada pelo poeta grego Eurípedes cinco séculos antes da era cristã, deu lugar à da lotação esgotada no arranque da primeira temporada da Rede Eunice no concelho. Um projeto do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM) que descentraliza a cultura através da apresentação dos seus espetáculos em territórios de baixa densidade. A rota nacional integra o equipamento cultural sardoalense, juntamente com o Teatro Municipal de Vila Real e o Teatro Municipal Baltazar Dias (Funchal, Madeira).

Fotos: mediotejo.net
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Os primeiros aplausos para a Rede Eunice, em homenagem à atriz Eunice Muñoz, não surgiram no auditório, mas sim no foyer do centro cultural durante a assinatura do protocolo entre a Câmara Municipal do Sardoal e o TNDM. O presidente da autarquia, Miguel Borges, voltou a defender que “interioridade não é sinónimo de inferioridade” num concelho que, à semelhança de outros do território, apenas sofre “de interioridade” por estar num país “virado para o litoral”.

O TNDM esteve representado pelo seu administrador, Rui Catarino, que destacou a contribuição do Sardoal no desígnio de “um teatro que não é nacional se não circular nacionalmente”. Ideia partilhada pelo diretor artístico Tiago Rodrigues que justificou a seleção do Centro Cultural Gil Vicente devido à identificação de “uma sensibilidade, aposta, investimento e reconhecimento da importância da cultura” no Sardoal.

Fotos: mediotejo.net
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A segunda aclamação surgiu no final do espetáculo coproduzido pelo Teatro Viriato em que Ana Tang, Ana Valente, Flávia Gusmão, Isabel Abreu, João Grosso, José Neves, Lúcia Maria, Marco Mendonça, Maria Amélia Matta, Miguel Borges e Sandra Pereira tornaram leve o peso da tragédia grega sobre um homem dividido entre o dever de rei e o amor de pai. Deve Ifigénia ser sacrificada para que os ventos soprem nas velas dos navios com que os exércitos pretendem salvar Helena, a formosa filha de Zeus?

O cenário é o porto de Áulis e a memória do que se passou antes da partida para Troia é contada a onze vozes pelos intervenientes na história. Desde Agamemnon, o rei dividido entre o povo e a filha, à rainha Clitemnestra, que leva Ifigénia para Áulis seguindo o falso anúncio do casamento desta com o guerreiro Aquiles. A decisão de se entregar ao “exército do inevitável” acaba por ser tomada pela princesa, mas sem o sentido de dever. Ifigénia decide morrer “porque sim”, porque o corpo é seu. Apenas exige que não lhe toquem e que a memória se desvaneça.

Fotos: Paulo Jorge de Sousa
Fotos: Paulo Jorge de Sousa

As versões sobre o final da tragédia grega divergem. Uns defendem que a lâmina tocou o pescoço de Ifigénia, outros que foi salva do sacrifício por uma deusa e substituída por um veado. Ela não não volta a aparecer em palco e o mensageiro que conta o final da história não consegue lembrar-se. Uma coisa é certa, os ventos regressaram e os gregos partiram para a guerra que continua a dividir historiadores quanto à sua veracidade.

Comprovada está a lotação esgotada do Centro Cultural Gil Vicente e a satisfação do público à saída do espetáculo. Aceitação que Rui Catarino, em declarações ao mediotejo.net, diz estar longe dos objetivos da Rede Eunice. O projeto não se limita “a ter salas cheias”, apesar do facto ser “um prenúncio de que faz todo o sentido” e que existe “apetência” de toda a população, independentemente “de ser do interior ou do litoral”.

Ifigénia esgotou o auditório do Centro Cultural Gil Vicente. Foto: Paulo Jorge de Sousa
Fotos: Paulo Jorge de Sousa

O administrador do TNDM salientou ser “o reconhecimento da aposta que estes municípios fazem no desenvolvimento das suas comunidades que faz com que o Teatro Nacional D. Maria II se associe e possa, à sua escala, reforçar o papel que estes têm na garantia constitucional da fruição e participação cultural por parte dos públicos”. Públicos para quem a Rede Eunice não se esgota numa “perspetiva pontual de apresentar três espetáculos” por temporada. O projeto assenta numa dinâmica construtiva que engloba outras ações ligadas à atividade teatral, como workshops.

A próxima peça, “A Origem das Espécies”, chega ao público infantojuvenil do Centro Cultural Gil Vicente no dia 21 de janeiro, sábado (16h00), e a temporada 2016/17 termina no mês de maio com “As Criadas”. A tragédia grega de Ifigénia não volta a subir ao palco do auditório, mas é muito provável que se repita a tragédia sardoalense da lotação esgotada.

Sónia Leitão

Nasceu em Vila Nova da Barquinha, fez os primeiros trabalhos jornalísticos antes de poder votar e nunca perdeu o gosto de escrever sobre a atualidade. Regressou ao Médio Tejo após uma década de vida em Lisboa. Gosta de ler, de conversas estimulantes (daquelas que duram noite dentro), de saborear paisagens e silêncios e do sorriso da filha quando acorda. Não gosta de palavras ocas, saltos altos e atestados de burrice.

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