Cátia e Cristina são conhecidas de longa data e sempre estiveram ligadas pelo amor aos cães, participando em exposições, competições de obediência canina, criação, e até busca e salvamento.
Criaram, em 2015, o projeto Cães & Livros, certificado internacionalmente, que pretende estimular as crianças a aderir aos encantos da leitura de forma diferente: lendo para o cão. Desde janeiro que o projeto decorre no Agrupamento de Escolas de Sardoal e as sessões da fase experimental terminarão em junho.
Ainda assim, a prova dos nove já foi tirada: dali nasceram bons contadores de histórias, sempre prontos a deliciar os seus fiéis ouvintes de quatro patas. Curioso? Nós contamos-lhe tudo.
Foi após fazerem ações conjuntas de sensibilização nas escolas quer da filha de Cristina, quer da filha de Cátia, em 2014, que notaram uma potencial mais-valia da cumplicidade que se estabelecia entre os cães e as crianças, algo que merecia ser explorado. Na altura, lembrou Cátia, olharam uma para a outra e decidiram agir. “Temos de fazer alguma coisa nesta área: temos que juntar crianças, cães… e como gostamos muito de ler e adoramos livros infantis, lembrámo-nos…”, e foi de forma quase automática que descobriram programas com provas dadas no estrangeiro há quase duas décadas.
Deste modo, aliaram-se ao programa internacional Reading Education Assistance Dogs (R.E.A.D.), nascendo em julho de 2015 a primeira equipa Cães&Livros – R.E.A.D. Portugal com o Labrador preto “Bagas”, e iniciando as coordenadoras várias formações e até pós-graduações na área das terapias assistidas por animais.
A paixão pelo projeto acelerou todo o processo e, um ano mais tarde, mais duas equipas se formaram através da Intermountain Therapy Animals (ITA), submetidas a exames com critérios rigorosos: Cátia e Pepper (Golden Retriever) e Cristina e Busy (Border Collie). A Cães&Livros passou a ser representante oficial e a única entidade autorizada e registada para este tipo de intervenção de atividades lúdicas e educativas, em contexto escolar e não-escolar.
Mas… a pergunta é: como vieram parar ao concelho de Sardoal? Aqui, Dulce Figueiredo, responsável pela Biblioteca Municipal sardoalense, admitiu ao nosso jornal ter tido alguma culpa.

O gosto por cães e pela área das terapias assistidas fez com que, certo dia, se deparasse com este tipo de projetos inovadores, e propusesse à autarquia a sua implementação. A resposta foi positiva desde que não houvesse “cãofusão”, lembrou, citando o termo usado pelo presidente de Câmara Miguel Borges.
Agora a parte logística é organizada pela Rede de Bibliotecas de Sardoal, mas o processo prático é feito em articulação entre a equipa Cães&Livros e uma equipa pedagógica responsável pela seleção, acompanhamento e avaliação dos alunos, que é feita de forma interna.
“Estes miúdos sentem-se diferentes [por terem dificuldades de leitura]… e era uma coisa que eu não queria”, disse a bibliotecária, referindo-se aos alunos de 1º ciclo integrados na Unidade de Ensino Especial (UEE) selecionados para o programa como sendo “sortudos” e que já não são colocados de lado, passando a ser o centro das atenções dos colegas por serem somente estes a ter “a benesse” das sessões com os cães. São três crianças com oito e sete anos, um inscrito no 1º ano e dois matriculados no 2º ano, que têm sessões de 20 minutos cada, de 15 em 15 dias.
Criança-cão-livro: o triângulo nuclear de cada sessão
Tudo começa com a criação de empatia, “com o tipo de relação que as crianças estabelecem com os próprios cães”, onde só a presença do cão já faz diferença, sendo atribuído o papel de “professor” à criança, que tem de ajudar na aprendizagem do cão indicado como o que melhor se adequa à sua personalidade.
Na escola de Sardoal entraram em campo os binómios Cátia e Pepper e Cristina e Mina [Épagneul Bretão, de dois anos, formada em janeiro]. Neste caso começou-se por folhear um livro sobre raças de cães, onde os alunos puderam “desbloquear” dando-se a conhecer. A partir daqui tudo se centra no triângulo criança-cão-livro. “Nós [coordenadores] nunca existimos”, riram, assumindo que nas primeiras sessões os alunos não decoram os seus nomes.

“Existimos através do cão (…) nós falamos sempre pelo cão. Se num texto vemos que há uma palavra mais difícil, podemos dizer que a Mina não percebe a palavra e perguntar qual o significado. Se souber, ela explica. Se não souber, não tem problema, vai-se ao dicionário ou somos nós que explicamos e depois eles explicam ao cão”, explicou Cristina, admitindo que o cão passa a ser “o fio de comunicação”.
Os livros variam entre as propostas da equipa e os objetivos determinados pelos docentes que acompanham, mas aqui dispensam os livros “de sala de aula”, pois simplesmente… não funciona. “Passámos a trazer os nossos livros, com histórias que têm sempre cães como personagens ou outros animais e temas que lhes suscitem interesse”, enumerou Cátia.
Quase cinco meses depois, os sinais são já muito claros. Um dos alunos superou a negação ao contacto com os livros, ultrapassando o velho hábito de recusar a leitura de cada vez que a professora lhe colocava um livro à frente. Trabalha-se o reforço da auto-estima, “transformando o processo da leitura numa experiência positiva e agradável. Porque o cão é um excelente companheiro, que sabe ouvir, que não julga, e que interage com a criança durante a sessão”, segundo pode ler-se no site da equipa.
Outro resultado notório prendeu-se com a sua memória e consciência daquilo que lera. “Quando lhe pedia, no final da sessão, que me fizesse um resumo, ele não era capaz. E, de há duas ou três sessões para cá, ele fez o resumo do livro que leu”, referenciou, orgulhosa, a coordenadora Cristina.

E eis que surge a lembrança engraçada do segundo aluno, quando surgiu com mega sorriso, apressado, “com o livro da sala de aula aberto, uma caixa cheia de livros da “Patrulha Pata”, e envelopes com cartas para a Pepper“, uma vez que Cátia teve um incidente, magoando-se no pé e levando à troca de equipas.
Isto porque o projeto funciona em binómios coordenador-cão, salvaguardando a relação de confiança e lealdade, bem como o trabalho de equipa que exige muita manutenção, com treinos todos os dias, nomeadamente de socialização.
“A dupla é que é certificada. Como a Cristina não fez exame com a Pepper, na minha ausência não podia fazer as sessões com ela”, explicou Cátia, notando que os cães são reavaliados de dois em dois anos, fora todos os cuidados e avaliações regulares.
E qualquer cão pode ser um bom cão de terapia [ou de Intervenções Assistidas por Animais (IAAs)]? Segundo Cristina “não basta só ter um cão que se porte bem. Tem de ser especial” e ser guiado por “uma pessoa minimamente formada para fazer este tipo de trabalhos”, vindo preferencialmente da área da saúde ou educação.

A raça não importa, procurando-se caraterísticas específicas. O que muitas vezes se consegue avaliando-se uma ninhada de determinada linha de certo criador, considerando-se mais improvável e moroso preparar um cão recolhido num canil municipal ou abrigo. “Cada cão é um cão” e o que realmente importa é “o vínculo” com o coordenador que o treina, convive diariamente com animal, e que a relação permita antecipar o seu comportamento e reações.
Projeto pode vir a cativar outro tipo de público
O vereador da CM Sardoal Pedro Rosa, com o pelouro da Educação, crê que sim. “É piloto para a equipa Cães&Livros e para nós”, afirmou, referindo que “a ideia de poder resolver as dificuldades de aprendizagem dos nossos alunos com recurso a uma estratégia inovadora e diferente… pareceu-nos uma boa aposta”.
Pedro Rosa não deixou de mencionar o trabalho “muito importante e com resultados bastante expressivos” por parte dos docentes, mas mostrou que a autarquia não quis deixar de contribuir de forma proativa, algo que é recorrente na implementação de outros projetos “diferenciadores” como é o caso da «Rede Escolas de Excelência».
O projeto está implementado através de prestação de serviços, numa modalidade que representa um investimento de cerca de 2 mil euros para este ano letivo, mas para o vereador “não é o preço que deve ser a nossa orientação”.

As sessões terminam em junho, estando já na fase de avaliação pedagógica, bem como do desenvolvimento do trabalho feito. Ainda que não tenham sido apresentados resultados oficialmente, Pedro Rosa não escondeu estar agradado com todo o processo até agora.
“Acho que valeu a pena, pelo feedback bastante positivo que tenho tido, da parte da técnica que assistiu a uma das últimas sessões, e da parte da equipa de Educação Especial do Agrupamento. Estão a atingir-se resultados”, admitiu, fazendo referência ao facto de os alunos se “desinibirem” pela empatia criada e pela presença do cão, que aqui é “um facilitador da leitura”.
Teresa Moço, subcoordenadora da Educação Especial, relatou que “os alunos estão motivados, demonstram gosto pelos livros e estão mais confiantes”, notando-se melhorias nas competências de leitura. Por outro lado, a componente social tem dado sinais: nota-se “a libertação dos medos, a elevação da autoconfiança e a melhoria da capacidade de comunicação”.

Conjugando no futuro, Pedro Rosa disse que o projeto “tem pernas para andar”, esperando conseguir “alargar a mais alunos” e não só, uma vez que a atividade “já começou a despertar curiosidade de outras instituições (…) porque começou a ver-se que esta estratégia consegue ir muito além da esfera da sala de aula”.
Também a bibliotecária Dulce Figueiredo partilha da opinião de que propostas diferenciadoras podem representar passos largos no caminho da promoção da leitura, que tem estado muito aquém nas camadas jovens em que “é proibitivo ler, não é nada cool“. “Estas coisas, às vezes pontuais, não são a receita, mas são o isco”, disse a mesma responsável.
Por agora, a hipótese de alargar o programa consta do plano do estudo do projeto, mas o foco está apontado para a área escolar.
Quem sabe, no próximo ano, Pepper e Mina vão estar confortavelmente aninhadas, na sombra de uma árvore, a ouvir contos e lendas aos pés de “jovens” de terceira idade institucionalizados, relembrando-lhes o prazer da leitura e o quão sensacional é ter consigo um animal para acarinhar.
Muitos parabéns pela reportagem sobre as “histórias d’encãotar”!
Trabalho de excelência na articulação entre a biblioteca municipal do Sardoal, o agrupamento de Escolas e a Equipa Cães e Livros na capacitação para a leitura ! Mais um exemplo da coragem para inovar no Interior! O agradecimento final vai para a Câmara Municipal do Sardoal por apoiar iniciativas como esta! Ficamos à espera da possibilidade de expansão do projeto a outras instituições!
Obrigada pela vossa disponibilidade e testemunho. Votos de muito sucesso!
Com os meus melhores cumprimentos,
Joana Rita Santos